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Artigo

Na COP30, povos indígenas, quilombolas e tradicionais lutam por justiça climática

Não haverá justiça climática sem o reconhecimento pleno dos direitos dos povos sobre seus territórios, a reparação histórica e a redistribuição concreta de poder

Reinaldo Dias
Articulista do EcoDebate, é Doutor em Ciências Sociais -Unicamp
Pesquisador associado do CPDI do IBRACHINA/IBRAWORK
Parque Tecnológico da Unicamp – Campinas – Brasil
http://lattes.cnpq.br/5937396816014363
reinaldias@gmail.com

A crise climática que atravessamos não é apenas uma emergência ambiental: é uma crise civilizatória que expõe os limites de um modelo econômico centrado na exploração, na concentração de poder e no apagamento sistemático de saberes e modos de vida ancestrais.

Por trás dos acordos diplomáticos e das metas de redução de carbono, permanecem invisibilizadas as populações que historicamente protegeram os ecossistemas mais vitais do planeta — e que seguem, ainda hoje, à margem das decisões que moldarão nosso futuro coletivo.

A realização da COP30 em Belém do Pará, no coração da Amazônia, não pode ser reduzida a um gesto simbólico. É um ponto de inflexão que obriga governos, instituições e organismos internacionais a lidar com uma verdade incontornável: não haverá justiça climática sem o reconhecimento pleno dos direitos dos povos sobre seus territórios, a reparação histórica e a redistribuição concreta de poder. Os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais não são coadjuvantes nesse processo — são protagonistas de alternativas concretas à destruição ambiental, guardiões de saberes e práticas que desafiam a lógica extrativista e apontam caminhos viáveis para uma transição ecológica sustentada pelas práticas que esses povos exercem em defesa da vida e dos ecossistemas.

Este artigo parte do reconhecimento desse protagonismo. Mais do que uma análise sobre a presença desses povos na COP30, trata-se de um chamado à escuta, ao reconhecimento e à transformação. Escutar, neste caso, significa acolher com responsabilidade as vozes historicamente silenciadas; reconhecer é enfrentar as estruturas excludentes que negaram lugar aos povos originários e tradicionais; transformar é romper com os interesses que lucram com o colapso ambiental. A força política e a sabedoria coletiva dos povos que sempre cuidaram da terra podem — e devem — reconfigurar os rumos da governança ambiental global.

1. Introdução

No cenário de agravamento da emergência climática global, cresce o reconhecimento de que não há caminhos sustentáveis sem a valorização dos povos que historicamente protegeram os ecossistemas mais ameaçados. Comunidades indígenas, quilombolas e outros grupos tradicionais mantêm práticas que asseguram o equilíbrio ambiental, não apenas por sua localização geográfica, mas por modos de vida que confrontam diretamente a lógica extrativista e predatória que rege grande parte das economias contemporâneas.

Neste artigo, parte-se do entendimento de que o reconhecimento e a proteção dos direitos coletivos de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais sobre seus territórios — entendidos não apenas como espaço físico, mas como base de vida, identidade, autonomia política e relação ecológica com o mundo — são condições essenciais para a efetivação da justiça climática. A preservação da vida e do clima, portanto, depende da garantia concreta desses direitos historicamente negados e ainda hoje ameaçados por interesses econômicos e políticas excludentes.

Esses povos, por muito tempo invisibilizados nos fóruns internacionais, vêm conquistando espaço em eventos centrais como a COP30, prevista para Belém (PA), em novembro de 2025. A realização da Pré-COP Indígena, em Brasília, com participação de representantes de nove países da Bacia Amazônica, resultou na apresentação de uma Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) construída a partir de saberes ancestrais e do fortalecimento territorial (ClimaInfo, 2025). Simultaneamente, organizações como a Coordenação Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) publicaram posicionamentos exigindo participação efetiva nos processos decisórios, reforçando que são sujeitos políticos ativos nas agendas ambientais (Bond, 2025).

A realização da Pré-COP Indígena, com participação de representantes de nove países da Bacia Amazônica, e os posicionamentos de organizações como a CONAQ sinalizam uma mudança em curso: a tentativa de converter antigas exclusões em protagonismo político. A COP30 será, nesse sentido, mais do que uma conferência internacional — será um campo de disputa entre diferentes visões de futuro, onde o respeito aos direitos territoriais coletivos se apresenta como critério decisivo para qualquer transição ecológica justa.

