A China em três atos
![Uma vista geral mostra o horizonte da cidade em Xangai, leste da China, Nov. 2, de 2018. [Foto/Xinhua]](http://images.china.cn/site1007/2019-04/16/ed93c80b-ba7e-40ab-9943-377da3c255ca.jpg)
Relato exclusivo de pesquisadora que participou da comitiva presidencial revela desenvolvimento tecnológico chinês e potencial da parceria bilateral
Professora Suzi Huff Theodoro, da UnB, compartilha experiências sobre turismo, ciência e geopolítica durante missão acadêmica que coincidiu com a visita oficial do presidente Lula à China
Artigo de Suzi Huff Theodoro
Profa. do Programa de Pós-gradução em Meio Ambiente e Desenvolvimento Rural, da Universidade de Brasília. E-mail: suzitheodoro@unb.br
Decidi tecer este texto como quem borda o tempo, para guardar no baú da memória os momentos memoráveis que vivi em terras chinesas. Dividi minhas reminiscências em três atos: o turismo, que encanta os olhos e a alma; a ciência, que desafia a mente e traz certezas; e a política, que molda destinos e muda a geopolítica. Juntas, essas memórias compuseram um mosaico de dias inesquecíveis.
Não as compartilho por vaidade, mas como um testemunho silencioso da grandeza de uma nação, frequentemente depreciada e malvista pela mídia ocidental, que a retrata com as cores da censura e da opressão, mas que, sob seu céu de dragões e de modernidade, guarda tantas histórias e exibe tamanho desenvolvimento que merecem ser contadas, sem preconceito, mas com admiração.
A China verdadeira é outra: o que se vê, o que se sente e o que fica gravado na alma é o retrato de um país verdadeiramente gigante.
Ato 1 – Turismo
Visitar a China era um desejo pessoal que a cada ano ficava mais distante. É longe, é caro e estou ficando velha para aventuras mais radicais. Percorrer um trecho da Muralha da China era um dos meus desejos de geóloga. Apesar desses entraves, fui. E que viagem!!!! Inesquecível!!! Fantástica!!!! Tudo na China me encantou. O povo e sua gentiliza, a organização e a urbanização impecável, a limpeza e os jardins por toda parte (especialmente em Pequim), a cidadania e os banheiros públicos, a ausência de pobreza, a justiça social, as oportunidades de acesso a tudo e, principalmente, a educação da população. Tudo isto, sem esquecer das incríveis soluções tecnológicas para diferentes problemas socioeconômicos e produtivos.
Como não se encantar com um país que trata os estrangeiros com deferência, respeito e cortesia? Um país que coloca frente a frente seu passado aristocrata e o presente comunista por meio de um espaço público chamado Praça da Paz Celestial, onde de um lado (ao norte) está encravado o passado, com a Cidade Proibida, que retrata a vida luxuosa de uma classe aristocrática, iniciada com o império da Dinastia Ming seguida pela Qing. Do lado oposto está o mausoléu de Mao Tsé Tung, líder revolucionário e comunista que reunificou a China e fez a maior reforma agrária do mundo. A leste está o palácio do grande salão do povo (Congresso Nacional do Povo), onde ocorrem as cerimonias, conferências e reuniões do partido comunista e, a oeste, o Museo Nacional da China. No centro da praça, dominando o cenário, está o Monumento dos Heróis do Povo, onde está inscrito que os heróis do povo são imortais.
Neste cenário, me chamou a atenção a quantidade de incontáveis grupos de turistas (aparentemente nacionais), que buscavam conhecer ou reverenciar a gloriosa história do povo chines. Eram grupos de idosos, de adolescentes ruidosos (mas contidos), de estudantes e de famílias (sempre com poucas crianças).
Conhecer o passado e ponderar sobre o presente, parece ser uma tática do governo Chinês para manter o vínculo de respeito e comprometimento da população com o país que se reconstrói a cada momento.
