O agricultor culto

Artigo de Afonso Peche Filho*
Resumo
O presente texto propõe uma reflexão sobre o conceito de agricultor culto, compreendido como aquele que cultiva simultaneamente a terra, o conhecimento e a ética.
Em tempos de intensa tecnificação e homogeneização das práticas agrícolas, a figura do agricultor culto emerge como símbolo da reconstrução do vínculo entre saber e ser, entre ciência e sensibilidade. A ênfase recai sobre a gestão do conhecimento e da informação como ferramentas de emancipação e não de subordinação tecnológica, destacando o papel do agricultor como sujeito ativo da transformação ecológica, social e cognitiva do campo.
Palavras-chave: gestão do conhecimento, agricultura ecológica, ética do solo, saber agrícola, regeneração cultural.
1. Introdução
Nas últimas décadas, a agricultura foi invadida por uma avalanche de informações, tecnologias e produtos que prometem produtividade e eficiência. Entretanto, o excesso de informação não significou, necessariamente, mais conhecimento. Em meio à confusão de dados e recomendações, o agricultor muitas vezes se distancia do entendimento profundo da natureza, passando a agir como executor de protocolos externos.
O agricultor culto surge como contraponto a essa alienação cognitiva. Ele é o sujeito que resgata a dimensão reflexiva do ato de cultivar, que entende o campo como espaço de aprendizagem, de pesquisa contínua e de responsabilidade moral diante da vida.
Ser agricultor culto, portanto, é gestionar o conhecimento e a informação como bens ecológicos, guiados por um propósito civilizatório: produzir sem destruir, aprender sem dominar, evoluir sem romper os vínculos da vida.
2. A cultura do cultivo e o cultivo da cultura
A palavra “culto” compartilha sua raiz com “cultivo” e “cultura”, e essa coincidência etimológica é profundamente reveladora. Cultivar é cuidar, nutrir, preparar o terreno, seja ele físico, mental ou ético.
Assim, o agricultor culto não apenas cultiva alimentos; ele cultiva ideias, interpretações e valores. Ele observa o solo, mas também se observa; estuda a planta, mas compreende sua história; lida com a técnica, mas reflete sobre suas consequências.
Nesse sentido, o agricultor culto representa uma nova síntese entre ciência e tradição, entre tecnologia e sabedoria popular, entre inovação e memória. Ele pratica uma cultura agrícola que é simultaneamente ecológica e humanista.
3. A gestão do conhecimento no campo.
A gestão do conhecimento é o coração do agricultor culto. Diferente do simples acesso à informação, ela envolve o processo de transformar dados em compreensão, e compreensão em decisões éticas e sustentáveis.
Essa gestão se dá em múltiplas dimensões:
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Gestão empírica: a observação direta dos fenômenos do solo, da água, das plantas e dos animais, transformando o cotidiano em laboratório vivo.
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Gestão científica: a apropriação crítica dos resultados da pesquisa agronômica, reinterpretando-os à luz das condições locais e dos princípios ecológicos.
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Gestão comunitária: o compartilhamento de experiências com outros agricultores, técnicos e pesquisadores, criando redes de confiança e aprendizado mútuo.
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Gestão ética: o uso responsável da informação, evitando práticas que ameacem a biodiversidade, a fertilidade do solo e o equilíbrio social.
O agricultor culto, ao gerir o conhecimento, atua como pesquisador de sua própria paisagem. Ele não depende exclusivamente de manuais ou plataformas digitais; ele cria sentido local, produzindo um saber que é contextual, verificável e transmissível.
4. A informação como ferramenta de emancipação
A informação é hoje o insumo mais valioso da agricultura, mas também o mais perigoso. Quando utilizada de forma acrítica, pode aprisionar o agricultor em sistemas dependentes e hierárquicos.
O agricultor culto sabe que informação sem discernimento é ruído, e que a verdadeira autonomia nasce da capacidade de interpretar. Ele não rejeita a tecnologia, mas subordina-a à lógica da vida e da sustentabilidade. Em vez de ser consumidor passivo de informações, ele se torna curador e mediador de conhecimento. Aprende a filtrar, comparar, testar e validar informações conforme os princípios da agroecologia, da regeneração do solo e da conservação da água. Nesse sentido, a gestão da informação no campo deixa de ser mera ferramenta de produtividade e passa a ser instrumento de libertação intelectual e ecológica.
5. O agricultor como cientista da vida.
O agricultor culto atua como um cientista da paisagem, guiado pela observação e pelo método, mas também pela sensibilidade. Ele compreende que o solo é um organismo vivo, que as raízes são condutoras de energia e que a biodiversidade é o verdadeiro patrimônio da propriedade. Seu laboratório é o campo; suas variáveis, as estações; seu método, o manejo cuidadoso; sua ética, o equilíbrio. Ele não repete experimentos de laboratório, mas cria modelos ecológicos adaptativos que conciliam produtividade e conservação. Essa forma de ciência prática resgata a legitimidade do conhecimento agrícola como ciência aplicada à convivência com a natureza, e não à sua dominação.
6. Ética e estética do agricultor culto
A ética do agricultor culto está ligada ao reconhecimento de que produzir é interferir na vida. Ele sabe que cada decisão, uma adubação, uma irrigação, uma poda, carrega consequências invisíveis.
Por isso, seu saber é acompanhado de prudência e de um senso de beleza. A estética de um solo bem estruturado, de uma nascente protegida ou de uma árvore frutificando em harmonia com o ambiente expressa sua cultura visual e espiritual.
Ser culto, nesse contexto, é saber ver e saber cuidar. É compreender que a forma mais elevada de inteligência é o respeito àquilo que vive.
7. A construção de uma nova identidade agrícola
O agricultor culto representa uma nova identidade profissional e cultural no campo brasileiro. Ele rompe com o modelo de dependência tecnológica e afirma uma postura crítica diante do mercado e das políticas públicas.
Sua formação se apoia em três pilares fundamentais:
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Conhecimento técnico-científico, dominando os fundamentos da agronomia, da ecologia e da gestão ambiental.
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Consciência ética e socioambiental, reconhecendo o papel do agricultor como guardião da fertilidade e da paisagem.
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Sensibilidade cultural e espiritual, compreendendo o cultivo como forma de arte e de pertencimento à terra.
Essa tríade define uma agricultura que é, ao mesmo tempo, eficiente e sensível, moderna e ancestral, racional e poética.
8. Conclusão
O agricultor culto é a expressão madura da agricultura consciente. Ele entende que a fertilidade da terra depende também da fertilidade do pensamento e da generosidade do conhecimento.
Ao gerir informações com critério, ele transforma dados em sabedoria e técnicas em ações éticas. Sua prática demonstra que a verdadeira inovação não está na máquina, mas na mente e no coração que a utilizam.
Nessa perspectiva, o agricultor culto é o novo protagonista da transição ecológica da agricultura: um ser que pensa com a natureza, age com conhecimento e decide com consciência. Mais do que um profissional, é um educador do território, um tradutor da linguagem da vida e um construtor do futuro.
* Pesquisador Científico do Instituto Agronômico de Campinas – IAC.
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in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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