Decrescimento populacional com prosperidade social na Coreia do Sul
O exemplo da Coreia do Sul mostra que pode haver decrescimento da população com prosperidade social e ecológica
Artigo de José Eustáquio Diniz Alves
A Coreia passou por grandes mudanças no último século. Foi anexada pelo Japão em 1910, após décadas de disputas entre potências regionais (China, Rússia e Japão). Houve repressão cultural, com proibição do uso da língua coreana em escolas e documentos oficiais. Uso intensivo de recursos agrícolas e minerais em benefício do Japão.
Milhões de coreanos foram obrigados a trabalhar em fábricas, minas e até no exército japonês, inclusive mulheres forçadas à prostituição (“comfort women”). Esse período deixou marcas profundas de ressentimento entre coreanos e japoneses.
Com a derrota do Japão na Segunda Guerra, a península foi dividida ao longo do paralelo 38, com ocupação soviética ao norte e norte-americana ao sul. A Coreia do Norte (República Popular Democrática da Coreia), comunista, sob Kim Il-Sung. A Coreia do Sul (República da Coreia), capitalista, sob Syngman Rhee.
Em 1950 teve início a guerra, quando a Coreia do Norte, apoiada pela URSS e pela China, invadiu o Sul. Os EUA e forças da ONU intervieram em defesa da Coreia do Sul. Em 1953, foi assinado um armistício, mas nunca um tratado de paz. Até hoje, as Coreias estão apenas em cessar-fogo, separadas pela Zona Desmilitarizada (DMZ).
Na década de 1950, devastada pelo colonialismo e pela guerra, a Coreia do Sul era um dos países mais pobres do mundo, dependente de ajuda externa. Nos anos 1960–70, sob governos autoritários (como Park Chung-hee), o país adotou uma estratégia de industrialização orientada à exportação, com forte investimento em educação, infraestrutura e tecnologia. Grandes conglomerados familiares (Samsung, Hyundai, LG, Kia) receberam apoio estatal e se tornaram multinacionais. Houve universalização e valorização do ensino como base do desenvolvimento.
A partir dos anos 1980, o país passou por movimentos populares que resultaram em eleições livres e democracia consolidada. Atualmente a Coreia do Sul é uma potência econômica e tecnológica, fazendo parte da OCDE e do G20. Reconhecida pela cultura global (K-pop, cinema, tecnologia). Tem um dos maiores PIBs per capita da Ásia e do mundo.
Neste processo de superação da “armadilha da pobreza” e da “armadilha da renda média”, a transição demográfica foi fundamental para se aproveitar os bônus demográficos e para o aumento da longevidade com qualidade de vida.
No início da década de 1950 a expectativa de vida ao nascer na Coreia do Sul estava abaixo de 30 anos e deu um salto para 76 anos no ano 2000 e para 84,4 anos em 2024, uma das maiores longevidades do mundo. A idade mediana era de 18 anos em 1950, passou para 30 anos em 2000 e chegou a 45 anos em 2024. Isto quer dizer que o envelhecimento populacional sul-coreana foi rápido e profundo.
O gráfico abaixo mostra a evolução da população e da renda per capita da Coreia do Sul de 1980 a 2030, segundo dados do FMI. Nota-se que a população era de 38 milhões de habitantes em 1980, chegou ao pico populacional de 52 milhões de habitantes em 2020 e deve cair para 51,3 milhões em 2030. A renda per capita, em preços constantes, em poder de paridade de compra (ppp), era de US$ 6,2 mil em 1980 (aproximadamente a metade da renda per capita brasileira) e deu um salto para US$ 49,9 mil em 2020 e deve ficar em US$ 61,7 mil em 2030.
Portanto, a Coreia do Sul aproveitou bem o 1º bônus demográfico (enquanto a população estava crescendo) e virou um país rico. Mas o fim do crescimento da população não representou um retrocesso. Ao contrário, a renda per capita continuou crescendo, mesmo com o decrescimento populacional. A Coreia do Sul tinha um IDH de 0,738 em 1990 e passou para 0,937 em 2023, um dos maiores índices de desenvolvimento humano do mundo, estando em 20º no ranking global.
Como mostrei no artigo “A Coreia do Sul tem a taxa de fecundidade mais baixa do mundo” (Alves, 13/05/2024) a Taxa de Fecundidade Total (TFT) alcançou 0,78 filho por mulher em 2022, 0,72 filho em 2023 e 0,75 filho em 2024, as taxas mais baixas do mundo. O governo coreano já criou diversas políticas públicas para aumentar a fecundidade, mas dificilmente ela voltará ao nível de reposição. O decrescimento demográfico será inexorável, a dúvida é sobre o ritmo de queda do número de habitantes.
No pensamento convencional, a baixa TFT, o envelhecimento populacional e o decrescimento demográfico são fatos interpretados como “armadilha fiscal gerontológica” ou “inverno demográfico”, ou “suicídio populacional” e representariam o fim da linha para o desenvolvimento humano de qualquer nação.