Em estado de arrebatamento com a visita à Cidade Proibida/Praça da Paz Celestial, fui com duas amigas (Carol e Ju, que estão morando na China), visitar um trecho da Grande Muralha. A expectativa de percorrer uma obra de engenharia que teve sua construção iniciada no século VII a.C e que só seria concluída no século XVI d.C era imensa. A obra construída ao longo de 2.000 anos sintetiza a persistência e a coragem do povo e, recentemente, foi eleita como o símbolo da China. De longe, já foi possível avistar as colossais montanhas com suas escarpas pontiagudas, que resultaram da colisão da placa tectônica Índica (Placa Indo-Australiana) que se chocou com a placa da Euroasiática e foi responsável pela formação da cordilheira do Himalaia. Falhas, dobras, vales estão representadas por uma infinidade de tipos de rochas resultantes desse choque. Maravilhada, não sabia se admirava mais aquela zona de sutura entre as placas tectônicas ou se a própria construção milenar. Ambas remetem a processos históricos que deixam aturdidos (em êxtase total) qualquer profissional que ame a geologia. Tempo geológico e tempo humano se contrapõem e se entrelaçam em um arranjo simbiótico e não deixam dúvidas sobre a necessária interação humana com a natureza. A diversidade dos blocos retangulares usados para a construção da Muralha é espantosa. Rochas sedimentares (derivadas dos lagos formados durante a movimentação dos dois continentes), rochas ígneas (plutônicas e vulcânicas formadas em câmaras magmáticas abissais) e rochas metamórficas (derivadas do estiramento ou compressão provocado pelas altas temperaturas e pressão que interagem com fluídos efervescentes) estão ali presentes e retratam uma combinação improvável de ser vista em outro local (ou em um afloramento). O arrebatamento de poder ver e pisar neste local valeram todas as expectativas. Tudo foi perfeito.
A vista lá de cima, no período da primavera, foi de tirar o fôlego. Uma profusão de cores e odores vindas da exuberante floresta que acolhe o traçado da Muralha. E tudo extremamente bem cuidado, mas obviamente vigiado. Posso dizer que aquelas horas de caminhada na Muralha elevaram meu espírito à condição de arrebatamento no último nível. Até pratiquei pilates durante a caminhada porque, naquele momento, corpo, mente e espírito estavam alinhados em comunhão absoluta. Ao compreender a perseverança, coragem e ousadia que possibilitaram a construção dos 21.000 km da Muralha, fica-se com a sensação que os seres humanos podem realizar os planos e projetos mais audaciosos e que tudo é possível, inclusive interromper os conflitos e guerras.
O único senão da visita foi a finalização da caminhada. Pela primeira vez, fui barrada por questões relacionadas ao etarismo. Tanto o acesso ao ponto de início de caminhada no alto da Muralha como a volta podem ser feitas por teleférico. Mas para voltar ao ponto de partida, pode-se escolher duas formas de descida. Uma pelo próprio teleférico e, o outro, em uma pista de tobogã, onde os turistas entram em um carrinho que escorrega em um trilho único até o ponto final. Não tive permissão para descer de tobogã, porque já tenho mais de 60 anos. Mas essa decepção não ofuscou em nada esta incrível aventura, que foi finalizada com um chope bem gelado, enquanto esperávamos a tempestade passar, para retornar à Pequim.
Outro grande momento foi a viagem de trem bala de Pequim até Suzhou, onde pude conhecer uma iniciativa tecnológica fantástica, descrita no ato dedicado à ciências. Ainda que a velocidade do trem tenha alcançado 350 km/h, foi possível observar a paisagem e os tipos de uso da terra. Posso assegurar que tive uma lição de soberania e do comprometimento do povo com um projeto para toda a China. Grandes cidades (grandes mesmo, com mais de 1 milhão de habitantes) apareciam e sumiam da minha visão em uma velocidade estonteante. Prédios exatamente iguais se revessavam com áreas rurais. Nas margens dos trilhos, e um pouco mais além, foi possível observar que cada pedacinho de solo estava ocupado com uma imensa diversidade de plantas (que a distância não pude identificar as espécies). Todos, absolutamente todos, os espaços de vazios urbanos (até nas rampas de pontes e viadutos) estavam ocupados por plantações. O sistema agroalimentar da China impacta por seu planejamento, execução e manejo. Eu não vi, em nenhum momento, uma área degradada e não utilizada. As propriedades são pequenas, mas aparentemente todas as famílias são especialistas em produzir algum produto e ter muitos outros como excedente para o consumo. Depois de cinco horas chegamos em Suzhou, já à noitinha. A cidade é cortada por canais que se conectam ao lago Taihu, o terceiro maior do País. Essa abundância de água em uma planície resulta em solos considerados muito férteis. Ela é surpreendentemente organizada e limpa. No outro dia, após o almoço e as atividades que fui conhecer na Universidade Agrícola da China, partimos (Carol e eu), para Shangai, que é a segunda cidade mais populosa da China, perdendo somente para Chongping.
