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Terra Sem Mal Comprometida e a urgência do Cinturão Verde Guarani

 

 

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Terra Sem Mal Comprometida e a urgência do Cinturão Verde Guarani

Jaraguá: Terra Sem Mal Comprometida

Artigo de Gabriel Mota

[EcoDebate] Com a reeleição de Bruno Covas (PSDB) como prefeito da cidade de São Paulo, o destino do PL 181 #CinturãoVerdeGuarani, que visa fortalecer políticas públicas municipais voltadas para a sustentabilidade ambiental e reconhecimento cultural e social de comunidades guarani presentes na cidade, permanece incerto em sua aprovação na Câmara Municipal.

Esperando algum posicionamento desde 2016, a gestão anterior de Bruno Covas não tomou uma atitude em relação a aprovação ou não do projeto de lei. Enquanto isso, as comunidades guarani da T.I Jaraguá enfrentam processo judicial referente a gestão de território, com alto risco de comprometimento de sua Terra sem Mal.

O destino incerto de aprovação do PL 181/2016 #CinturãoVerdeGuarani pode agravar o recente conflito em torno da gestão de terras envolvendo as comunidades mbyá-guarani da Terra Indígena Jaraguá e a construtora Tenda Negócios Imobiliários S/A, que, segundo avaliado em parecer técnico emitido pela 2ª Promotoria de Justiça do Meio Ambiente da Capital, desmatou um terreno de cerca de 20.000 m², na Rua Comendador José de Matos.

A derrubada de arvoredo, considerado sagrado pelos Mbyá-Guarani, próximo a três comunidades (aldeias) da Terra Indígena Jaraguá, foi realizada no intuito de erguer na região dois condomínios (Aicás e Carinás), totalizando onze edifícios com cerca de 880 unidades habitacionais, podendo trazer cerca de 4000 pessoas para as proximidades das aldeias. Além do empreendimento, idealizado nesse terreno desmatado, ainda é visado a construção de mais dois condomínios na região, Jurupis e Aratás, com mais cinco torres de 18 andares cada.

Embora o terreno do empreendimento não se localize dentro da Terra Indígena Jaraguá, o desmatamento da região impacta diretamente no modo e qualidade de vida das comunidades indígenas da região, pois a área do empreendimento visado encontra-se a menos de 8 km de uma das comunidades indígenas do Jaraguá, desestabilizando a gestão ecossistêmica do território, o que, caso o projeto siga adiante, gerará um impacto brutal no modo de vida das comunidades guarani.

Estas comunidades, presentes na cidade de São Paulo tanto na região Noroeste (Jaraguá) quanto no extremo sul (Parelheiros), possuem um modo de se lidar com o território e com o mundo diferente da lógica hegemônica da especulação imobiliária, resistindo e persistindo no ideal da multiculturalidade: No caso dos Guarani, este modo está intrinsicamente ligado, de acordo com a Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), com o Nhandereko (modo de ser/viver Guarani), este podendo ser exercido na busca pela Terra sem Mal.

A Terra sem Mal, na cultura Guarani, refere-se a um ou mais locais aonde os mesmos possam exercer plenamente o Nhandereko, ou seja, aonde possam reproduzir sua cultura: Logicamente, esta Terra sem Mal não pode ser caracterizada por qualquer território “desocupado”, mas sim por um território propício ao plantio, a caça e ao acesso aos recursos hídricos, com a promoção de uma política sustentável com o Meio Ambiente, o que, conforme exposto no documentário “Jaraguá: Terra sem Mal”, a busca por este “território de abundância” se torna cada vez mais difícil na cidade de São Paulo, aonde os remanescentes de Mata Atlântica – locais mais característicos da Terra sem Mal – estão sendo crescentemente afetados pelo desmatamento e especulação imobiliária.

