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Curtailment energético no Brasil agrava o desperdício de energia renovável

energia verde - eólica e solar

Nordeste registra corte de 27,3% da energia solar e eólica produzida enquanto ONS propõe volta do horário de verão

Expansão descontrolada de parques renováveis sem infraestrutura de transmissão adequada gera paradoxo: Brasil tem energia, mas não consegue aproveitá-la

O “curtailment” e o licenciamento ambiental  

Artigo de Heitor Scalambrini Costa*

A participação dos combustíveis fósseis na matriz energética mundial é cerca de 82%, mas na matriz elétrica, o percentual é menor, cerca de 60%. No Brasil, o uso de fontes renováveis, solar e eólica, tem crescido exponencialmente, ocupando hoje um papel de relevo na matriz elétrica nacional, o que nos distingue de outros países, cuja dependência dos recursos fósseis é mais elevada.

A eletricidade dos ventos e do Sol representa 38% da matriz elétrica, que somada à hidroeletricidade chega a cerca de 88%. Uma posição privilegiada, acima da média mundial, mesmo no caso da matriz energética, onde nossa dependência por combustíveis fósseis, é da ordem de 51%.

Ainda assim, temos biomassa abundante e diversificada, com oportunidades estratégicas em agrocombustíveis, produção de hidrogênio, entre outras alternativas que se complementam, garantindo a segurança energética.

Tal crescimento exponencial mostra o viés ofertista, da política energética errática adotada, ao longo dos anos, pelo Ministério de Minas e Energia (MME), responsável pela formulação de diretrizes e implementação de políticas relacionadas ao setor de energia, incluindo a exploração, produção e comercialização.

Produzir energia, como qualquer outra atividade econômica, gera impactos socioambientais, independentes de ser fonte renovável ou não. Não existe energia limpa.

Tais diretrizes deveriam estar alinhadas com o compromisso de combater as mudanças climáticas, reduzindo e mesmo abandonando os combustíveis fósseis (petróleo, carvão mineral e gás natural), principais responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa.

Este esforço global é a essência do Acordo de Paris, cujas metas de cada país apontam a ambição na redução das emissões, e estão contidas na “Contribuição Nacionalmente Determinada” (em inglês, NDC) revisada a cada 5 anos.

Atualmente, chegamos ao ponto de, mesmo tendo disponibilidade, o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), uma entidade privada, ter limitado, e até cortado parte da energia gerada por fontes renováveis, porque a expansão da rede de transmissão e a demanda não acompanharam o ritmo de instalação de novos parques de geração, que cresce a taxas mais aceleradas.

Ou seja, temos energia, mas não temos linhas de transmissão para seu aproveitamento pelo sistema elétrico nacional. Isto tem acontecido com frequência no Nordeste, maior produtora de energia elétrica a partir do Sol e dos ventos. Esta irracionalidade do planejamento, levou as empresas geradores a exigirem ressarcimento, pois produziram, mas não faturaram.

Em meio à esbórnia vigente no sistema elétrico, o ONS lançou no dia 8 deste mês, o Planejamento da Operação Energética (PEN2025), que fala do agravamento do déficit de potência no Brasil, ou seja, há falta de capacidade de geração de energia.

Como solução, o operador recomenda a volta do indesejado horário de verão, além de convocar o acionamento de usinas térmicas, que têm um custo maior de geração e emitem gases de efeito estufa. O ONS justifica a adoção desta opção pelo baixo volume nos reservatórios das hidroelétricas na região Sul, o que elevará mais ainda a conta de energia do consumidor.

Vai entender, ou não é para entender e simplesmente aceitar?

Segundo a ONS “ampliar o uso das térmicas, ainda que temporariamente, reforça a importância de se manter uma matriz energética equilibrada e capaz de responder às adversidades climáticas e operacionais”. Argumentos que desmerecem a inteligência alheia diante das atuais propostas do MME, que insiste na exploração do petróleo, “até a última gota”, afirma o próprio ministro.

Há ainda outras propostas insanas que se distanciam da sustentabilidade energética e socioambiental, como disseminar pequenas centrais nucleares na região amazônica, e concluir a central nuclear de Angra 3, abrindo a porteira para a nuclearização do país. Mais nucleoeletricidade implica aderir a uma fonte de energia insustentável, cara, suja e perigosa.

A monocracia no setor energético, provoca a repetição de problemas, devido aos interesses lobistas que dominam o MME, em proveito de alguns, contrários à maioria da população, que vive o drama de ver suas contas de energia aumentarem, ano a ano. Além de ignorar, e mesmo impedir, a participação da sociedade civil nas decisões. Assim, problemas antigos ressurgem.