Penso que o grande número de emoções, que afloraram como ondas de uma tsunami, juntamente com os cenários futuristas, que se sobrepunham em um ritmo alucinante, para além da minha imaginação, provocaram um travamento do disco rígido da minha memória. “Buguei” em Shangai e meus aplicativos no celular também paralisaram o que me deixou mais alarmada. Ao perceber a grandiosidade daquela cidade tive a plena sensação que havia sido retirada do meu mundo (ano de 2025) e sido remetida ao futuro sem as ferramentas necessárias para sobreviver. Foi uma sensação devastadora e que me trouxe a certeza de que, se não nos prepararmos para viver em um mundo totalmente tecnológico (por enquanto, via celular, mas, posteriormente via chip implantado na pele ou pela íris dos olhos), não conseguiremos ter acesso a nada, nem a uma comunicação básica. Depois desse choque, mas em processo de recuperação do meu estado normal, e ainda que um pouco receosa, fui apresentada a uma das mais empolgantes visões deste futuro tecnológico. A visão noturna do “Bund” (que significa cais aterrado) ultrapassou qualquer concepção que eu pudesse ter tido. Uma linha de edifícios com formatos arquitetônicos surreais (em especial a Pérola Oriental com uma altura de 468 metros) deixam qualquer pessoa intimidada, mas deslumbrada com tanta tecnologia e modernidade. As luzes hightech, que apagam e acendem freneticamente em cada arranha céu, são espelhadas pelas águas do rio Huangpu e dão conta de que tudo pode mudar na velocidade da luz. Naquele momento percebi que a Times Square, em Nova York, não passa de um arremedo de modernidade. Nada se compara ao tecnológico e vanguardista Bund. Mais além, e alcançando novos pontos de observação desse cenário, é possível ver a simbiose entre o antigo e o novo. De um lado do rio está o Bund e do outro (que era o meu ponto de observação) encontra-se uma zona de edifícios preservados do inicio do Século XX, quando Shangai havia sido repartida e subjugada aos interesses internacionais de europeus, russos, japoneses e americanos. Trata-se de uma área da cidade denominada Puxi, que é o centro cultural, financeiro e de entretenimento da Cidade.
Ainda em Shangai, tive a oportunidade de ficar mais convicta sobre minhas escolhas politicas. Fui visitar o Museu da Historia da Revolução Chinesa, que conta o inicio e a trajetória da revolução que levou o partido comunista ao poder nestes últimos 100 anos. A visita inicia na casa onde 13 homens planejaram e executaram o que viria a ser a revolução Chinesa. Foi neste ambiente que ocorreu o primeiro congresso do partido comunista. Atravessando a rua, chega-se no museu que retrata a historia de como Mao Tsé Tung (Ou Mao Zedong) e mais 12 pessoas (incluindo o professor universitário Li Hanjun) disseminaram o Marxismo e as atividades revolucionárias em um país esfacelado. Apesar da revolução ter iniciado nos anos de 1920, foi somente no ano de 1949, que o partido comunista conquistou o poder e implementou a nação comunista da China que conhecemos até hoje. O museu retrata os eventos, guerras, conflitos até a chegada do grande líder da revolução ao poder. Retrata também as razões e fatos históricos que permitiram ao povo chinês viver o atual processo de desenvolvimento, sobre a liderança de Xi Jinping, presidente da República Popular da China. Foi uma manhã de descobertas e de renovação de certezas. Um país somente pode ocupar um lugar de destaque no cenário mundial quando o seu povo e seus dirigentes congregam dos mesmos ideais.