Contudo, o exemplo da Coreia do Sul mostra que pode haver decrescimento da população com prosperidade social e ecológica. A diminuição da população em idade ativa, de fato, significa o fim do 1º bônus demográfico. Mas os países podem contar com o 2º bônus demográfico – bônus da produtividade – com o 3º bônus demográfico – bônus da longevidade e da geração prateada e o 4º bônus demográfico – bônus do decrescimento populacional.
Em uma análise mais acurada, os idosos devem ser vistos como um ativo produtivo e não como um passivo que representa gastos de uma população improdutiva.
O chamado “inverno demográfico” da Coreia do Sul pode se transformar em primavera social e ambiental. A redução da população não é um problema em si e pode se tornar uma solução.
Esta visão sobre o decrescimento populacional como oportunidade de progresso social e ambiental é apontada pelo renomado demógrafo Wolfgang Lutz, que traça um quadro bastante otimista do futuro da civilização humana se for dada prioridade à educação universal e, em particular, à educação feminina:
“Mais investimentos em educação compensa em termos de maior bem-estar, e ainda mais quando combinado com níveis de fecundidade que levam ao declínio populacional a longo prazo em países individuais e, em última análise, em todo o mundo. Portanto, esta conclusão apoia o título do artigo, que afirma que o declínio da população global não é apenas provável, mas também irá beneficiar o bem-estar humano a longo prazo” (Lutz, 2023, p. 13).
Também, como observou Jennifer Sciubba (2023): “Desde a década de 1960, a população mundial mais do que duplicou, mas a taxa de crescimento vem diminuindo o tempo todo. Estamos testemunhando a mudança mais fundamental que ocorreu na história humana moderna. A mudança generalizada e permanente para uma baixa taxa de fecundidade, acompanhada do envelhecimento populacional (…) Vamos fazer dessa mudança um planeta resiliente e reimaginar um mundo mais prateado e com menor número de pessoas, como um mundo mais bonito”.
Segundo o artigo “Population and climate change” (LOWE et al, 2022, p. 39): “Se levamos a sério o nosso objectivo declarado de viver de forma sustentável, estabilizar a população futura é um requisito essencial. Isto é verdade no que diz respeito às alterações climáticas e se aplica a outras questões ambientais, como a perda de biodiversidade e a conservação de habitats, bem como garantir suficiência futura de alimentos, água e fornecimento de energia. A população deve ser integrada na política pública para todas essas questões. Atingir um pico populacional global na data mais próxima e no nível mais baixo alcançável aumentará enormemente a viabilidade de limitar o aquecimento global a menos de 2°C, e simultaneamente reduzir a vulnerabilidade das futuras pessoas aos impactos das alterações climáticas”.
Artigo de Lainos et al (2023), utilizando o método de estimativa do grupo médio agrupado (PMG), constataram: “que o declínio da população pode andar de mãos dadas com o crescimento do PIB e o aumento do PIB per capita e, ao mesmo tempo, a taxa de participação no trabalho pode aumentar e o desemprego pode diminuir.
Como disse Nathanial Gronewold (2024): “Nada cresce para sempre – por favor, repita estas três palavras em voz alta na próxima vez que você estiver em um pub ou esperando na fila para algo ou de outra forma em público e acontecer de ouvir alguém preocupado com as últimas notícias sobre a queda das taxas de fecundidade. Seja educado sobre isso, claro, mas por favor repita este fato básico da física em voz alta e com orgulho e sem hesitação, martelando o ponto fica claro para todos ao alcance da voz” (p. 5).
Em geral, o declínio da fecundidade provoca medo entre políticos, religiosos e investidores. Eles se preocupam com sistemas de pensões, saúde e crescimento econômico. No entanto, não se deve desesperar com a baixa fecundidade. Suas consequências são menos cataclísmicas do que frequentemente se supõe, como mostrou o demógrafo Vegard Skirbekk, no livro “Decline and Prosper! Changing Global Birth Rates and the Advantages of Fewer Children” (2022).
Skirbekk considera que a fecundidade muito baixa pode causar tensões fiscais e afetar negativamente o crescimento econômico. Contudo, uma taxa de fecundidade total (TFT) entre 1,5 e 2 filhos por mulher favorece a autonomia reprodutiva, a igualdade de gênero e o avanço da educação e do mercado de trabalho. Baixa fecundidade favorece os investimentos na qualidade de vida das crianças e ajuda a minimizar o impacto humano no planeta. Além disso, segundo o autor, é hora de aceitar que a baixa fecundidade veio para ficar. As políticas públicas é que precisam se adaptar a essa nova realidade.