2. A COP30 e o reposicionamento da diplomacia climática

A realização da COP30 em Belém marca uma inflexão simbólica e estratégica na geopolítica climática. Pela primeira vez, a Conferência das Partes das Nações Unidas será sediada na Amazônia, um dos biomas mais vitais para o equilíbrio climático do planeta. Esse deslocamento territorial pressiona as instâncias diplomáticas internacionais a lidar com atores até então marginalizados — povos e comunidades que sempre protegeram a floresta, mas raramente foram protagonistas nos espaços de decisão.

Esse novo contexto exige mudanças importantes na forma como as conferências do clima são organizadas. Durante muito tempo, esses eventos priorizaram negociações entre governos e grandes corporações, deixando de fora as vozes de comunidades diretamente impactadas pelas mudanças climáticas. Agora, a realização da COP30 na Amazônia pressiona os organizadores a incluir vozes que antes eram ignoradas — especialmente aquelas de povos e comunidades que há séculos cuidam da floresta. Um exemplo dessa mudança é a NDC indígena, construída de forma coletiva por representantes de nove países da Amazônia. Ela propõe uma transição ecológica baseada na proteção dos territórios, no financiamento direto às comunidades, na valorização dos conhecimentos ancestrais e na participação efetiva nas decisões (Vasquez, 2025).

Além da NDC, o Fórum de Povos Tradicionais e Comunidades Locais, criado para a COP30, articula indígenas, quilombolas, extrativistas, ribeirinhos e pescadores em torno de uma agenda comum de justiça climática (Tubiana & Guérin, 2025). O risco de que a conferência seja capturada por interesses corporativos ou pelo greenwashing é real, o que torna a mobilização desses atores ainda mais urgente. A própria localização da COP30 não garante, por si só, um processo transformador. O contexto exige vigilância crítica e engajamento social para que os discursos não se sobreponham às práticas concretas.

Nesse sentido, é preciso reconhecer que a conferência não deve ser tratada como um evento turístico, uma feira de negócios ou uma plataforma de promoção política. Trata-se de uma oportunidade decisiva para reverter a trajetória de colapso ambiental que ameaça o planeta e o Brasil. É fundamental que autoridades públicas e grandes corporações compreendam que a COP não pode ser instrumentalizada para ganhos pessoais ou institucionais. Tampouco deve ser utilizada como vitrine para ações de fachada apresentadas sob o pretexto da sustentabilidade, sem compromisso real com a preservação ambiental e a justiça climática. A COP não é uma vitrine comercial, nem um festival de comidas típicas, artesanato ou música amazônica (Antunes, 2025).

É nesse cenário de tensões e disputas simbólicas que a carta aberta lançada pela presidência brasileira da COP30 busca afirmar um direcionamento político mais consistente. Ao propor um “mutirão climático global”, inspirado no conceito de motirô (união de esforços coletivos, em Tupi-Guarani), o documento destaca como eixos centrais o fortalecimento do multilateralismo, a concretização das decisões da conferência e a aceleração da implementação do Acordo de Paris. Nessa dinâmica, o Brasil tenta se reposicionar como mediador entre os países do Sul Global e o sistema multilateral, apresentando a Amazônia não apenas como vítima, mas como sujeito de decisão (Chiaretti, 2025).

No entanto, essa tentativa de reposicionamento do Brasil no cenário climático internacional convive com contradições preocupantes. Uma das mais emblemáticas é o apoio governamental à exploração de petróleo na foz do Rio Amazonas, justamente em uma região de altíssima sensibilidade ecológica. A proposta de abertura dessa nova fronteira petrolífera tem sido amplamente criticada por organizações socioambientais, pesquisadores e lideranças indígenas, que alertam para os riscos de derramamentos, impactos sobre os recifes amazônicos e incoerência com os compromissos climáticos assumidos pelo país. Essa ambiguidade revela os limites de um discurso oficial que busca protagonismo climático, mas ainda opera sob a lógica do desenvolvimento baseado na extração de combustíveis fósseis (ClimaInfo, 2025; Lima, 2025 & Rodriguez, 2025).

Diante dessas contradições, torna-se ainda mais urgente fortalecer as estratégias baseadas nos territórios e nos direitos coletivos dos povos que há séculos mantêm a floresta viva.

