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Mudança climática aumenta os riscos de doenças zoonóticas, inclusive no Brasil

 

Aedes aegypti

Pesquisa inédita do Museu de História Natural de Londres analisa 816 doenças zoonóticas e mostra complexidade da relação entre aquecimento global e infecções

Estudo científico revela que apenas 6% das doenças transmitidas de animais para humanos foram investigadas quanto aos efeitos das mudanças climáticas, e os resultados são mais variados do que se imaginava

À medida que a Terra se aproxima de 1,5°C de aquecimento acima dos níveis pré-industriais, uma nova pesquisa científica revela uma verdade incômoda: não sabemos realmente como as mudanças climáticas estão influenciando o risco de contrair doenças transmitidas por animais. E o cenário é muito mais complexo do que geralmente se imagina.

Um mundo mais quente transformará padrões climáticos, alterará habitats e modificará a distribuição de muitos animais. Isso aproximará diferentes populações de humanos e animais silvestres, aumentando o risco de doenças zoonóticas saltarem entre as espécies. No entanto, uma análise abrangente de centenas de estudos científicos mostra que os impactos exatos são difíceis de prever.

Apenas 6% das doenças zoonóticas foram estudadas

O estudo, publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences e liderado pelo pesquisador Artur Trebski, analisou 816 doenças zoonóticas conhecidas que afetam seres humanos. O resultado é alarmante: o efeito das mudanças climáticas foi investigado em apenas cerca de 6% dessas enfermidades.

Mesmo nas doenças onde os riscos climáticos foram estudados, há grande variabilidade nos resultados. Enquanto temperaturas mais altas foram associadas a um risco maior de doenças em alguns casos, isso não é uma regra universal. Para chuvas e umidade, os resultados são ainda menos claros.

“Às vezes é sugerido que as mudanças climáticas tornarão as doenças transmitidas por animais piores para os humanos, mas nossa pesquisa mostra que é muito mais complexo do que isso”, explica Artur Trebski. “Vemos tanta variação, mesmo dentro da mesma doença, que precisamos de muito mais nuance em como resumimos os impactos futuros das mudanças climáticas na saúde.”

A temperatura nem sempre age da mesma forma

A pesquisa identificou que, embora as doenças zoonóticas sejam geralmente sensíveis ao clima, elas respondem às mudanças de maneiras muito diferentes. As conexões mais fortes foram entre doenças transmitidas por animais e temperatura, com temperaturas mais altas quase duas vezes mais propensas a aumentar o risco de infecção do que a diminuí-lo.

Porém, a relação não é tão simples quanto parece. Uma mesma doença pode ter respostas diferentes à temperatura dependendo da situação específica.

O Dr. David Redding, que lidera a pesquisa sobre biodiversidade e saúde no Museu de História Natural de Londres, usa a peste como exemplo: “A peste é causada por uma bactéria que circula entre roedores e as pulgas que se alimentam deles. É fortemente influenciada pela temperatura. Condições mais quentes podem aumentar as populações de roedores em algumas regiões e acelerar o desenvolvimento das pulgas, o que pode aumentar as oportunidades de transmissão.”

No entanto, essa relação não é linear. Em temperaturas mais altas, a peste é transmitida com menos eficiência porque as condições que permitem que a pulga se torne infecciosa se deterioram. Além de certo ponto, o aquecimento adicional na verdade reduz a propagação da peste.

O caso dos mosquitos, morcegos e roedores

A ligação entre doenças zoonóticas e temperatura também depende do animal que as transmite. Enquanto condições mais quentes tendem a levar a mais mosquitos e, consequentemente, mais doenças, não há uma compreensão tão boa de como isso impactaria morcegos e roedores, provavelmente porque os mecanismos que ditam sua propagação são mais complexos.

Para o Brasil, isso tem implicações diretas. O Ministério da Saúde já alertou que o aquecimento global está alterando o comportamento das doenças infecciosas, exigindo novas respostas dos sistemas de saúde. Doenças como dengue, zika, chikungunya e o vírus oropouche estão expandindo suas áreas de ocorrência.