Por exemplo, em 2014, a antiga estatal Companhia Hidroelétrica do Rio São Francisco (CHESF) teve atrasos na infraestrutura de transmissão de energia, que teriam impactado o escoamento da energia gerada por parques eólicos. 

O não cumprimento dos contratos de projetos, vitais para a segurança energética, especialmente o atraso na implantação de linhas de transmissão associadas às centrais de geração para conexão compartilhada (ICG), levou a própria Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) a desabilitar a Companhia, impedindo que a empresa participasse de leilões de linhas de transmissão.

Mais recentemente, um termo técnico em inglês curtailment começou a ser usado com frequência para designar cortes determinados pelo ONS. Em junho de 2025, no Nordeste, os cortes na geração de projetos de grande porte – solar e eólico – não injetados na rede, chegaram ao valor de 27,3% do total produzido, sendo 19,6% por razões energéticas.

Mas o que tem a ver o curtailment e o licenciamento ambiental? 

O curtailment é a redução intencional da geração de energia, especialmente em usinas de fontes renováveis como eólica e solar, quando a produção excede a capacidade de consumo ou transmissão do sistema. Ocorre quando a geração de energia é reduzida ou cortada, seja por razões elétricas, como a capacidade limitada de transmissão; ou energéticas, com excesso de oferta do sistema em relação à demanda.

Isto ocorre pela falta de planejamento estratégico, que privilegia a oferta descolada da demanda, pelos atrasos na conexão de projetos à rede, pela demora em adotar o armazenamento por baterias, e de diretrizes claras nos marcos legais construídos com a presença e participação perniciosa dos lobbies, defendendo interesses corporativos, em detrimento dos interesses da maioria da população.   

“Curtailment é a redução intencional da geração de energia renovável quando a produção excede a capacidade de transmissão”

O licenciamento ambiental é um procedimento administrativo que licencia uma atividade utilizadora de recursos naturais, sendo instrumento crucial para garantir que a geração seja feita de forma sustentável e com o mínimo impacto ambiental.

No contexto do curtailment, o licenciamento pode influenciar a forma como a energia é gerada e como as restrições são gerenciadas. Bem feito, e com um planejamento adequado do sistema elétrico, ajudaria a mitigar o problema de “corte de energia”, garantindo que haja infraestrutura suficiente para escoar a energia gerada e que as usinas possam operar de forma eficiente.

Ao considerar erroneamente a energia solar e eólica fontes de geração “limpas”, as exigências para o licenciamento de grandes projetos com geração centralizada, foram amenizadas, e somente um Relatório Ambiental Simplificado (RAS) é suficiente para análise do licenciamento. Assim, por considerar estas fontes energéticas de baixo impacto os empreendedores se eximem de apresentar estudos mais aprofundados, o EIA/RIMA.

Por outro lado, a flexibilização das regras de licenciamento tem levado a um aumento do risco ambiental, comprometendo a sustentabilidade da geração de energia, o que pode agravar o problema do curtailment. Os órgãos ambientais estaduais possuem normativas e regramentos definindo critérios específicos que, para atrair os projetos de geração de energia renovável flexibilizaram a legislação.

Assim, subdimensionam os impactos, invisibilizando a população atingida, além de desprezar os mecanismos de participação social, com falhas ou limitações no sistema elétrico, agravadas pela falta de licenciamento adequado de projetos de infraestrutura, como linhas de transmissão.

Em resumo, o licenciamento ambiental e o curtailment estão interligados, e um bom licenciamento pode contribuir para sua redução, além de outras medidas. a flexibilização das regras de licenciamento pode aumentar os riscos ambientais e agravar o problema da redução e corte da energia gerada.

A importância do licenciamento ambiental é inegável e necessária. Todavia, diante de um Congresso de 5ª categoria, dominado pelas elites retrógradas e por uma extrema direita fascista, foi proposto o Projeto de Lei 2.159/2021 (PL da Devastação), que flexibiliza ainda mais as regras para o licenciamento, permitindo que empreendimentos obtenham licenças de forma automática com base na autodeclaração do empreendedor, sem as análises técnicas prévias pertinentes e necessárias. Caso aprovada caminhamos para um retrocesso danoso que colocará em risco a segurança ambiental e social do país.

* Heitor Scalambrini Costa é professor associado aposentado da Universidade Federal de Pernambuco, graduado em Física pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP/SP), mestrado em Ciências e Tecnologias Nucleares na Universidade Federal de Pernambuco (DEN/UFPE) e doutorado em Energética, na Universidade de Marselha/Aix, associado ao Centro de Estudos de Cadarache/Comissariado de Energia Atômica (CEA)-França.


in EcoDebate, ISSN 2446-9394

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