Voltei para Pequim de trem bala e, no outro dia, iniciei a viagem de volta para o Brasil. Posso dizer que foi uma experiência arrebatadora, que deixou lembranças memoráveis. Ao partir da China tive a sensação que havia vivido anos em somente uma semana, tantas foram as emoções e aprendizados.
Ato 2 – Ciências
O motivo principal de minha viagem para a China foi apresentar os resultados da pesquisa em rochagem, que é o tema que viemos desenvolvendo no Brasil nos últimos quase 30 anos e para a qual tenho dedicado todos os meus neurônios. O mais legal é que, desde meados dos anos de 2010, o Brasil tornou-se protagonista no uso de rochas moídas para uso agrícola. Temos resultados científicos, normativas e vários exemplos de sucesso do uso dos remineralizadores de solo, denominação dada aos pós de rocha que já obtiveram registros oficiais. Estavam programados eventos, apresentações e discussões sobre este tema e como ele poderia ser atrelado à tecnologia da compostagem acelerada, desenvolvida por uma equipe de cientistas da Universidade Agrícola da China (CAU).
Há cerca de dois anos, a Universidade de Brasília (UnB) firmou um acordo de cooperação com a CAU, que resultou na criação do Centro Brasil-China. Esse acordo tem três eixos principais: importação e desenvolvimento de máquinas agrícolas para a agricultura familiar e pesquisa e extensão envolvendo alunos da UnB e da CAU, bem como agricultores familiares, em especial do Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST). O terceiro eixo é o desenvolvimento de um projeto de compostagem acelerada, que utilizará, em um primeiro momento, a tecnologia desenvolvida na China, e que facilita a transformação de resíduos orgânicos e podas de árvores em insumos de alta qualidade para uso agrícola em poucos dias.
O processo envolve um sistema de tratamento que utiliza um reator de silo fechado, onde os resíduos são submetidos a fermentação aeróbica em alta temperatura. O processo é acelerado pela adição de microrganismos e este método de fermentação aeróbica ocorre entre 7 a 12 dias. Está previsto a implantação de um sistema semelhante no Campus Darcy Ribeiro, da UnB, onde o resíduo produzido pelo restaurante universitário será convertido em insumo agrícola. Parte dos galhos e troncos derivados das podas de árvores do Campus também serão usados no processo.
A equipe do projeto da UnB pretende unir os benefícios da compostagem acelerada com os princípios da tecnologia da rochagem. Ao acrescentar remineralizadores no processo de compostagem, está se enriquecendo o composto com nutrientes minerais advindos das rochas moídas. Ao longo do processo, as altas temperaturas podem desestabilizar algumas fases minerais, facilitando o processo de intemperismo, quando o produto for adicionado as condições ambientais do solo. Além disso, o material já chegará ao solo enriquecido com uma série de microrganismos que facilitarão o biointemperismo dos minerais contidos no produto final ou mesmo daqueles presentes originalmente nos solos. Neste momento, fazendo seu pós-doutorado, a professora Caroline Gomide, da UnB, está conduzindo os testes iniciais no Instituto de Pesquisa em Reciclagem Orgânica, da CAU, em Suzhou, e foi para contribuir no processo que fui a China.
Uma programação intensa me aguardava, mas a curiosidade era enorme. De início, participei de reuniões com os fabricantes de máquinas agrícolas, que vislumbram um grande potencial de negócios no Brasil, em função da total carência de equipamentos adequados para o trabalho e manejo feitos nas propriedades de agricultores familiares. É importante destacar que o tamanho dos estabelecimentos agrícolas na China é bem pequeno, resultado da inigualável reforma agrária feita pelo partido comunista nos anos de 1950. Mais recentemente (últimos 30 anos), com a transformação tecnológica implementada naquele país, o Governo apoiou e incentivou inovações que facilitassem o trabalho dos agricultores e, ao mesmo tempo, resultasse em maiores produtividades por área cultivada. As empresas chinesas têm desenvolvido equipamentos impensáveis, que facilitam o manejo nas pequenas propriedades.
