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Artigo

População e armadilha da pobreza na República Democrática do Congo

 

A República Democrática do Congo só conseguirá vencer a pobreza, a fome e o baixo IDH se avançar com a transição demográfica

Artigo de José Eustáquio Diniz Alves

A República Democrática do Congo (antiga República do Zaire) é o segundo maior país da África em extensão territorial, com uma área de 2,3 milhões de km2, uma população de 112 milhões de habitantes em 2025 e uma densidade demográfica de 50 habitantes por km2. É o quarto país mais populoso da África, ficando atrás somente da Nigéria, Etiópia e Egito.

Faz fronteira a norte com a República Centro-Africana e com o Sudão do Sul, a leste com Uganda, Ruanda, Burundi e a Tanzânia, a leste e a sul com a Zâmbia, a sul com Angola e a oeste com o oceano Atlântico, com o enclave de Cabinda e com o Congo.

O gráfico abaixo mostra a população e a renda per capita da República Democrática do Congo de 1950 a 2022. A população era de 12,3 milhões de habitantes em 1950, chegou a 22,4 milhões em 1974 e deu um salto para 102,4 milhões de habitantes em 2022. Segundo a Divisão de População da ONU, a RD do Congo deve chegar a 430 milhões de habitantes em 2100, devendo superar a população dos Estados Unidos da América (EUA).

Enquanto a população cresceu 8,3 vezes em 72 anos, a renda per capita seguiu caminho oposto, fazendo com que a RD do Congo ficasse presa na armadilha da pobreza. A renda per capita, em poder de paridade de compra, era de US$ 909 em 1950, subiu para o pico de US$ 1,3 mil em 1974 e caiu para US$ 844 em 2022. Ou seja, a renda per capita diminuiu entre 1950 e 2022. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) foi de 0,522, ficando em 171º lugar no ranking global.

população e renda per capita na república democrática do congo

O exemplo da RD do Congo se contrapõe à tese do economista neoliberal Julian Simon, conhecido por defender que mais pessoas significam mais cérebros, mais criatividade e, portanto, mais desenvolvimento. Sua frase famosa — “people are the ultimate resource” — resume sua tese: a população humana não é um fardo, mas a principal fonte de progresso. Para ele, quanto mais pessoas melhor.

Porém, a realidade de países como a República Democrática do Congo (RDC) evidencia limites e erros dessa visão populacionista quando aplicada de forma generalizada. Vamos listar os principais erros conceituais e práticos da visão de Simon:

  • Superestimação do potencial humano sem considerar o contexto

Simon via cada ser humano como um solucionador de problemas em potencial, mas ignorava que o desenvolvimento das capacidades humanas exige condições mínimas: educação, saúde, segurança alimentar, infraestrutura e estabilidade. Na RDC, milhões de crianças não têm acesso à escola ou são deslocadas por conflitos. O “recurso humano” existe, mas está subutilizado ou abandonado.

  • Desconsideração dos limites institucionais e políticos

Simon focava no indivíduo, mas subestimava o papel das instituições (Estado, leis, governança). Sem instituições sólidas, o crescimento populacional pode resultar em mais desemprego, informalidade e conflitos sociais. Na RDC, décadas de corrupção, guerras civis e ausência de políticas públicas eficazes impediram que a população se transformasse em ativo econômico.

  • Negligência sobre o tempo de maturação do capital humano

Simon tratava o crescimento populacional como uma riqueza imediata. Porém, formar capital humano leva tempo — décadas, em alguns casos. Em contextos como o da RDC, onde os investimentos em saúde e educação foram insuficientes ou interrompidos, a “riqueza demográfica” tornou-se um fardo social.

  • Ignorar os custos sociais e ambientais do crescimento populacional rápido

Mais gente significa maior demanda por água, alimentos, energia, habitação, transporte e empregos. Sem planejamento urbano, infraestrutura e regulação ambiental, o crescimento populacional pode levar à degradação ambiental e crise social. A RDC, rica em recursos naturais, sofre com mineração predatória, desmatamento, deslocamentos forçados, conflitos religiosos e insegurança alimentar, tudo agravado pelo crescimento desordenado.

  • Aplicação acrítica de experiências do Norte Global ao Sul Global

Simon baseava suas ideias em exemplos dos EUA e de países desenvolvidos, onde o crescimento populacional ocorreu junto com inovação, urbanização e investimento em capital humano. Transferir essa lógica para países com fracas capacidades estatais, como a RDC, é um erro metodológico, mesmo porque todos os países ricos passaram pela transição demográfica e aproveitaram o 1º bônus demográfico.

O erro principal de Julian Simon foi confundir potencial com realidade. O crescimento populacional pode ser um fator positivo para o desenvolvimento — desde que acompanhado de investimento social, instituições sólidas e políticas públicas eficazes. Além disto, é preciso considerar o papel da transição demográfica, pois não existe país rico e com alto IDH que não tenha reduzido as taxas de mortalidade e natalidade. A RDC mostra que, sem essas bases, o crescimento populacional pode resultar em empobrecimento e instabilidade, exatamente o oposto do que Simon previa.

