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COP30 entre o reducionismo das críticas e o sentido civilizatório do multilateralismo

 

Cop30
Foto: EBC/ABr

 

A COP30 não foi apenas uma reunião técnica, ela funcionou como um raro espaço de convivência entre culturas, interesses, formas de conhecimento e projetos de sociedade diversos

Reinaldo Dias
Articulista do EcoDebate, é Doutor em Ciências Sociais -Unicamp
Pesquisador associado do CPDI do IBRACHINA/IBRAWORK
Parque Tecnológico da Unicamp – Campinas – Brasil
http://lattes.cnpq.br/5937396816014363
reinaldias@gmail.com

A COP30 ocorreu num período em que a governança global atravessa um momento decisivo. Não se trata apenas da sobreposição de crises que incluem guerras prolongadas, genocídios transmitidos em transmissões ao vivo, deslocamentos forçados, degradação ambiental acelerada, desigualdade crescente e desmonte de serviços públicos essenciais; mas a situação tem se agravado devido a ação planejada de forças políticas que atuam para desestruturar os pilares da cooperação internacional. A extrema-direita global, reorganizada em redes transnacionais que se alimentam de desinformação, teorias conspiratórias e manipulação do medo, conseguiu normalizar discursos e práticas que deveriam ser socialmente inaceitáveis, como o racismo explícito, misoginia agressiva, xenofobia aberta, discriminação religiosa, perseguição a minorias e a redução da política a insultos e intimidações. Episódios emblemáticos, como a invasão do Capitólio nos Estados Unidos, o ataque violento às instituições democráticas no Brasil de 08 de janeiro, o genocídio do povo palestino perpetrado pelo primeiro-ministro israelense, o avanço de grupos extremistas na Alemanha e na França, ou as políticas anti-imigração extremas na Hungria e na Itália, ilustram como essa onda autoritária vem corroendo democracias e espalhando insegurança social. Em muitos países, legisladores eleitos com votos democráticos operam para enfraquecer instituições, relativizar direitos humanos e desmantelar políticas ambientais.

Essa ofensiva autoritária tem impacto direto sobre a governança climática. O negacionismo, agora institucionalizado em partidos e governos, não é apenas resistência ideológica, é uma ferramenta política. Governos como o dos Estados Unidos atualmente, e da Argentina, com sua guinada ultraliberal, demonstram como agendas extremistas utilizam o combate às mudanças climáticas como alvo preferencial para desacreditar ciência, compromissos internacionais e direitos socioambientais. A postura norte-americana de anunciar uma nova saída do Acordo de Paris e ausentar-se da COP30 simboliza essa ruptura. No entanto, a conferência não foi paralisada, ao contrário, 195 países negociaram normalmente, deliberaram e avançaram em vários temas centrais. A realização da COP30, mesmo com a tentativa de desestabilização representada pela ausência dos Estados Unidos, confirma a capacidade de resistência do multilateralismo. A presença de estados, cidades e consórcios subnacionais norte-americanos, como Califórnia, Nova York, Nova Inglaterra, Los Angeles e Nova Orleans, reafirmou, por contraste, que há na sociedade norte-americana forças democráticas maduras o suficiente para se contrapor ao retrocesso federal.

Situar a COP30 nesse cenário é essencial. A conferência ocorreu não apenas na Amazônia, mas no centro simbólico de um mundo que disputa a própria definição de humanidade, se ela será coletiva e cooperativa ou individualista e regressiva. Ainda assim, boa parte das análises iniciais ao fim do evento de Belém, se apega ao reducionismo habitual de considerar cada COP um fracasso se não houver um grande acordo espetacular. Esse tipo de crítica, embora compreensível diante da gravidade da crise climática, perde de vista o que as COPs realmente são. Representam arenas complexas, heterogêneas e profundamente políticas, onde países com trajetórias históricas distintas tentam construir algum nível de consenso possível. O reducionismo, ao transformar crises complexas em julgamentos imediatos, impede que se compreenda o que a COP30 realmente revelou. Avaliar uma COP exclusivamente pelo texto final é uma forma de negar toda a negociação que acontece nos bastidores, ignorando inventividade diplomática, resistência institucional, mobilização social e os inúmeros avanços invisíveis que sustentam a arquitetura global do clima. Além disso, as realizações das COPs mantêm aceso o debate, as pesquisas e mobilizações sobre as mudanças climáticas que ocorrem durante o ano todo, em todas as partes do planeta; é um movimento contínuo que não se esgota na realização formal de cada conferência.

Belém deixou isso mais nítido do que outras conferências. A COP30 não foi apenas uma reunião técnica, ela funcionou como um raro espaço de convivência entre culturas, interesses, formas de conhecimento e projetos de sociedade diversos. Povos indígenas amazônicos e do mundo todo, quilombolas, movimentos de juventude, lideranças de pequenos Estados insulares, cientistas, prefeitos, governadores, ONGs, ativistas ambientais, sindicatos e diplomatas experientes se encontraram nesse mesmo território amazônico para discutir futuro, direitos, adaptação, mitigação e sobrevivência coletiva. Essa pluralidade é o que transforma a COP em um espaço civilizatório, onde divergências profundas podem existir, mas onde ainda é possível conversar.