Parte dessas máquinas já foi adquirida pelo consórcio de estados do Nordeste Brasileiro e estão sendo testadas e adequadas às condições dos diferentes agroecossistemas dos agricultores da região. A UnB também recebeu algumas máquinas, que estão em fase de testes e adaptações na Fazenda Água Limpa. Depois dessa fase, as máquinas serão usadas nos cursos de extensão da Universidade e em assentamentos da reforma agrária localizados no Distrito Federal e Entorno.
Após ficar abismada com as diversas possibilidades apresentadas pelos fabricantes de máquinas, foi a minha vez de apresentar os pressupostos e princípios da rochagem para alunos de pós graduação da CAU. Temerosa de que minha fluência em inglês comprometesse a apresentação, logo percebi que o inglês não seria problema, porque não é o idioma da apresentadora nem do público. Fui muito bem recebida e percebi o grande interesse que este assunto despertou em meio aos estudantes e professores. Depois da apresentação fui recebida pelo professor Li Ji, cientista que idealizou e desenvolveu o reator de compostagem acelerada. Ele recentemente recebeu uma condecoração do governo Chinês pelo desenvolvimento dessa tecnologia. Já fui recebida por eminentes professores na Europa, mas nunca fui tive um acolhimento com tanta deferência quanto na China. Após a conversa em sua sala, o professor fez questão de nos acompanhar até o metrô. Além disso, providenciou uma super estrutura de atendimento na visita à fabrica, à fazenda e aos laboratórios do Instituto criado para desenvolver a tecnologia e processar os resíduos produzidos na cidade de Suzhou, e do qual ele é um dos diretores.
A fábrica possui um sistema relativamente simples de processamento dos resíduos, por meio de câmaras, esteiras e reatores que executam o processo de forma automatizada. Foi possível ver a entrada do material a ser compostado e o produto final que, recolhido em enormes “bags”, é distribuído para os agricultores que possuem terras nas proximidades da cidade e para a fazenda experimental do Instituto. O mais impressionante é que quase não há o odor característico de áreas de compostagem. Isto significa que os gases gerados no processo são separados e recolhidos.
Depois da fábrica, fomos à fazenda experimental do Instituto, onde vários testes agrícolas são conduzidos. Naquele momento, uma das áreas estava recebendo e aplicando o composto no solo. Era uma área preparada para o plantio de arroz. Claro que fui conferir a qualidade do solo e como a incorporação do material era feita. Me impressionou a aeração e a diversidade biológica do solo que recebe este material. Ao longo da visita em diferentes parcelas foi possível averiguar o quanto a pesquisa e a ciência são valorizadas e levadas a sério. Vários cartazes e banners mostravam os resultados de cada um dos testes agronômicos conduzidos com diferentes tipos de culturas agrícolas.
Da fazenda, fomos para os laboratórios do Instituto. Acostumada com os espaços dos laboratórios no Brasil, fiquei estarrecida com a infraestrutura de pesquisa: um prédio com 12 andares, composto de várias salas com os equipamentos mais modernos de análises que eu já pude ver, ou seja, tudo aquilo que nós, os pesquisadores, sonhamos ter nos nossos laboratórios. Talvez somente o Cenpes, Centro de Pesquisa da Petrobras, possua este aparato para pesquisa. Muitos estudantes fazem suas pesquisas neste local. E eles possuem bolsas para terem uma dedicação exclusiva no desenvolvimento e aperfeiçoamento do processo de compostagem. Muitos desses estudantes podem, após concluírem seus mestrados e doutorados, permanecer trabalhando no Instituto, se assim o desejarem.
