Conhecimento Ecológico: Fundamentos, Dimensões e Aplicações para a Sustentabilidade dos Ecossistemas.
Artigo de Afonso Peche Filho*
Introdução
O conceito de conhecimento ecológico tornou-se central nas discussões sobre sustentabilidade, manejo ambiental, agroecologia e conservação da biodiversidade.
Em tempos de crescente degradação dos ecossistemas e mudanças climáticas, a valorização de diferentes formas de compreender e interagir com a natureza torna-se essencial para a construção de práticas mais resilientes e integradas.
Este artigo propõe uma definição técnica e explicativa de conhecimento ecológico, detalha suas principais dimensões, científica, tradicional, empírica e contextual, e apresenta aplicações concretas em diferentes contextos socioambientais.
1. Definição de Conhecimento Ecológico
O conhecimento ecológico pode ser definido como o conjunto integrado de saberes, formais e informais, sobre as relações entre os seres vivos e seu ambiente, desenvolvido por meio de observações sistemáticas, convivência com os ecossistemas e experiências de manejo da natureza. Trata-se de um conhecimento que pode emergir tanto de práticas cotidianas e observações empíricas quanto de estudos científicos e experimentações controladas.
Definição técnica:
Conhecimento ecológico é a compreensão interdisciplinar dos processos, interações e funções ecológicas dos sistemas naturais, gerada por diferentes formas de aprendizado, científicas, tradicionais, empíricas ou culturais, e aplicada para conservar, restaurar ou utilizar de forma sustentável os recursos ecológicos.
2. Dimensões do Conhecimento Ecológico.
A figura 1 esquematiza quatro dimensões do conhecimento ecológico.
Figura 1 – Representação esquemática de quatro dimensões do conhecimento ecológico.
2.1 Conhecimento Ecológico Científico
O conhecimento ecológico científico é sistematizado por meio do método científico, com base em hipóteses testáveis, coleta de dados, experimentações e análises estatísticas. Tem como objetivo descrever, prever e modelar as interações ecológicas, contribuindo para políticas ambientais, gestão de recursos naturais, avaliação de impactos ambientais e desenvolvimento sustentável.
-
Exemplo: Modelagens hidrológicas para avaliar o impacto da cobertura vegetal na infiltração e recarga de aquíferos.
-
Aplicações: conservação de espécies, avaliação de serviços ecossistêmicos, manejo adaptativo de áreas protegidas.
2.2 Conhecimento Ecológico Tradicional (CET)
O conhecimento ecológico tradicional refere-se aos saberes acumulados por povos indígenas, comunidades tradicionais e populações locais ao longo de gerações, com base na experiência direta, oralidade, cosmologias e interações históricas com os ecossistemas.
-
Características: é acumulativo, adaptativo e culturalmente situado. Integra dimensões simbólicas, espirituais, práticas e sociais.
-
Exemplo: o manejo de queimadas controladas por comunidades indígenas do Cerrado, que favorece a regeneração de espécies úteis e evita incêndios de grande escala.
-
Reconhecimento: a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) reconhece a importância do CET como chave para a conservação e uso sustentável da biodiversidade.
2.3 Conhecimento Ecológico Empírico
É o conhecimento acumulado por meio da experiência direta e continuada com o ambiente, especialmente por agricultores, pescadores, coletores e manejadores. Pode não possuir formalização ou reconhecimento institucional, mas revela uma acurada observação e adaptação às variações ecológicas locais.
-
Exemplo: agricultores que identificam a fertilidade do solo observando cor, cheiro, estrutura e presença de organismos, mesmo sem uso de análises laboratoriais.
-
Importância: este conhecimento é essencial em contextos rurais e periurbanos onde o acesso à assistência técnica formal é limitado.
2.4 Conhecimento Ecológico Contextual e Territorial
Toda forma de conhecimento ecológico é, em alguma medida, territorial. Isso significa que ele é moldado pelas características físicas, biológicas, climáticas, sociais e históricas de um determinado território. O contexto ecológico afeta diretamente a pertinência e eficácia das práticas de manejo.
-
Exemplo: o manejo agroflorestal na Mata Atlântica exige conhecimentos distintos daqueles aplicáveis ao bioma Caatinga, mesmo quando se buscam objetivos semelhantes (como produção sustentável, regeneração natural ou conservação da água).
3. Interações entre as Dimensões do Conhecimento
Embora essas dimensões sejam apresentadas de forma separada para fins analíticos, na prática elas se interpenetram. Muitos projetos de manejo e conservação que alcançam bons resultados são aqueles que integram múltiplos tipos de conhecimento — especialmente aliando ciência e tradição.
Exemplo de Integração: Sistemas Agroecológicos
Nos sistemas agroecológicos, é comum a articulação entre o conhecimento tradicional do agricultor, a experimentação local e o apoio científico na seleção de cultivares, bioinsumos, manejo da fertilidade e regeneração do solo. Esses sistemas mostram como o diálogo entre saberes pode gerar soluções mais contextualizadas, resilientes e sustentáveis.
4. Aplicações Práticas do Conhecimento Ecológico
4.1 Conservação da Biodiversidade
Estratégias de conservação eficazes dependem não apenas de dados ecológicos quantitativos, mas também de saberes locais e da percepção comunitária sobre o território. Mapas participativos, indicadores locais de degradação ou recuperação e práticas de monitoramento comunitário têm se mostrado ferramentas fundamentais.
4.2 Agricultura Sustentável e Regenerativa
O conhecimento ecológico fundamenta práticas agrícolas que buscam equilíbrio entre produtividade e conservação: adubação verde, consórcios, policultivos, rotação, controle biológico e uso de plantas espontâneas como indicadoras ecológicas são exemplos claros de sua aplicação prática.