Ao contrário de Julian Simon, o livro Rumo à Utopia: Uma História Econômica do Século XX” (o título original em inglês “Slouching Towards Utopia: An Economic History of the Twentieth Century”) de J. Bradford DeLong (2022) oferece uma narrativa abrangente e ambiciosa da história econômica do que ele chama de “o longo século XX” – que se estende aproximadamente de 1870 a 2010.

Para o autor, antes de 1870, a humanidade vivia em extrema pobreza, com um lento avanço das invenções compensado por uma população crescente. Então, ocorreu uma grande mudança: a invenção avançou a toda velocidade, dobrando nossas capacidades tecnológicas a cada geração e transformando completamente a economia repetidamente, com grande aumento da produção de bens e serviços. Ao mesmo tempo a transição demográfica reduziu o crescimento populacional e provocou uma mudança na estrutura etária que abriu uma janela de oportunidade para erradicar a pobreza e a fome e garantir o bem-estar da maioria da população.

Portanto, a República Democrática do Congo só conseguirá vencer a pobreza, a fome e o baixo IDH se avançar com a transição demográfica viabilizando o investimento em saúde, educação e em um mercado de trabalho cada vez mais produtivo.

Também o livro “A Jornada da Humanidade: Uma História Econômica do Mundo”, de Oded Galor, oferece uma teoria unificada e abrangente da história econômica global. O cerne de sua argumentação é que a humanidade esteve presa por milênios em um regime malthusiano, onde qualquer avanço tecnológico resultava apenas em mais pessoas vivendo no limiar da subsistência, sem um aumento sustentável da prosperidade per capita, onde a transição demográfica desempenha um papel absolutamente central.

Galor começa descrevendo a vasta extensão da história humana sob o regime malthusiano. Nesse período, inovações tecnológicas (como novas ferramentas ou técnicas agrícolas) levavam ao aumento temporário da renda. No entanto, essa renda extra era rapidamente “consumida” por um aumento da população, já que mais recursos permitiam que mais pessoas sobrevivessem e tivessem filhos. O resultado era que a renda per capita retornava ao seu nível de subsistência. A população crescia, mas a maioria continuava pobre.

O cerne da explicação de Galor para a “fuga” do regime malthusiano e o início do crescimento econômico sustentado é a transição demográfica. Ele argumenta que essa transição não foi apenas uma consequência do desenvolvimento, mas um motor essencial que realimentou o processo de crescimento. De acordo com Galor, o processo se desenrolou da seguinte forma:

  1. Aceleração do Progresso Tecnológico: Lentamente, ao longo dos séculos, e de forma mais acentuada com a Revolução Industrial, a taxa de progresso tecnológico começou a acelerar. As inovações tornaram-se mais frequentes e impactantes.

  2. Aumento da Importância do Capital Humano: Com o avanço tecnológico, o valor da educação e das habilidades no mercado de trabalho aumentou. As ocupações baseadas no conhecimento e na tecnologia passaram a gerar maiores retornos, enquanto o trabalho manual não qualificado se tornava menos valioso.

  3. Investimento na Qualidade dos Filhos: Diante dessa nova realidade, as famílias perceberam que investir na educação de seus filhos — aumentando seu “capital humano” — traria maiores benefícios econômicos no futuro. Educar bem muitos filhos era caro.

  4. A Queda da Natalidade: Este é o ponto crucial da transição demográfica para Galor. As famílias começaram a optar por ter menos filhos, mas investir muito mais em cada um deles, garantindo-lhes educação, saúde e melhores perspectivas. Isso marcou o abandono da estratégia de “muitos filhos” (quantidade) para uma de “melhores filhos” (qualidade).

  5. Ciclo Virtuoso de Crescimento: A redução da taxa de natalidade, combinada com a continuação da queda da mortalidade (especialmente infantil), levou a um menor crescimento populacional (ou até a estabilização/declínio em fases posteriores). Isso significava que os frutos do progresso tecnológico não eram mais totalmente “comidos” pelo aumento populacional. A riqueza gerada podia, então, ser acumulada e investida, levando a um aumento sustentado da renda per capita. Além disso, uma população mais educada e saudável era ainda mais inovadora, realimentando o ciclo de progresso tecnológico e crescimento.

Portanto, a experiência mundial mostra que a transição demográfica é um pré-requisito para vencer a armadilha malthusiana ou armadilha da extrema pobreza. A população da RDC está prevista para quadruplicar no restante do século. Isto significaria o aumento da pobreza, agravada pela crise climática e ambiental. A comunidade internacional deveria ajudar a RDC a garantir os direitos de regulação da fecundidade para colher os benefícios do bônus demográfico e deixar para trás o atraso econômico e social.

José Eustáquio Diniz Alves
Doutor em demografia, link do CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2003298427606382

Referências:

SIMON, Julian L. The Ultimate Resource. Princeton, NJ: Princeton University Press. 1981

DE LONG. J. BRADFORD. Rumo à Utopia. Uma História Econômica do Século XX, Livros básicos, 2022

GALOR, Oded. “A Jornada da Humanidade: Uma História Econômica do Mundo.” Editora 34, 2017.

 

Citação
EcoDebate, . (2025). População e armadilha da pobreza na República Democrática do Congo. EcoDebate. https://www.ecodebate.com.br/2025/08/18/populacao-e-armadilha-da-pobreza-na-republica-democratica-do-congo/ (Acessado em agosto 23, 2025 at 11:10)

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394

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