Para além de aturdida com o processo de desenvolvimento de uma só tecnologia, a visita à CAU foi pedagógica para meu entendimento sobre a necessária interação da ciência com as demandas de um país. Ao apoiar a pesquisa, o Governo fomenta a criação de novas empresas que nascem nas universidades e que ao encontrarem as soluções de sucesso para os problemas para os quais foram criadas, elas se desvinculam das universidades e se convertem em empresas ou unidades de negócios independentes (Spin-offs). Porém, continuam ligadas à pesquisa, oferecendo oportunidades para os estudantes que desejem ingressar na pesquisa. Os investimentos que sustentaram a pesquisa e a inovação passam, então, a ser dirigidos para outras demandas. Ao desenvolverem novas patentes e produtos, estes estudantes pode também criar novas empresas, sempre comprometidas com a busca de soluções para os problemas demandados pelo Governo. É um processo sem fim que se expande na medida das necessidades do país e da curiosidade dos cientistas.
Entender esse processo me permitiu compreender porque a China conseguiu dar este salto no desenvolvimento tecnológico em apenas 30 anos. Investimentos em pesquisa e inovação estão na base do processo de transformação da sociedade. Não há problema que não mereça uma solução e não há solução que não seja transformada em avanço tecnológico ao alcance de todos que a demandem.
Penso que o Brasil tem um imenso potencial para repetir essa verdadeira cruzada rumo a um futuro muito mais desenvolvido, tecnológico e justo.
Ato 3 – Geopolítica
Minha chegada em Pequim foi excepcional. Ao chegar na imigração, entrego meu passaporte e imediatamente uma voz robotizada do funcionário me deseja boas vindas à China em Português e me pergunta qual era o motivo de minha viagem. Ainda surpreendida, informo em inglês, que iria participar de atividades acadêmicas na Universidade Agrícola da China (CAU). A voz robotizada me pergunta se sou professora e se tenho algum documento que comprove as atividades. Mostro a ele a carta-convite enviada pelo professor que me receberia na CAU e imediatamente recebo a aprovação de meu ingresso no País com os desejos de que eu aproveitasse a viagem.
Impressionada pela recepção na imigração, vou apanhar minha mala que, para minha aflição, chegou avariada (faltando uma das rodinhas). Reporto o problema ao funcionário da companhia aérea e ele solicitamente me encaminha para uma sala para relatar o problema. Ao chegar no local, mostro minha mala danificada e um funcionário rapidamente me entrega uma mala “novinha em folha”. Fico surpresa e pergunto se devo pagar, porque a nova mala era maior do que a minha. Ele sorri e diz que não era necessário, pois estava somente repondo o produto que havia sido danificado. Agradeço a gentileza e saio da sala surpreendida e feliz.
Ao sair para a área de desembarque, encontro minha amiga, Carol Gomide, me esperando com um grande sorriso de boas vindas à China. Ela rapidamente chama um taxi pelo aplicativo (tudo é feito pelo Alipay, que é uma plataforma aberta para interconexão digital) que chega em menos de um minuto. Ao sair do aeroporto, vejo a avenida que nos levaria ao centro da cidade com centenas de bandeirinhas do Brasil e da China. Apesar de maravilhada, sabia que todo aquele cenário não tinha sido preparado para celebrar minha chegada, mas, sim para a comitiva do presidente Lula, que chegaria neste mesmo dia.
Não pude deixar de pensar que aquela recepção inicial só poderia resultar em uma viagem inesquecível. E foi!!! Se todos os acontecimentos subsequentes tivessem sido planejados nos mínimos detalhes, certamente eles não seriam tão sincronizados e especiais. Por uma série de coincidências e providências nem tão divinas assim (né Zarref?), no mesmo dia da chegada fui informada que, juntamente com minha amiga Carol, participaríamos da comitiva brasileira, encarregada dos contatos, reuniões e acordos de cooperação relativos à agricultura familiar. Fomos admitidas na comitiva devido ao acordo bilateral firmado entre UnB e CAU, intermediado pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA). No dia seguinte, nos dirigimos ao ponto de encontro (um hotel magnífico) onde parte da delegação brasileira estava hospedada.