O caso do oropouche é emblemático: antes concentrado na região amazônica, o vírus se espalhou pelo Brasil. A dengue, por sua vez, atinge hoje países que não tinham registro da doença, como Uruguai e Itália.

Chuvas e umidade: um quebra-cabeças climático

Ficou menos claro como doenças e outros fatores climáticos, como chuvas e umidade, estão ligados. Enquanto mudanças de temperatura tendem a afetar animais de maneiras mais previsíveis, mudanças nas chuvas e umidade levam a impactos mais variados.

“Chuvas e umidade podem afetar organismos de várias maneiras”, explica Artur Trebski. “Por um lado, inundações repentinas podem criar ambientes aquáticos perfeitos para a reprodução de mosquitos, mas também podem eliminar os habitats de reprodução que eles já têm.”

No caso dos ratos, as chuvas podem levar a maior disponibilidade de alimentos, aumentando assim o tamanho de sua população, mas chuvas excessivas podem danificar ou destruir suas tocas. Há tantas maneiras diferentes pelas quais chuvas e umidade afetam a vida selvagem que elas obscurecem umas às outras, tornando difícil identificar um padrão consistente.

O Brasil na linha de frente das mudanças

Ao examinar como o impacto de diferentes doenças é afetado por diferentes aspectos do clima, a equipe usou essas informações para olhar para o futuro. Eles descobriram que doenças zoonóticas ligadas positivamente à temperatura provavelmente se tornarão mais proeminentes, já que a maioria é encontrada em áreas que verão aumentos substanciais de temperatura nas próximas décadas.

Para o Brasil, que abriga ecossistemas altamente vulneráveis e uma das maiores biodiversidades do planeta, os desafios são duplos: conter a expansão de vetores e reforçar a capacidade do Sistema Único de Saúde (SUS) de responder a emergências climáticas.

Brasil apresenta plano inédito após a COP30

O país apresentou o AdaptaSUS, na COP30, um plano inédito de adaptação do setor de saúde às mudanças climáticas. Entre as medidas previstas está a reorganização da rotina das unidades de saúde e hospitais em períodos de calor extremo.

Estão sendo estudados novos horários de atendimento, escalas de descanso e protocolos clínicos para ajustar doses de medicamentos devido ao aumento das temperaturas. O plano prevê recursos para garantir a operação das unidades e a continuidade da assistência em situações críticas, fortalecer ciência e tecnologia, e aprimorar a vigilância em saúde. “A crise climática é um problema de saúde pública. Hoje, no mundo, um a cada 12 hospitais paralisa atividades por causa de eventos climáticos extremos. Para nós, debater saúde e clima é questão de equidade. Precisamos de um sistema que se antecipe, responda e se adapte às mudanças climáticas para garantir atendimento a todos”, destacou o ministro Alexandre Padilha (Saúde).

O plano brasileiro inclui:

1. Vigilância Climática e Sanitária Integrada Criação de sistema capaz de cruzar dados da saúde e do meio ambiente, permitindo que estados e municípios identifiquem com antecedência riscos como ondas de calor, aumento da poluição, mudanças na qualidade da água e proliferação de doenças vetoriais.

2. Protocolos de Resposta Rápida Desenvolvimento de ações coordenadas baseadas em alertas climáticos, como suspensão temporária de atividades ao ar livre quando os níveis de poluentes ultrapassarem limites seguros.

3. Formação de Profissionais O Brasil ainda é incipiente na formação de profissionais para enfrentar esses desafios. Apenas em 2024 o Ministério da Saúde publicou o primeiro protocolo sobre clima e saúde.

A importância da pesquisa padronizada

Muitas das conexões entre mudanças climáticas e doenças também são obscurecidas por diferentes padrões de pesquisa, que dificultam a comparação dos resultados de muitos estudos. O Dr. David Redding enfatiza que a pesquisa em saúde pública precisa se afastar de “uma abordagem única para todos”.

