Vulnerabilidades das unidades de conservação – Serra do Japi – Jundiaí – SP
As vulnerabilidades das unidades de conservação nos convidam a abandonar a ilusão de que decretos e tombamentos são suficientes. Eles são fundamentais, mas não bastam.
Artigo de Afonso Peche Filho*
À primeira vista, muitas unidades de conservação brasileiras transmitem a sensação de proteção consolidada. Há decretos de criação, planos de manejo, conselhos gestores, estudos técnicos, mapas detalhados. São divulgadas como “pulmões verdes”, “reservatórios de biodiversidade” ou “castelos das águas” de suas regiões.
A Serra do Japi, em Jundiaí (SP), se encaixa perfeitamente nesse retrato: é área tombada, reconhecida como patrimônio natural, inserida em unidades de conservação, alvo de pesquisas científicas e frequentemente apontada como referência em conservação em área metropolitana. Tudo parece indicar um território ambientalmente bem amparado.
No entanto, por trás dessa aparência de segurança, escondem-se vulnerabilidades profundas, que não aparecem nos mapas de uso da terra, mas se manifestam nas brechas institucionais, na lógica do desenvolvimento regional e na forma como a sociedade se relaciona com esses espaços protegidos.

Foto: Gerson Luz – Jundiaí – SP. Figura 1 – Panorâmica de um ponto no alto da Serra do Japi – Jundiaí – SP.
As vulnerabilidades mais conhecidas das unidades de conservação, e da própria Serra do Japi, são relativamente fáceis de descrever. Elas entram nos relatórios, diagnósticos e pareceres técnicos: pressão imobiliária nas bordas, fragmentação da cobertura vegetal, abertura de estradas e trilhas clandestinas, ocupação irregular em áreas de encosta, incêndios recorrentes, caça, coleta ilegal de flora e fauna, degradação de nascentes e cursos d’água. São ameaças visíveis, quantificadas em hectares desmatados, focos de calor, índices de turbidez da água, registros de infrações ambientais. Soma-se a isso o turismo e o lazer mal planejados, com aumento de veículos, lixo em trilhas, uso inadequado de áreas sensíveis, ruído e perturbação da fauna. No Brasil inteiro, de parques nacionais a reservas municipais, esse quadro se repete. Trata-se de uma vulnerabilidade real, concreta, que exige fiscalização, normas claras e ações diretas de manejo.
Contudo, essas fragilidades são apenas a camada mais superficial. As vulnerabilidades mais decisivas são as ocultas, aquelas que estruturam, silenciosamente, todas as demais. A primeira delas é a fragmentação da governança. A Serra do Japi está inserida em um mosaico de municípios com dinâmicas econômicas distintas, interesses políticos próprios e diferentes capacidades de gestão ambiental, situação que se repete em inúmeros outros territórios protegidos do país.
Normas federais, estaduais e municipais se sobrepõem, planos diretores urbanos nem sempre dialogam com os planos de manejo das unidades de conservação, e muitas decisões estratégicas são tomadas sem considerar as áreas protegidas como eixo estruturante da paisagem e da segurança hídrica.
Assim, a proteção é forte no discurso e frágil na prática: há legislação robusta, mas falta coordenação efetiva, articulação intermunicipal e visão de conjunto. Essa desarticulação institucional não aparece em foto de satélite, mas condiciona todas as decisões de ocupação do entorno do Japi e de tantas outras unidades de conservação brasileiras.
Outra vulnerabilidade oculta está na esfera orçamentária, um problema crônico no sistema de áreas protegidas do Brasil. A conservação do Japi, assim como de qualquer unidade de conservação, demanda ações permanentes: fiscalização, monitoramento hidrológico e de biodiversidade, recuperação de áreas degradadas, manutenção de estruturas de uso público, programas educativos, apoio à pesquisa, diálogo com comunidades do entorno.
Entretanto, grande parte dessas iniciativas depende de recursos instáveis, projetos pontuais, convênios temporários ou compensações ambientais negociadas caso a caso. Raramente há um compromisso financeiro de longo prazo proporcional à importância ecológica, social e econômica desses territórios. Quando o orçamento aperta, o meio ambiente costuma ser um dos primeiros setores a sofrer cortes, nos três níveis de governo. Assim, a proteção torna-se refém de ciclos políticos e econômicos, oscilando conforme prioridades de momento.
Sem previsibilidade de recursos, não há gestão consistente, nem na Serra do Japi, nem em muitas outras unidades de conservação espalhadas pelo país.
Somam-se a isso as vulnerabilidades ligadas às mudanças climáticas. A Serra do Japi é peça-chave na regulação hídrica e climática local, tal como inúmeros parques e reservas são fundamentais para a estabilidade de bacias hidrográficas e microclimas regionais.