No Jaraguá, no que cerne a preservação ambiental da região, o desmatamento de território limítrofe a Terra Indígena foi um dos muitos processos dos quais impactaram diretamente o Nhandereko Guarani, essencial para a reprodução cultural dos mesmos, pois a cada frente de expansão urbana na região, processo crescente desde pelo menos a década de 80, segue-se o desmatamento dos últimos remanescentes de Mata Atlântica da cidade de São Paulo, além de intensificar os processos de poluição dos rios e destruição da fauna local, o que implica em um não-cumprimento da Constituição Federal Brasileira, pois segundo parágrafo 1 do artigo 231:

São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.”

O desmatamento da região, embora autorizado pela Prefeitura e Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente, ocorreu de uma forma aonde não houve nenhum processo de licenciamento ambiental, tanto no âmbito estadual, pela Cetesb, quanto no âmbito federal, pelo Ibama, assim como não houve nenhum estudo de componente indígena, como é pressuposto pelo artigo 2º da Portaria Interministerial 60 de 2015, do Ministério do Meio Ambiente.

Este recente conflito, ainda não resolvido, reflete o descaso e desrespeito com que estão sendo tratados as comunidades indígenas, não apenas na cidade de São Paulo, mas no país de uma forma geral, por autoridades públicas governamentais e órgãos ambientais, os quais procurando mascarar suas intolerâncias, aludem a discursos e justificativas que visam desqualificar políticas públicas – garantidas pela Constituição Federal – voltadas ao beneficiamento de comunidades indígenas, a exemplo de políticas de demarcação de terras, como pode ser observado pela crescente defesa da tese do “marco temporal”, a qual, caso aprovada pelo STF, restringirá os direitos constitucionais dos povos indígenas no Brasil: Tal tese defende que as comunidades indígenas do país só teriam direito as terras que estavam sob sua posse, ou em disputa judicial, no dia 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.

Estes discursos apresentam-se por vezes muito semelhantes aos discursos utilizados pelas autoridades públicas do período colonial, que procuravam legitimar a usurpação de território indígena, desqualificando a cultura e identidade dos mesmos.

É importante destacar a existência de diversas comunidades na periferia de São Paulo. Elas estão invisíveis aos paulistanos, que ignoram existir um outro modo de vida, paralelo à correria do dia a dia da metrópole moderna.

Na região do Jaraguá, a aproximação com esse passado colonial é mais evidente do que parece: contornando o Morro do Jaraguá a Oeste, a partir da Via Anhanguera, logo após ultrapassar o Rodoanel Mario Covas, observa-se, ainda que uma região fortemente urbanizada, modestas manchas verdes de eucaliptos próximos a rodovia, com seu arvoredo circunscrevendo e protegendo as “sombras” de um passado remoto: vestígios de antigas cavas de mineração de ouro, com risco de desaparecimento em decorrência do crescente adensamento urbano, apresentam-se na paisagem como uma memória que remete ao período colonial da cidade de São Paulo.

Episódio da história da colonização do território paulistano pouco abordado e divulgado, as antigas explorações auríferas dos arredores do centro velho de São Paulo datam desde o primeiro século de colonização, precedendo a exploração aurífera de grande escala que ocorreu nas Minas Gerais no século XVIII.

Com um período de exploração que data desde a última década do século XVI até meados do século XIX, a mineração no Jaraguá foi realizada a partir da exploração de mão de obra indígena e posteriormente com a exploração da mão de obra africana, e sabe-se que, embora as minas de São Paulo não tenham produzido quantidades tão significativas do minério como ocorreu posteriormente nas Minas Gerais, os colonos que se ocuparam de explorar tais minas enriqueceram, dentro de um contexto regional, as custas do trabalho escravo.

A exploração aurífera durante o período colonial se assentou na escravidão e exploração da mão de obra indígena, sendo os principais afetados por essa exploração os denominados Carijós, etnônimo utilizado pelos colonos para se referir principalmente aos Guarani, escravizados em expedições que partiam de São Paulo em direção as regiões do antigo Guairá paraguaio e das missões jesuíticas do Tape, no sul do Brasil, expedições estas realizadas pelos paulistas conhecidos como “Bandeirantes”.