Desde meus tempos de assessora parlamentar da Petrobras, conheço alguns parlamentares que hoje são ministros de Estado, o que é o caso do atual ministro do MDA. Ao me ver, recebo uma calorosa recepção do ministro Paulo Teixeira e informo que estava ali para participar das reuniões como professora da UnB e integrante do Centro Brasil-China. O acolhimento foi imediato. Tanto que, a partir daquele momento, fomos integradas à comitiva em outros tantos compromissos. Dali para frente, foi uma sucessão de acontecimentos surpreendentes. O primeiro deles, e mais espetacular, foi o encontro com a ex-presidenta Dilma Rousseff, que tomava café no restaurante do hotel, acompanhada pelo Governador da Bahia, Gerônimo Rodrigues, a quem eu havia sido apresentada minutos antes. Me dirigi a ela com grande respeito e alegria. Falei o quanto à admirava e como sua força, caráter e determinação serviam de espelho e referência para tantas de nós, mulheres brasileiras, que sabem o valor e o legado que esta mulher tem e terá na nossa história. Ela foi muito simpática e prontamente se dispôs a tirar uma foto comigo e Carol. Ela é uma mulher admirável, uma fortaleza, uma gigante. Passou pelo inferno nos porões da ditadura e por um julgamento político cruel e impiedoso, que a retirou do cargo de presidente do Brasil, para o qual havia sido legitimamente eleita. Mas também, Ela viveu momentos de glória que nos encheram de orgulho, ao desfilar soberanamente em carro aberto na posse de seu primeiro mandato. Quantas mulheres se orgulharam dela naquele momento e entenderam que aquele lugar de poder poderia ser ocupado por qualquer uma de nós, que almejasse este cargo! Passada a tempestade, e por merecimento, ela volta triunfantemente a um lugar de poder. Ela é a presidenta do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) dos BRICS. Seu trabalho nos dois anos anteriores foi tão bem sucedido que a Rússia abriu mão de indicar um novo presidente e optou por reconduzi-la ao cargo. Lembro que muito se falava que a presidenta Dilma era implacável, e até rude, nas reuniões com os figurões da República. Mas penso que é compreensível. A grandíssima maioria dos homens não respeita as mulheres que argumentam com alguma amabilidade e gentileza. Para falar a verdade, eu acho que essa forma de se impor tem suas vantagens. Afasta fracos e ardilosos.
Mais tarde, ao ter a chance de presenciar a abertura do Seminário Empresarial China-Brasil: Fortalecendo a Parceria Estratégica, promovido pela ApexBrasil, pude testemunhar de perto a grandiosidade dos acordos em gestação. A convergência das capacidades produtivas, tecnológicas e políticas do Brasil e da China tem o potencial de desencadear forças colossais — quase tectônicas — capazes de redefinir o equilíbrio de poder no cenário global. Essa convicção se aprofundou ao ouvir o inspirador discurso do presidente Lula no encerramento do Evento que simbolizou o início de um novo tempo na relação bilateral, ampliando os fluxos de comércio e cooperação em desenvolvimento. O anúncio de investimentos chineses da ordem de R$ 27 bilhões – abrangendo setores estratégicos como indústria automotiva, energias renováveis, tecnologia, mineração, saúde, logística e alimentação – coroou aquele momento histórico, confirmando o potencial transformador dessa aliança.