3. O papel dos territórios indígenas na proteção do clima

Estudos como os de Fellows et al (2024) demonstram que os territórios sob gestão de povos indígenas e tradicionais apresentam menores taxas de desmatamento, maior capacidade de regeneração ambiental e são mais resilientes às mudanças climáticas. Esses territórios, ainda que ocupem menos de 14% do território brasileiro, armazenam mais da metade do carbono florestal da Amazônia. Isso faz da demarcação de terras uma estratégia climática central, e não apenas uma pauta de direitos humanos.

Durante a Pré-COP Indígena, a demarcação de terras foi reafirmada como política climática prioritária. A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB,2025) reforçou que garantir a integridade dos territórios indígenas é garantir um serviço climático essencial: manter a floresta em pé. O mesmo vale para as comunidades quilombolas, que denunciam a ausência de políticas públicas para regularização fundiária e os impactos do racismo ambiental que atravessa os processos de titulação.

Dados revelam que quanto mais avançado o processo de demarcação, menores são as taxas de desmatamento. Terras homologadas apresentam desmatamento médio de 0,05% ao ano, enquanto áreas não protegidas atingem 0,4%. Além disso, a perda acumulada de vegetação nativa nas Terras Indígenas é de apenas 1,2% em quatro décadas, frente aos quase 15% no território nacional (Fellows et al, 2024).

A inclusão da demarcação como meta formal na NDC brasileira não é apenas uma medida de justiça — é uma resposta pragmática à crise ambiental. O desafio está em integrar as políticas de proteção territorial às estratégias climáticas e garantir que o financiamento climático chegue diretamente às comunidades que protegem esses territórios.

Reconhecer os territórios indígenas como aliados no enfrentamento da crise climática é também reconhecer os saberes e modos de vida que os sustentam — o que será fundamental para construir soluções duradouras e inclusivas.

4. Saberes ancestrais e justiça climática

Os conhecimentos acumulados por povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais ao longo de gerações representam formas sofisticadas de compreender, manejar e preservar os ecossistemas. Longe de serem considerados saberes informais ou “culturais”, essas práticas constituem verdadeiros sistemas de conhecimento, elaborados em estreita relação com os territórios e com os ciclos da natureza. Sua eficácia se comprova na prática: são territórios onde o desmatamento e a degradação avançam com muito menos intensidade do que em áreas sob domínio privado ou estatal.

Reconhecer esses saberes como instrumentos válidos para enfrentar a crise climática tem sido uma das principais reivindicações dos povos da floresta e de diversos movimentos sociais. Como afirmam Bansal et al. (2024), responder à emergência climática requer uma integração respeitosa entre diferentes formas de conhecimento — o acadêmico e o ancestral —, e isso implica rever estruturas institucionais e políticas que historicamente invisibilizaram ou marginalizaram os modos de vida dos povos originários.

Desde 2017, a Plataforma de Comunidades Locais e Povos Indígenas (LCIPP), criada no âmbito da ONU, busca ampliar a presença desses grupos nas instâncias de decisão e promover o intercâmbio entre saberes tradicionais e científicos. Apesar de seu valor simbólico, a plataforma ainda enfrenta limitações práticas, com pouca influência sobre os processos centrais das negociações climáticas. Por isso, os próprios povos indígenas vêm assumindo o protagonismo na construção de alternativas, a partir de seus territórios, suas organizações e articulações transnacionais.

Um exemplo importante é a proposta de NDC indígena apresentada por lideranças da Bacia Amazônica (Vasques, 2025; ClimaInfo, 2025). Nela, são definidas prioridades que incluem a proteção integral dos territórios, financiamento direto às organizações indígenas, proteção de lideranças ameaçadas, valorização dos conhecimentos tradicionais nas estratégias de mitigação e adaptação, e a exclusão de atividades extrativistas predatórias. Essa proposta é respaldada por mais de 28 organizações e será apresentada nas negociações internacionais como expressão de soberania política e sabedoria ancestral.

Esses posicionamentos foram reforçados durante a Pré-COP Indígena, realizada em Brasília, que reuniu lideranças dos nove países amazônicos e resultou na Declaração Política dos Povos Indígenas da Bacia Amazônica e de todos os biomas do Brasil (Braz, 2025). O evento reafirmou que sem a inclusão plena dos povos indígenas nas decisões climáticas — com voz, voto e autonomia — não há justiça possível. O protagonismo indígena é visto não como um gesto de inclusão simbólica, mas como elemento estrutural de uma governança climática eficaz e legítima.