Com um longo período de mineração no Jaraguá realizado a partir da exploração da mão de obra indígena, principalmente Guarani, observa-se atualmente a persistência destes grupos em garantirem seu espaço cultural na região, embora este espaço se encontre cada vez mais reduzido e limitado em recursos, em decorrência da ação da especulação imobiliária, que crescentemente vai ocupando as áreas em torno do Morro do Jaraguá e, consequentemente, em torno das comunidades guarani.

O problema em torno da gestão de terras é usado por parte de aderentes de políticas extremistas para extinguir ou reduzir processos de demarcação e reconhecimento de terras indígenas e quilombolas. Para isso, esses radicais utilizam-se a presença de discursos que incentivam e propagam estigmas sociais preconceituosos em relação a imagem dessas populações, atribuindo aos mesmos adjetivos como “pré-históricos”, “improdutíveis” e “preguiçosos”, como ocorreu, por exemplo, em palestra no Clube Hebraica em abril de 2017, no Rio, por parte do atual Presidente Jair Bolsonaro, incentivando e disseminando tratamentos intolerantes e racistas contra estes grupos.

A intolerância contra grupos étnicos minoritários é reforçada por comentários do presidente da república: “cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós”. Essas ideias, concepções e percepções da realidade possuem raízes no período colonial. A construção da “paulistanidade” ocorreu a partir da intolerância com o diferente, com o extermínio e escravização das populações indígenas da região e com o encobrimento do trabalho indígena na construção da cidade de São Paulo, sacrificando vidas nos mais diversos ofícios e esferas da realidade colonial, como por exemplo na agricultura, na mineração, no transporte de cargas e de pessoas, na defesa do território, no fornecimento de gêneros alimentícios primários, através de sua experiencia com a caça, pesca e coleta, na composição das expedições em busca de minérios, na construção de obras públicas como templos e fortalezas, dentre outros ofícios exigidos dentro do contexto colonial. A população indígena foi a força motriz na construção da cidade de São Paulo, “verdadeira reserva de motores animados”, na triste expressão do geógrafo Pasquale Petrone.

A ausência na abordagem da história das populações indígenas em São Paulo (e no Brasil de forma geral) nos ambientes educacionais é outro reflexo do descaso, por parte das políticas públicas, em se valorizar e reconhecer a diversidade cultural existente na cidade de São Paulo, dificuldade em reconhecer outros modos de ser, de se pensar e de se lidar com o mundo, com o território e o meio ambiente.

Ignorar estes diferentes modos de se lidar com o mundo favorece o crescimento desordenado do desmatamento e especulação imobiliária, que pode ser observado através do recente conflito entre os guarani da T.I Jaraguá e a Construtora Tenda, aonde a questão judicial encontra-se atualmente com processo em tutela provisória pela 14ª Vara Cível Federal de São Paulo. Não obstante, o procurador Matheus Baraldi Magnani, procurando derrubar a liminar que impede a construtora na justiça federal, alega que a questão deve ser decidida na justiça estadual, e não no âmbito federal, pronunciando um discurso racista ao se referir aos Guarani da T.I Jaraguá, alegando que os mesmos “já se encontram profundamente vinculados à cultura ocidental, vez que integrados à vida urbana”, de modo a querer justificar e deslegitimar a identidade guarani do Jaraguá e, consequentemente, seus direitos ao território, como se apenas pelo fato de os mesmos se encontrarem na cidade houvesse a perda da identidade indígena: Não por acaso, esse tipo de discurso foi o mesmo utilizado, no século XIX, pelas autoridades públicas que visavam usurpar os territórios de populações indígenas presentes nas regiões periféricas de São Paulo, em decorrência da expansão urbana e metropolização da cidade, sendo as justificativas mais comuns a alegação de perda de identidade indígena por conta da miscigenação ou do contato assíduo com a “população urbana”.