No entanto, ainda é comum que o planejamento trate o clima como pano de fundo, e não como variável central. Aumento de temperatura média, estiagens mais prolongadas, eventos extremos de chuva e vento, maior risco de incêndios severos, mudanças na dinâmica da vegetação e da fauna tendem a alterar profundamente o funcionamento ecológico dessas áreas ao longo das próximas décadas.
Muitos instrumentos de gestão continuam baseados em um cenário climático do passado. Falta incorporar, na prática, o planejamento adaptativo: cenários de risco, protocolos específicos para incêndios em condições mais críticas, estratégias de conservação de água em períodos de estiagem prolongada, monitoramento sistemático de indicadores sensíveis ao clima.
A vulnerabilidade climática permanece, assim, parcialmente invisível na rotina das políticas públicas, tanto no Japi quanto em outras unidades de conservação brasileiras.
Há também uma dimensão simbólica e social das vulnerabilidades ocultas. Grande parte da população urbana que depende da água, do clima mais ameno e dos serviços ambientais da Serra do Japi e de outras áreas protegidas não percebe essa dependência. As unidades de conservação são vistas, muitas vezes, como “cartão-postal”, local de passeio eventual, ou até como obstáculo ao “progresso” imobiliário, agropecuário e logístico.
Quando isso acontece, a base social de sustentação da conservação se fragiliza. Poucos se mobilizam quando um zoneamento é flexibilizado, quando um corredor ecológico é interrompido, quando um licenciamento amplia a pressão sobre a zona de amortecimento. Sem uma consciência coletiva de que a Serra do Japi, o parque vizinho, a reserva florestal da cidade são parte da infraestrutura essencial da região, tão vitais quanto estações de tratamento de água ou redes de energia, a conservação passa a depender de nichos de militância, e não de um pacto social mais amplo.
Essa visão estreita é reforçada pela pressão do desenvolvimento econômico regional, que não é exclusividade de Jundiaí. Em todo o Brasil, unidades de conservação convivem com projetos de condomínios, loteamentos, mineração, agronegócio intensivo, galpões logísticos, parques industriais e ampliações viárias.
O discurso dominante costuma apresentar essas obras como sinônimo de emprego, arrecadação e progresso. A floresta, o campo nativo, o brejo ou o manguezal aparecem como “área ociosa” ou “potencial a ser aproveitado”. Nesse cenário, a vulnerabilidade é cognitiva: a lógica que orienta decisões trata o meio ambiente como custo e a supressão de vegetação como oportunidade.
Enquanto isso, o valor econômico dos serviços ecossistêmicos, água em quantidade e qualidade, regulação térmica, controle de erosão, estabilidade de encostas, proteção contra eventos extremos, atratividade turística, permanece subestimado ou simplesmente ignorado nas análises de viabilidade.
Diante desse quadro, falar em investimentos necessários para a gestão das vulnerabilidades da Serra do Japi e das demais unidades de conservação significa ir muito além de aumentar o número de fiscais ou placas de proibição. Implica mudar a forma de planejar o território e de entender o que é “investimento”.
Investir em governança é garantir que sistemas de proteção tenham estrutura técnica, autonomia e capacidade de articular municípios, Estados, União, iniciativa privada e sociedade civil. É alinhar planos diretores urbanos, planos de recursos hídricos, de saneamento e de conservação, tendo as áreas protegidas como referência comum. Investir em monitoramento e ciência é assegurar séries históricas de dados sobre água, vegetação, fauna, clima, uso público, de forma a tomar decisões baseadas em evidências.
Investir em instrumentos econômicos significa criar mecanismos permanentes de pagamento por serviços ambientais, incentivos para proprietários que mantêm ou restauram florestas estratégicas, fundos específicos para proteção de mananciais, taxas e compensações vinculadas à restauração ecológica de alta qualidade.
Nessa perspectiva, investimento não é gasto, é seguro: um seguro ecológico contra o colapso hídrico e climático futuro. Por fim, investir em educação, comunicação e participação social é trabalhar para que a Serra do Japi e as demais unidades de conservação deixem de ser apenas pano de fundo verde na paisagem e se tornem parte da identidade cotidiana da população.
As vulnerabilidades das unidades de conservação, exemplificadas pela realidade da Serra do Japi, nos convidam a abandonar a ilusão de que decretos e tombamentos são suficientes. Eles são fundamentais, mas não bastam.
Enquanto áreas protegidas forem tratadas como ilhas isoladas em meio ao avanço desordenado do entorno, enquanto a gestão depender de recursos incertos, enquanto o clima for ignorado como fator estruturante e enquanto a sociedade não reconhecer que sua qualidade de vida está diretamente ligada à saúde desses territórios, a conservação seguirá vulnerável. Enfrentar essas vulnerabilidades é um exercício de maturidade coletiva: é admitir que proteger a Serra do Japi e tantas outras unidades de conservação não é impedir o desenvolvimento, mas escolher um modelo de desenvolvimento que não destrua, pouco a pouco, a base ecológica que nos sustenta.
* Pesquisador Científico do Instituto Agronômico de Campinas – IAC
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in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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