“As mudanças climáticas são um processo abrangente que afetará quase todos os seres vivos do planeta”, diz Redding. “O fato de não haver uma maneira consistente de examinar como diferentes animais e as doenças que eles carregam são afetados por esse processo é realmente surpreendente.”

Para melhorar a compreensão de como as mudanças climáticas afetarão ainda mais essas doenças, a equipe pediu aos pesquisadores que relatem um conjunto consistente de dados que possam ser comparados com mais facilidade. Eles também esperam começar a construir uma ideia de como essas doenças já mudaram mergulhando no passado.

O papel dos museus e da ciência

“Esperamos começar a sequenciar espécimes de museus para nos ajudar a construir informações sobre como os patógenos já se adaptaram às mudanças climáticas do século passado”, acrescenta o Dr. Redding. “Ao entender sua história, estaremos em melhor posição para antecipar as maneiras mais complexas como essas doenças podem mudar no futuro.”

Essa abordagem inovadora reconhece que os museus de história natural guardam tesouros científicos que podem revelar como organismos e doenças responderam a mudanças ambientais ao longo do tempo.

Estimativas globais e impacto no Brasil

A Organização Mundial da Saúde estima que, entre 2030 e 2050, as mudanças climáticas causarão mais de 250 mil mortes adicionais por ano, principalmente devido a doenças respiratórias, desnutrição, malária e estresse por calor.

Os indivíduos estão cada vez mais expostos ao aumento do calor, eventos climáticos extremos e um risco elevado de transmissão de doenças infecciosas, como dengue, zika, chikungunya, leptospirose e doenças diarreicas. Além disso, o aumento de queimadas e da poluição do ar leva à exacerbação de doenças como asma e bronquite.

No Brasil, episódios recentes como as enchentes no Rio Grande do Sul e as queimadas no Pantanal demonstram a urgência de sistemas de resposta integrados. O Rio de Janeiro desenvolveu o primeiro protocolo municipal de resposta ao calor após a morte de uma jovem durante um show em 2023, modelo que já inspira outras cidades brasileiras.

O que esperar do futuro?

A principal conclusão da pesquisa é clara: precisamos de muito mais pesquisa e de uma abordagem mais padronizada para entender verdadeiramente como as mudanças climáticas afetarão as doenças. Não é simplesmente uma questão de “aquecimento = mais doenças”. A realidade é muito mais complexa e varia significativamente dependendo da doença específica, da região, dos animais envolvidos e de múltiplos fatores climáticos interagindo.

Para profissionais de saúde, formuladores de políticas e o público em geral, isso significa que devemos estar preparados para uma variedade de cenários e investir em sistemas de vigilância robustos que possam detectar e responder rapidamente a mudanças nos padrões de doenças.

O Dr. Redding conclui: “Espero que este estudo seja o começo de levar as pessoas em direção a uma estrutura de pesquisa comum que nos permita agir de maneira mais coordenada. Ao entender melhor as nuances dessas relações, estaremos em melhor posição para fazer medidas de controle eficazes.”

Fonte: The Natural History Museum, London

Referência:

A. Trebski, L. Gourlay, R. Gibb, N. Imirzian, & D.W. Redding, Climate sensitivity is widely but unevenly spread across zoonotic diseases, Proc. Natl. Acad. Sci. U.S.A. 122 (50) e2422851122, https://doi.org/10.1073/pnas.2422851122 (2025).

 

Citação
EcoDebate, . (2025). Mudança climática aumenta os riscos de doenças zoonóticas, inclusive no Brasil. EcoDebate. https://www.ecodebate.com.br/2025/12/18/mudanca-climatica-aumenta-os-riscos-de-doencas-zoonoticas-inclusive-no-brasil/ (Acessado em dezembro 18, 2025 at 16:33)

 
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
 

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