Ainda, a diretoria da Tenda alega um tipo de “comoção polarizada” presente em redes sociais quanto ao empreendimento em si, ressaltando que entende as reinvindicações sociais das comunidades guarani e está disposta a contribuir com melhorias na região, com a doação de álcool gel e mascaras, construção de banheiros e lavatórios, e talvez uma expansão do sistema de saneamento básico para a Terra Indígena, alegando o estado de precariedade das aldeias.

Ora, para se adquirir direitos básicos, como o acesso a saneamento básico, os Guarani devem ceder as vontades da especulação imobiliária? Largar mão de seu modo de ser/viver, seu Nhandereko? É previsto na Constituição Federal Brasileira, artigo 21 parágrafo XX, que “Compete a União instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos”, assim como é previsto, no artigo 23, parágrafos IX e X, que É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico” assim como “combater as causas da pobreza e os fatores de marginalização, promovendo a integração social dos setores desfavorecidos”.

Fica evidente, na Constituição Federal, que cabe ao papel da União, do Estado de São Paulo e da Prefeitura em fornecer serviços de qualidade básica necessários para o bem-estar social, a exemplo referido acima, como saneamento básico, combate a pobreza e marginalização de grupos sociais minoritários. Por que então, observa-se em um conflito em torno da gestão de território, uma construtora justificando edificações próximas a comunidades indígenas com base em promessas de promover melhorias no saneamento básico da Terra Indígena? Sendo que o fornecimento destes serviços básicos, essenciais para o mínimo de dignidade humana, deveriam ser fornecidos no âmbito federal, estadual e/ou municipal?

Resumindo todos os fatores referentes as políticas indigenistas ocorridas nos últimos meses na região da T.I. Jaraguá: descaso das políticas de licenciamento e preservação ambiental, falta de diálogo com as comunidades guarani, declarações preconceituosas visando deslegitimar o território enquanto Terra Indígena, e negação de fornecimento de direitos básicos as populações indígenas enquanto cidadãos integrantes do “bem-estar social”. Todos esses fatores desrespeitam direitos constitucionais. Penso aqui que as políticas públicas destinadas as populações indígenas na metrópole paulista não se encontram tão distantes das políticas indigenistas do período colonial; conforme abordei anteriormente no texto, referindo-me as antigas cavas de mineração como testemunhos de um “passado remoto”, infelizmente o mesmo não se pode dizer em relação ao tratamento e respeito com os povos indígenas, que além de permanecerem no “passado remoto” insistiu em se manter no contemporâneo.

Para finalizar, aludindo ao título de meu texto, acudo ao duplo sentido da “Terra Sem Mal Comprometida”: primeiramente, refiro-me ao sentido de compromisso dos Guarani da T.I Jaraguá em instituir políticas de preservação e educação ambiental nas aldeias, a partir da recuperação de remanescentes de Mata Atlântica com base em saberes tradicionais, no cultivo de uma variedade genética de alimentos, na criação de abelhas nativas e no ecoturismo, dentre outras iniciativas que podem melhor serem visualizadas no site da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY); e, em um outro sentido oposto, “Comprometida” no sentido de “prejudicada”, por estar inserida em um contexto sociopolítico aonde os saberes tradicionais, as ideias e modos de vida divergentes são cada vez mais intolerados, assim como o território e o ambiente são cada vez mais ameaçados pelo crescimento desordenado da cidade, o que torna extremamente necessário insistir, para este novo período de gestão municipal de Bruno Covas, na aprovação do PL 181 #CinturãoVerdeGuarani, essencial para a preservação da diversidade cultural e ambiental na cidade de São Paulo.

Gabriel Mota é graduando em arqueologia pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG)

 

in EcoDebate, ISSN 2446-9394, 11/12/2020

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