A importância dos territórios indígenas também se expressa nos dados apresentados por Fellows et al. (2024), que demonstram que essas áreas são barreiras efetivas contra o desmatamento e armazenam volumes significativos de carbono. A pesquisa defende que demarcar é mitigar: reconhecer juridicamente os territórios indígenas é, ao mesmo tempo, um ato de justiça histórica e uma estratégia concreta de contenção do colapso ambiental. Segundo os autores, a regularização fundiária desses territórios deve ser incorporada às NDCs brasileiras como eixo prioritário de ação climática.

A articulação entre povos indígenas e movimentos sociais na luta por justiça climática ganha força em espaços como a Cúpula dos Povos e o Comitê COP30. A Cúpula dos Povos reunirá mais de 700 organizações durante a COP30, defendendo participação popular, demarcação de territórios, desmatamento zero e justiça climática. O evento critica falsas soluções, como o mercado de carbono, e promove alternativas baseadas na soberania dos povos e nos direitos da natureza (Cúpula dos povos, 2024). Já o Comitê COP30 é formado por quase 100 organizações amazônicas e atua pela inserção da sociedade civil nas decisões climáticas. Organiza formação política, propõe políticas públicas e apresentou 39 contribuições à NDC brasileira, com foco em adaptação, restauração ecológica e demarcação de territórios tradicionais (Ambrosio, 2025). Essas iniciativas denunciam as falsas soluções — como o mercado de carbono e a financeirização da natureza — e defendem propostas fundamentadas na soberania alimentar, na demarcação de terras, na restauração ecológica e na valorização dos modos de vida tradicionais.

Outra conquista relevante no contexto da COP30 é a criação do Fórum de Povos Tradicionais e Comunidades Locais, que será parte da programação oficial da conferência (Tubiana & Guérin, 2025). O Fórum reconhece formalmente que os povos que historicamente cuidam da floresta e de seus rios são também sujeitos políticos e detentores de conhecimentos essenciais para a construção de políticas climáticas sustentáveis. Ele será um espaço de escuta ativa e formulação de propostas, organizado com metodologias participativas, respeitando a diversidade de vozes e experiências presentes nos territórios.

O Acampamento Terra Livre (ATL), realizado em 2025 em Brasília, também contribuiu para esse processo ao denunciar as ameaças que pesam sobre os direitos territoriais indígenas, como a Lei do Marco Temporal, e ao propor uma transição energética justa com base nos princípios da autonomia, da diversidade e da valorização dos modos de vida sustentáveis (Lima, 2025). Para os povos indígenas, enfrentar a crise climática exige não apenas mudanças tecnológicas, mas transformações profundas no modo como a sociedade se relaciona com a Terra e entre si.

Nesse sentido, a justiça climática não pode estar dissociada do respeito aos direitos territoriais, da garantia de financiamento direto, da proteção das lideranças indígenas e da valorização dos conhecimentos locais. Incorporar esses elementos como pilares das políticas ambientais não é apenas um imperativo ético ou uma questão de representatividade: trata-se de uma estratégia indispensável para conter o colapso ambiental e construir alternativas enraizadas, sustentáveis e verdadeiramente inclusivas.

5. Racismo ambiental e as falsas soluções

A emergência climática global reflete desigualdades históricas profundas, que fazem com que seus efeitos recaiam de forma desproporcional sobre os grupos mais vulneráveis. Entre esses, destacam-se os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais — justamente os que menos contribuíram para o aquecimento global, mas que estão entre os que mais sofrem suas consequências. Inundações, secas, escassez alimentar e deslocamentos forçados atingem desproporcionalmente esses povos, revelando uma injustiça climática de base estrutural.

A luta por justiça climática enfrenta, portanto, um obstáculo central: o racismo ambiental. Este se manifesta na marginalização histórica de povos originários e tradicionais nos processos decisórios, na negação de seus direitos territoriais e na sobreposição de projetos predatórios sobre seus modos de vida. O racismo ambiental não é uma distorção pontual, mas um dos pilares do sistema econômico dominante que perpetua a destruição ambiental e as desigualdades sociais (Bond, ,2025).

