Estudo revela transição da Amazônia para regime “hipertropical”

Pesquisa mostra que floresta amazônica está evoluindo para condições climáticas extremas, com secas intensas que ameaçam mortalidade de 55% das árvores até 2100
Cientistas alertam que Amazônia pode se tornar emissora líquida de carbono com aumento de dias de “seca quente” das atuais semanas para 150 dias anuais nas próximas décadas, comprometendo capacidade do planeta de absorver CO2
A floresta amazônica está atravessando uma transformação climática alarmante que pode mudar irreversivelmente o maior bioma tropical do planeta.
Um estudo revolucionário publicado na revista Nature por cientistas da Universidade da Califórnia, Berkeley, revela que a Amazônia está lentamente transitando para um novo regime climático denominado “hipertrópicos” — condições de calor extremo e secas intensas não observadas na Terra há cerca de 40 milhões de anos.
O que são os hipertrópicos e por que ameaçam a Amazônia
Os pesquisadores definem hipertrópicos como regiões que ultrapassam o percentil 99 das temperaturas históricas tropicais, caracterizadas por secas mais frequentes e intensas. Atualmente, essas condições extremas ocorrem apenas durante alguns dias ou semanas ao ano, principalmente durante eventos climáticos excepcionais. Porém, as projeções indicam um cenário devastador.
Se a sociedade continuar emitindo altos níveis de gases de efeito estufa, as condições de seca quente podem se tornar prevalentes em toda a Amazônia até 2100, ocorrendo mesmo durante a estação chuvosa. O estudo documenta que essas condições hipertropicais aumentam a taxa normal de mortalidade de árvores em 55%.
Secas históricas consecutivas: um novo normal?
O Brasil testemunhou em anos recentes uma sucessão de secas devastadoras que confirmam as previsões científicas. A seca histórica de 2023 causou a maior queda nos níveis dos rios já registrada na região amazônica. No Rio Negro, o nível da água no porto de Manaus atingiu 12,70 metros em 2023, o menor índice desde o início da série histórica em 1902.
Em 2024, a situação se tornou mais grave. Em 3 de outubro de 2024, a cota do Rio Negro chegou a 12,69 metros, quebrando o recorde anterior de 12,70 metros durante a seca de 2023. Dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) mostram que mais da metade dos municípios da Amazônia Legal passou o ano de 2024 inteiro em situação de seca.
Impactos humanos e ambientais devastadores
As consequências vão muito além dos números. A seca extrema na Amazônia levou à morte de 209 botos no lago Tefé e em Coaraci, em razão da alta temperatura dos lagos. No dia 28 de setembro de 2023, quando a temperatura da água atingiu 39,1°C, 70 botos morreram em um único dia — uma catástrofe ambiental sem precedentes.
Para as comunidades humanas, o impacto é igualmente severo. Cerca de 62 municípios do Amazonas entraram em estado de emergência durante a seca de 2023, com populações ribeirinhas e indígenas enfrentando isolamento total devido à impossibilidade de navegação nos rios. Em 2024, aproximadamente 69% dos municípios da Amazônia Legal foram atingidos pela seca, com 92% das terras indígenas afetadas.
O mecanismo de morte das árvores
O estudo da UC Berkeley desvendou os processos fisiológicos que levam à morte das árvores em condições hipertropicais. Quando o conteúdo de umidade do solo por volume diminui para cerca de um terço, as árvores ou desligam a captura de carbono, morrendo de ‘fome’, ou desenvolvem bolhas de ar em sua seiva, semelhantes a embolias que causam derrames em humanos.
Durante a pesquisa, que combinou dados de dois locais de monitoramento durante as secas de 2015 e 2023 causadas pelo El Niño, os cientistas identificaram um limiar crítico. Quando a umidade do solo caiu abaixo de 0,32, cerca de um terço dos poros do solo preenchidos com água, as taxas de transpiração das árvores despencaram rapidamente, levando ao aumento do estresse hidráulico.
As árvores de crescimento rápido são mais afetadas do que as de crescimento lento. Isso significa que, à medida que o número de dias de alto estresse térmico aumenta, as florestas amazônicas experimentarão uma mudança nas espécies arbóreas se essa transição puder ocorrer rápido o suficiente em um ambiente em rápida transformação.
Do El Niño ao aquecimento global: causas múltiplas
Estudo da Rede Mundial de Atribuição (WWA) apontou que, com o clima 1,2°C mais quente que na época pré-industrial, as secas meteorológicas na Amazônia poderão ocorrer a cada 100 anos e serão 10 vezes mais prováveis na região. As secas agrícolas, relacionadas à umidade do solo, tornaram-se 30 vezes mais prováveis.
Embora o fenômeno El Niño contribua para as secas, estudos recentes indicam que o aquecimento global é o principal responsável. Pesquisadores concluíram que 75% da influência sobre a seca seriam do aquecimento global, contra apenas 25% do El Niño. O aquecimento excepcional do Oceano Atlântico Tropical Norte também desempenha papel fundamental, intensificando os padrões de circulação atmosférica que inibem a formação de chuvas.