E nada disso foi divulgado por nossa impressa tupiniquim, dominada por interesses pouco democráticos. Essa mesma impressa preferiu noticiar um desconforto diplomático que teria sido causado pela nossa primeira dama, Janja Lula da Silva, ao se referir ao Tiktok, em um jantar com o presidente Xi Jinping. Até nisto foram infames e sórdidos. Tiraram a fala de Janja do contexto (se é mesmo que foi proferida) e não trataram do que realmente resultou da visita do Presidente à China: novos tempos para o Sul Global. Entre montadoras de automóveis, equipamentos e máquinas agrícolas, serviços e produtos, o Brasil saiu da China maior do que chegou. Só para dar um exemplo pequeno dessa negociação, a China comprometeu-se a comprar muito café brasileiro, uma bebida que começa a cair no gosto popular dos chineses. Serão centenas de cafeterias inauguradas em várias cidades chinesas. Talvez uma frase dita pelo presidente Lula retrate o tamanho dessa parceria: “se a China foi capaz de construir um muro de 21.000km, o que não poderemos construir unido os esforços dos nossos dois países? Nada é impossível e, a partir deste momento, estamos reforçando o papel estratégico da parceria sino-brasileira no enfrentamento de desafios globais”. Foi um discurso aplaudidíssimo por muitos empresários da indústria e do agronegócio dos dois países. O Presidente conhece a força da palavra e as usa como ninguém. É lamentável que as informações da mídia brasileira não tenham mostrado a grandeza daquele momento. Penso mesmo que é constrangedor e lamentável a limitação interpretativa e a falta de rigor jornalístico nos materiais produzidos pelos correspondentes dos principais veículos de comunicação que estavam acompanhando a visita.
Mas o melhor ainda estava por vir. No último dia da comitiva brasileira, teríamos mais um encontro importante que, infelizmente foi desmarcado, porque a pessoa que estaria no encontro recebeu um convite para retornar no avião da comitiva do presidente Lula. Porém, ainda estávamos nos dirigindo ao local, quando avistamos a primeira dama, Janja Lula da Silva. Conversamos com ela, que foi de uma extrema simpatia. Ao saber da nossa pesquisa, mostrou-se muito interessada e disse que tinha vontade de conhecer uma área rural na China, para entender melhor o sistema de produção. Passados alguns momentos, vejo uma onda humana saindo do elevador. E quem apareceu na minha frente com sua máquina fotográfica foi Ricardo Stuckert. Como ele já havia gentilmente cedido uma de suas fotos para a capa de um livro que organizamos pela Febrageo: “Mineração em Terras Indígenas; desenvolvimento para quem?” me aproximo dele e uso um código secreto “sou vizinha da D. Nini”, imediatamente ele me põe ao lado do presidente Lula e aponta sua implacável e sensível câmara para o Presidente e para mim.
Posso afirmar que foram alguns segundos de uma alegria tão intensa, que desafia o encontro das palavras apropriadas, mas por certo uma mistura de euforia, admiração e reverência. Ter a atenção e, mais que isto, um abraço carinhoso do presidente Lula, foi um momento de encantamento e da confirmação de uma certeza: ele é, de fato, uma pessoa espetacular e de uma grandeza singular. Um titã, um gigante que deixará um legado incrível para o Brasil. Ele equilibra, com rara maestria, a ternura de um abraço afetuoso com uma inquestionável aura de dignidade, poder, inteligência e sabedoria. Me ocorreu naquele momento a frase que havia lido no Monumento aos Heróis da Pátria, da Praça da Paz Celestial: “os heróis do povo são imortais”. Sim, Lula é um herói, um daqueles seres raros destinados a mudar o curso de uma nação – e, que dádiva a nossa, Ele nasceu no Brasil! Seu legado será lembrado por anos e anos como um homem que transformou um país. Ele é absolutamente extraordinário.
Depois desse momento fugaz, ele encontra Janja, dedica-lhe um sorriso afetuoso, e de mãos dadas, partem juntos de volta ao Brasil. Do lado de fora do hotel, uma multidão de funcionários do hotel e pessoas anônimas fazem um corredor para aplaudir com reverência a delegação brasileira chefiada pelo nosso Presidente. Mais adiante, na rua, centenas de batedores com uniformes oficiais chineses aguardavam para conduzir a comitiva de forma imponente e esplendorosa ao aeroporto, como só se faz para aqueles lideres políticos que são absolutamente notáveis. Senti um orgulho tremendo de ter assistido a essa explicita declaração de admiração dos chineses pelo presidente Lula
Moro em Brasília e já tive a oportunidades de ver os presidentes Lula e Dilma em cerimônias oficiais. Mas nunca pensei que precisaria viajar para o outro lado do mundo para viver as emoções e o orgulho que tive nestes dias na China. Foram incríveis. Extraordinários!
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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