Organizações como a CONAQ, a COIAB e diversos movimentos sociais têm denunciado a ausência de políticas públicas eficazes, a criminalização de lideranças e as ameaças constantes sobre seus territórios. O avanço do agronegócio, da mineração e da instalação de grandes empreendimentos energéticos, como hidrelétricas e projetos de gás, tem sido acompanhado por episódios de violência, deslocamento forçado e destruição ambiental. Como relata Rodriguez (2025), há casos documentados de tentativas de suborno e ameaças de morte a lideranças que resistem à exploração de seus territórios.

Além disso, cresce a crítica às chamadas “falsas soluções climáticas” — propostas que, sob o pretexto de combater as mudanças climáticas, aprofundam a financeirização da natureza e a lógica de mercado. Entre elas, destacam-se os mecanismos de compensação de carbono, como o REDD+ (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação), e a criação de créditos que transformam florestas e territórios vivos em ativos financeiros (Ambrosio, 2025). Essas soluções deslocam a responsabilidade das grandes corporações para as comunidades, desconsiderando suas práticas sustentáveis e transferindo os custos da transição para quem menos contribuiu para a crise.

Essas críticas são reforçadas por análises como a de Fellows et al. (2024), que demonstram como tais mecanismos não interrompem a lógica extrativista, apenas a disfarçam sob uma nova roupagem. As soluções propostas por cima, sem consulta prévia, livre e informada — como prevê a Convenção 169 da OIT — têm deslegitimado os conhecimentos tradicionais ao impor modelos exógenos de “sustentabilidade” que ignoram as práticas locais e substituem formas de saber construídas nos próprios territórios por soluções importadas, muitas vezes incompatíveis com a realidade das comunidades.

Em contraposição, organizações indígenas e quilombolas propõem alternativas baseadas na autonomia dos territórios, na valorização dos saberes ancestrais e no direito à autodeterminação. A defesa da demarcação de terras, do financiamento direto para as comunidades e da participação qualificada nas instâncias internacionais são pilares dessas propostas. Nesse contexto o Fórum de Povos Tradicionais e Comunidades Locais representa uma tentativa concreta de estruturar essa participação em bases mais justas e democráticas (Tubiana & Guérin, 2025).

O enfrentamento ao racismo ambiental exige mais do que reconhecimento retórico: demanda a transformação das estruturas institucionais e jurídicas que o sustentam. Isso implica revisar normas de licenciamento ambiental, garantir acesso equitativo aos recursos do Fundo Verde do Clima, reconhecer os territórios tradicionais como espaços de produção de conhecimento e garantir o cumprimento efetivo dos instrumentos internacionais de proteção aos povos originários.

Essas críticas ecoaram amplamente no Acampamento Terra Livre de 2025, realizado em Brasília, que reuniu milhares de indígenas sob o lema ‘A resposta somos nós’. Como analisa Lima (2025), o ATL denunciou a omissão do Estado, a aprovação da Lei do Marco Temporal e a continuidade de políticas desenvolvimentistas baseadas na exploração territorial. Além da denúncia, o encontro reafirmou que os povos indígenas já exercem protagonismo ambiental, e que a transição energética só será justa se romper com a lógica extrativista e colonial que estrutura os atuais paradigmas climáticos.

6. Protagonismo internacional e diplomacia indígena

As comunidades tradicionais não estão apenas resistindo em seus territórios: estão ocupando espaços de representação internacional e formulando propostas consistentes. A entrega da NDC indígena a organismos multilaterais representa um marco de afirmação política e técnica. Mais do que reivindicar inclusão, essas lideranças estão propondo modelos alternativos de transição, centrados na demarcação de terras, na valorização dos saberes ancestrais e na autodeterminação dos povos (ClimaInfo, 2025).

Durante a Pré-COP Indígena, lideranças de nove países da Bacia Amazônica apresentaram uma proposta inédita de Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC), assinada por 28 organizações e estruturada em seis eixos: reconhecimento e proteção dos territórios, financiamento direto, inclusão dos sistemas de conhecimento tradicionais, participação plena nos espaços decisórios, proteção das lideranças e criação de zonas livres de exploração predatória (Vasques, 2025). A proposta será levada à Conferência de Bonn, simbolizando um esforço de cooperação regional sem precedentes.