4.3 Restauração Ecológica
Projetos de restauração têm obtido maior êxito quando respeitam os saberes locais sobre espécies, solos e dinâmica da paisagem. Além disso, o envolvimento de comunidades é essencial para a perenidade dos resultados (Aronson et al., 2011).
4.4 Gestão Hídrica e Planejamento Territorial
O conhecimento ecológico é ferramenta valiosa na análise e recuperação de bacias hidrográficas, na gestão de nascentes e na requalificação ecológica de áreas urbanas e rurais.
5. Desafios e Reconhecimento do Conhecimento Ecológico
Apesar de sua relevância, o conhecimento ecológico ainda enfrenta desafios para ser reconhecido, validado e utilizado nas políticas públicas. Há uma tendência histórica de desvalorizar saberes não científicos, o que enfraquece iniciativas colaborativas e ignora o potencial adaptativo de práticas tradicionais.
-
É necessário promover o diálogo de saberes (diálogo intercultural), criar políticas que incentivem a inclusão do CET em estratégias nacionais e garantir a participação ativa das comunidades detentoras desses saberes nos processos decisórios.
Conclusão
O conhecimento ecológico não é apenas um acervo de informações sobre a natureza. Ele representa uma forma de se relacionar com o ambiente baseada na observação, no respeito e na continuidade dos ciclos naturais. Suas múltiplas dimensões científica, tradicional, empírica e contextual são complementares e fundamentais para enfrentar os desafios da sustentabilidade.
Integrar e valorizar esses saberes é um passo crucial para transformar práticas extrativistas e fragmentadas em ações regenerativas e cooperativas. A construção de um futuro mais justo e equilibrado passa pela escuta ativa da terra — e daqueles que vivem em diálogo com ela.
Referências Bibliográficas
-
ALTIERI, M. A.; TOLEDO, V. M.. The agroecological revolution in Latin America: rescuing nature, ensuring food sovereignty and empowering peasants. Journal of peasant studies, v. 38, n. 3, p. 587-612, 2011. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/03066150.2011.582947 ; Acesso em 11/06/2025
-
CLEWELL, A, F.; ARONSON, J.; Ecological restoration: principles, values, and structure of an emerging profession. Island Press, 2012. Disponível em: https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=RNbR3zWeltQC&oi=fnd&pg=PR5&dq=%E2%80%A2%09Aronson,+J.,+Blignaut,+J.+N.,+Milton,+S.+J.,+%26+Clewell,+A.+F.+(2011).+Ecological+Restoration:+Principles,+Values,+and+Structure+of+an+Emerging+Profession.+Island+Press.&ots=vtMWL8KqEd&sig=uhRauO6Dv3wb96l8qbVC4RxurqI#v=onepage&q&f=false ; Acesso em : 11/06 /2025.
-
FREEDMAN, B.; Environmental ecology – The impacts of pollution and other stresses on ecosystem structure and function. ACADEMIC PRESS. Nova Scotia, Canada. 1989. 424p.
-
GODOY, A.; A menor das ecologias. EDUSP. São Paulo. 2008.334p.
-
GOTELLI, N.J.; Ecologia. Editora Planta. Londrina – Pr. 2009. 288p.
-
GOTELLI, N.J.; ELLISON, A.M.; Princípios de estatística em ecologia. Editora Artmed. Porto Alegre – RS. 2011. 528p.
-
GUTIÉRREZ, F.; PRADO, C. Ecopedagogia e cidadania planetária. Cortez Editora. 2013. 140p.
-
HAINZELIN, É.; Cultivating Biodiversity to Transform Agriculture. Springer. CIRAD. Montpellier. France. 2013. 262p
-
JARVIS, D.I.; PADOCH, C.; COOPER, H.D.; Managing Biodversity in Agicultural Ecosystems. Columbia Universt Press. New York. 2007. 492p.
-
MISTRY, J., BILBAO, B. A., & BERARDI, A.; Community owned solutions for fire management in tropical ecosystems: case studies from indigenous communities of South America. Philosophical Transactions of the Royal Society B, 371(1696) (2016). Disponível em: https://royalsocietypublishing.org/doi/full/10.1098/rstb.2015.0174 ; acesso em 11/06/2025
-
MOTA, J.A.; O valor da natureza – economia e política dos recursos naturais. Ed. Garamond. Rio de Janeiro. 2009. 198p.
-
ODUM, E.P.; Ecologia. Editora Guanabara. Rio de Janeiro. 1986. 335p.
-
OLIVEIRA, I.S.D.; MONTAÑO, M.; SOUZA, M.P.; Avaliação ambiental estratégica. Editora Suprema. São Carlos. SP. 2009. 220p.
-
PORPORATO, A., D’ODORICO, P., LAIO, F., RIDOLFI, L., & RODRIGUEZ-ITURBE, I. (2002). Ecohydrology of water-controlled ecosystems. Advances in Water Resources, 25, 2002, 1335–1348p. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0309170802000581 ; Acesso: 11/06/2025.
-
PRIMAVESI, A.M.; Manejo ecológico do solo. Editora Nobel. 1980. 543p
-
RODRIGUES, E.; Ecologia da restauração. Editora Planta. Londrina – Pr. 2013. 300p.
* Pesquisador Científico do Instituto Agronômico de Campinas – IAC
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
[ Se você gostou desse artigo, deixe um comentário. Além disso, compartilhe esse post em suas redes sociais, assim você ajuda a socializar a informação socioambiental ]