De acordo com O’Sullivan (2020) o envelhecimento populacional não deve ser visto como um entrave: “Uma sociedade madura não é apenas uma sociedade para os idosos. Num mundo pós-transição com uma população estacionária ou em declínio, as crianças podem receber melhor apoio para desenvolverem o seu potencial. Os jovens adultos têm maior probabilidade de aceder a empregos seguros nos quais a sua contribuição é valorizada e a sua o capital humano é nutrido. Poderia ser oferecida aos trabalhadores mais velhos maior flexibilidade para permanecerem no força de trabalho na medida que eles escolherem. As famílias têm maior probabilidade de conseguir habitação acessível e se beneficiar da herança. Menos desigualdade de rendimentos e mais voluntariado por parte do nosso exército de reformados capazes contribuirão para a coesão social” (p. 37).
Como mostrou Adair Turner (03/10/2025): “Ao contrário do senso comum, o rápido crescimento populacional raramente gera dividendos demográficos, enquanto baixas taxas de fecundidade não levam necessariamente à estagnação. De fato, a fecundidade persistentemente alta frequentemente agrava o subemprego, limita o investimento em educação e infraestrutura e arraiga a pobreza entre gerações”.
Turner observa que: “A Coreia do Sul é um exemplo disso. Sua taxa de fecundidade caiu para menos de 1,7 em 1985, e a parcela da população entre 20 e 40 anos diminuiu 20% desde 2000, mas o país ainda ocupa o primeiro lugar no Índice de Inovação de 2021 da Bloomberg. No início deste ano, o país ficou em décimo segundo lugar no Índice Global de Soft Power da Brand Finance de 2025, uma “ascensão meteórica” atribuída ao seu ‘domínio nas artes e no entretenimento’ e ao apelo mundial de suas exportações culturais, seja K-pop, K-dramas como Round 6 ou produtos de beleza coreanos. Com apenas 0,8, a taxa de fecundidade da Coreia do Sul pode eventualmente minar sua vitalidade inovadora. Mas a ideia de que baixas taxas de fertilidade inevitavelmente resultam em estagnação tecnológica e cultural não é apoiada nem pela lógica nem por evidências empíricas”.
Portanto, o envelhecimento populacional é inexorável, mas isto não implica necessariamente em retrocesso nos indicadores sociais.
O mundo será um lugar melhor para se habitar se o decrescimento populacional dos países for acompanhado do aumento da renda per capita e da redução da pegada ecológica e do déficit ambiental. Um mundo com menor quantidade de pessoas, pode ser um mundo com maior qualidade de vida humana e ecológica.
O caso da Coreia do Sul pode servir de exemplo para a população brasileira.
José Eustáquio Diniz Alves
Doutor em demografia, link do CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2003298427606382
Referências:
ALVES, JED. Parceria Econômica Global Abrangente (RCEP) e a trilateral China-Japão-Coreia do Sul, Ecodebate, 15/10/2020 https://www.ecodebate.com.br/2020/01/15/parceria-economica-global-abrangente-rcep-e-a-trilateral-china-japao-coreia-do-sul-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/
ALVES, JED. População da Coreia do Sul de 1950 a 2100, Ecodebate, 08/05/2023
https://www.ecodebate.com.br/2023/05/08/populacao-da-coreia-do-sul-de-1950-a-2100/
ALVES, JED. O sucesso da estratégia de desenvolvimento dos Tigres Asiáticos, Ecodebate, 27/02/2019
ALVES, JED. A Coreia do Sul tem a taxa de fecundidade mais baixa do mundo, Ecodebate, 13/05/2024
LUTZ, Wolfgang. “Population decline will likely become a global trend and benefit long-term human
wellbeing.” Vienna Yearbook of Population Research 2023, pp. 1-15.
https://pure.iiasa.ac.at/id/eprint/18893/1/Lutz.pdf
SCIUBBA, Jennifer D. The truth about human population decline, TED, 2023 https://www.ted.com/talks/jennifer_d_sciubba_the_truth_about_human_population_decline/transcript?subtitle=en
LIANOS, T.P., Pseiridis, A. & Tsounis, N. Declining population and GDP growth. Humanit Soc Sci Commun 10, 725 (2023). https://doi.org/10.1057/s41599-023-02223-7
LOWE, I., Cook, P., and O’Sullivan, J. (2022). Population and climate change (Sustainable Population Australia Discussion Paper). Sustainable Population Australia.
https://population.org.au/wp-content/files/Population-Climate-Web-Version-110222.pdf
Nathanial Gronewold. In Praise of Population Decline, NPG Forum Paper, June 2024
https://npg.org/wp-content/uploads/2024/06/2024-InPraiseofPopulationDecline-FP.pdf
SKIRBEKK, Vegard. Decline and Prosper! Changing Global Birth Rates and the Advantages of Fewer Children, Palgrave Macmillan, 2022
O’SULLIVAN, J.N. Silver tsunami or silver lining? Why we should not fear an ageing population. Discussion paper, Sustainable Population Australia. 2020. https://population.org.au/discussion-papers/ageing/
TURNER, Adair. The Case for Gradual Population Decline, Project Syndicate, 03/10/2025
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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