Desmatamento amplifica a crise
O desmatamento não apenas libera carbono armazenado, mas também reduz a capacidade da terra de reter água, tornando as áreas devastadas mais suscetíveis à seca. Quanto menor a quantidade de árvores para fazer o processo de evapotranspiração, a geração de vapor de água para a atmosfera diminui o percentual de chuvas, com consequente aumento na temperatura na região.
Contudo, há um sinal positivo. Dados oficiais mostram que a Amazônia registrou em 2024 o menor nível de desmatamento em quase uma década, com redução de 30,6% até julho em comparação ao período anterior. No Cerrado, o desmatamento caiu 26%, a menor taxa desde 2019.
Projeções catastróficas para 2100
As previsões são alarmantes. Usando dados publicados de cinco modelos diferentes do sistema terrestre, os pesquisadores concluíram que a floresta tropical está mudando para um estado mais quente sem análogo contemporâneo, embora similar às condições tropicais quando a Terra era muito mais quente entre 10 e 40 milhões de anos atrás.
As condições de seca quente que impulsionam a elevada mortalidade de árvores devem emergir frequentemente durante uma estação seca típica em 20 a 40 anos. Mas a projeção mais preocupante é que, até 2100, os dias extremos de seca quente não estarão mais confinados ao pico da estação seca, mas ocorrerão cada vez mais ao longo de todo o ano, incluindo durante os meses mais úmidos.
Amazônia: de sumidouro a emissor de carbono
A transição para condições hipertropicais pode comprometer fundamentalmente o papel da Amazônia como sumidouro global de carbono. As florestas tropicais em todo o mundo absorvem mais emissões de carbono humanas do que qualquer outro bioma. Relatórios recentes encontraram um aumento no dióxido de carbono atmosférico após secas severas na Amazônia, demonstrando que o clima nos trópicos têm impacto mensurável no orçamento de carbono do planeta.
Em 2024, a Amazônia estabeleceu um recorde alarmante. A degradação florestal gerada pelos incêndios foi responsável pela liberação de 791 milhões de toneladas de dióxido de carbono, um número sete vezes maior comparado à média dos dois anos anteriores. Pela primeira vez na história, as emissões de carbono diretamente relacionadas aos incêndios superaram as provenientes do desmatamento.
Urgência da adaptação climática
Especialistas enfatizam que governos de todas as esferas não podem mais esperar a crise bater à porta para agir. O Brasil possui o Plano Nacional de Adaptação à Mudança do Clima, criado em 2016, mas sua execução permanece incompleta. Em 2024, das nove capitais da Amazônia Legal, apenas Rio Branco possuía um Plano Municipal de Mudanças Climáticas.
Cientistas recomendam medidas urgentes: fortalecimento de intervenções governamentais para apoiar comunidades na preparação para secas intensificadas, aceleração da agenda de desmatamento zero, promoção da restauração florestal em grande escala, e implementação de sistemas de captação de água da chuva e acesso a recursos para tratamento de água.
Expansão global do fenômeno hipertropical
As condições hipertropicais não se limitarão à Amazônia. É provável que as condições hipertropicais apareçam fora da Amazônia, nas florestas tropicais da África Ocidental e em todo o Sudeste Asiático. Isso representa uma ameaça global aos ecossistemas tropicais e à capacidade da Terra de mitigar as mudanças climáticas.
A janela de oportunidade está se fechando
O diretor do estudo, Jeff Chambers, da UC Berkeley, foi enfático ao afirmar que o pior dos resultados ocorrerá se a sociedade fizer muito pouco para reduzir as emissões de dióxido de carbono que provocam as mudanças climáticas. “Depende de nós até que ponto vamos realmente criar este clima hipertropical”, alertou, advertindo que a continuidade das emissões descontroladas de gases de efeito estufa acelerará a chegada desse novo regime climático.
O ano de 2025 está a caminho de se tornar um dos mais quentes já registrados, com a temperatura média anual cerca de 1,6°C acima da média do período pré-industrial.
Um ponto de não retorno à vista
A transição da Amazônia para um regime hipertropical representa um dos sinais mais alarmantes das mudanças climáticas globais. Com apenas uma fração de grau adicional de aquecimento causado pela queima de combustíveis fósseis, o risco de seca na Amazônia continuará aumentando, independentemente do El Niño.
A floresta amazônica, que por milhões de anos funcionou como reguladora do clima global e repositório de biodiversidade incomparável, está se aproximando de um ponto de virada catastrófico.
As próximas duas décadas serão decisivas para determinar se a humanidade conseguirá evitar que a maior floresta tropical do mundo se transforme em uma fonte líquida de carbono, amplificando ainda mais o aquecimento global e comprometendo o futuro climático de todo o planeta.
O alerta científico está dado. A ação urgente não é mais uma opção, mas uma necessidade existencial para preservar a Amazônia e, com ela, a estabilidade climática da Terra.

Um conjunto de sensores integrados e medições de equipes de campo em nosso sítio central na Amazônia possibilitou novas descobertas sobre os impactos da seca nas florestas. In “Hot droughts in the Amazon provide a window to a future hypertropical climate” – https://doi.org/10.1038/s41586-025-09728-y
Referência:
Chambers, J.Q., Nogueira Lima, A.J., Pastorello, G. et al. Hot droughts in the Amazon provide a window to a future hypertropical climate. Nature (2025). https://doi.org/10.1038/s41586-025-09728-y
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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