Essa convivência ocorreu sob tensões reais. As tempestades amazônicas que interromperam as atividades por horas funcionaram como metáfora de um planeta em crescente instabilidade. Nos corredores, as negociações sobre combustíveis fósseis expuseram novamente o poder das grandes empresas de petróleo e dos países petroleiros, capazes de bloquear avanços que a ciência considera urgentes. O Brasil, anfitrião da conferência, também se viu no centro de suas próprias contradições, como liderança global na diplomacia climática, defensor de direitos territoriais indígenas e das florestas, mas simultaneamente promotor da expansão petrolífera, inclusive na foz do Amazonas. Esse dilema ecoou nas críticas de organizações sociais e ambientais brasileiras, que denunciaram a incoerência entre discurso e prática, crítica válida e necessária em uma democracia.

Mesmo assim, a COP30 produziu resultados expressivos. O Pacote Belém estruturou um mecanismo de transição justa, reconheceu a importância das florestas tropicais e ampliou compromissos de adaptação. Para países como Fiji, Vanuatu, Ilhas Marshall ou Seychelles, que enfrentam literalmente a extinção territorial diante da elevação do nível do mar, esses avanços são uma questão de sobrevivência. A presença ativa desses países na COP30 mostrou novamente que, no regime climático, tamanho não determina influência. Mais uma vez, pequenos Estados insulares foram a consciência moral da conferência, denunciando a injustiça climática extrema que ameaça populações inteiras.

Outro avanço importante foi a inclusão inédita de questões de gênero e da situação de populações afrodescendentes no documento final. Esse reconhecimento foi histórico, pois pela primeira vez, uma COP realizada na Amazônia incluiu desigualdades raciais e de gênero como componentes estruturais da crise climática. Essa inclusão dialoga com experiências concretas, com mulheres liderando proteção de manguezais no Quênia e em Bangladesh, comunidades quilombolas brasileiras defendendo biomas sob pressão de mineração e agronegócio, movimentos feministas indígenas da Guatemala e do Equador denunciando violência ambiental, populações negras de Nova Orleans enfrentando tempestades extremas agravadas pelo racismo estrutural. A COP30, ao reconhecer esses temas, ampliou a interpretação da crise climática como crise de justiça.

Esses avanços, contudo, não eliminam frustrações. A proteção das florestas, questão central para uma COP sediada na Amazônia, ficou aquém do protagonismo esperado, e a meta global florestal não avançou na escala necessária. Ainda assim, o lançamento do Fundo Tropical Forests Forever (TFFF) sinalizou um esforço renovado para remunerar países detentores de grandes florestas tropicais por serviços ecossistêmicos essenciais ao planeta. Mas o descompasso entre ambição e entrega não se limita às florestas; ele reaparece com força no financiamento climático. Países desenvolvidos ficaram distantes das expectativas nesse campo, e a distância entre promessas e entregas continua sendo um dos nós mais difíceis de desfazer. Isso se evidenciou quando países historicamente responsáveis pelas emissões optaram por discursos vagos e generalistas, em vez de compromissos financeiros vinculantes. A persistente assimetria de responsabilidade histórica continua pesando sobre países vulneráveis.

Mesmo assim, a conferência revelou algo mais profundo. Belém expôs o paradoxo central do nosso tempo, ao mesmo tempo em que testemunhamos a erosão mais grave do multilateralismo a humanidade nunca precisou tanto dele. A COP30 mostrou que, apesar de governos autoritários, retrocessos democráticos, anticientificismo e violência política, ainda existe espaço para negociação, diálogo e construção coletiva. Pequenos países exigiram respeito; jovens lembraram aos negociadores que não há futuro possível sem emissões zero; povos indígenas reivindicaram territórios; cidades apresentaram soluções locais; organizações ambientais trouxeram evidências; e comunidades historicamente marginalizadas foram mencionadas no texto final.

Avaliar a COP30 exige, portanto, abandonar o reducionismo que enxerga fracasso onde há resistência. Conferências climáticas não são eventos destinados a resolver a crise em uma única rodada; são processos contínuos que lembram que o mundo só funciona quando a humanidade insiste em negociar consigo mesma. Isso é especialmente relevante diante do ataque global contra instituições multilaterais, contra a ciência e contra direitos humanos. Em muitos países, extremistas tentam fazer crer que cooperação é fraqueza. A COP30 provou o oposto, mostrando que cooperação é a base de qualquer convivência civilizada

No final das contas, o que Belém nos ensinou é que ainda existe uma base comum possível, que pode ser frágil, contestada, incompleta, mas real. O multilateralismo, entendido como prática e não como doutrina, continua sendo a forma mais elevada de resistência civilizatória que temos. Em tempos de ódio, violência política e intolerância, sentar à mesa continua sendo um ato radical. E enquanto esse ato for possível, ainda haverá futuro.

Fontes consultadas

No dia 23/11/2025: The Guardian, COP30 Site Oficial, Climate Home News, C40-Cities, China Daily, Folha de São Paulo

No dia 24/11/2025: Folha de São Paulo – Caderno especial sobre a COP30, WWF, Mongabay

 

Citação
EcoDebate, . (2025). COP30 entre o reducionismo das críticas e o sentido civilizatório do multilateralismo. EcoDebate. https://www.ecodebate.com.br/2025/11/26/cop30-entre-o-reducionismo-das-criticas-e-o-sentido-civilizatorio-do-multilateralismo/ (Acessado em novembro 26, 2025 at 08:18)

in EcoDebate, ISSN 2446-9394

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