Essa articulação também se manifesta na atuação quilombola. A CONAQ tem reivindicado o reconhecimento da condição de sujeitos políticos plenos nas instâncias internacionais, com direito à voz e voto (Bond, 2025). O desafio não é apenas de participação formal, mas de redistribuição real de poder — o que implica romper com a lógica colonial que ainda estrutura a governança ambiental global.

O encerramento da Pré-COP Indígena, realizada em Brasília, consolidou o chamado G9 da Amazônia Indígena, com representações dos nove países amazônicos — Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela. A Declaração Política resultante do encontro elencou seis prioridades, reafirmando o papel central dos povos indígenas de todos os biomas do Brasil. A presença de representantes internacionais, como Reino Unido, Canadá e Noruega, fortaleceu a legitimidade da iniciativa, embora também revele a necessidade de vigilância quanto à coerência entre apoio diplomático e práticas financeiras ou empresariais desses países (Braz, 2025).

A meta de ampliar a participação indígena na COP30, passando de 300 representantes na COP28 para mil na conferência de Belém, é acompanhada por processos de formação técnica para garantir uma atuação qualificada nas negociações (Braz, 2025). O protagonismo também se traduz na criação do Círculo dos Povos Indígenas, que articulará a presença nas zonas oficial, verde e da Cúpula dos Povos, e na Comissão Internacional Indígena, estruturada pelo Ministério dos Povos Indígenas para incidir sobre temas como clima, biodiversidade e direitos humanos (Souto, 2025).

Essa mobilização reforça a diplomacia indígena como um vetor emergente na governança ambiental global. A efetivação da justiça climática requer não apenas escuta, mas poder. Como argumentam Bansal et al. (2024), a descolonização das estruturas decisórias internacionais é condição para incorporar soluções verdadeiramente transformadoras. Reconhecer os direitos assegurados pela Convenção 169 da OIT e pela Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas é apenas o primeiro passo — sua implementação plena continua sendo uma dívida histórica e uma urgência climática.

7. Conclusão

A crise climática não poderá ser enfrentada com as mesmas estruturas que a produziram.

A continuidade das negociações centradas em soluções de mercado, influenciadas por lobbies empresariais e distantes das realidades locais, compromete qualquer possibilidade de transição justa. Os documentos e manifestações recentes deixam claro que não haverá justiça climática sem o reconhecimento dos direitos territoriais coletivos — e este só será viável com o reconhecimento pleno dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais como sujeitos políticos centrais.

Esses povos não apenas resistem à destruição: eles propõem e colocam em prática alternativas concretas, baseadas no cuidado com a terra, na reciprocidade entre seres humanos e natureza e na autogestão coletiva. Suas práticas sustentáveis e seus conhecimentos acumulados ao longo de séculos demonstram que outra forma de habitar o planeta é possível e urgente. Essa sabedoria não pode mais ser tratada como acessória, mas como fundamento legítimo de uma nova governança ecológica.

Romper com as falsas soluções e enfrentar o racismo ambiental são condições indispensáveis para que a COP30 cumpra seu papel histórico. Isso exige escuta ativa, reparação das injustiças históricas e redistribuição real de poder — não apenas entre países, mas também dentro de cada território. Como demonstram os relatos de perseguição a defensores ambientais, não haverá transição justa enquanto a violência contra os que protegem a terra continuar sendo tratada como efeito colateral do progresso.

Cabe à sociedade e aos governos decidir se querem continuar insistindo em fórmulas fracassadas ou se estão dispostos a reconhecer e apoiar as soluções concretas que já estão sendo construídas por povos e comunidades em seus territórios.

Referências

Ambrosio, N. (2025, junho 04) Movimentos sociais querem pautar justiça climática na COP30.

Amazônia Real. https://amazoniareal.com.br/cop30/

Antunes, C. (2025, jan 24) COP30: O Brasil precisa cair na real.Sumauma. https://capitalreset.uol.com.br/clima/cop/cop30-o-brasil-precisa-cair-na-real/

Bansal, S., Sarker, T., Yadav, A., Garg, I., Gupta, M., & Sarvaiya, H. (2024). Indigenous communities and sustainable development: A review and research agenda. Global Business and Organizational Excellence43(4), 65-87. DOI:10.1002/joe.22237

Bond, L. (2025, mar 18) Quilombolas pedem maior participação nos debates da COP30. Agência Brasil. https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2025-03/quilombolas-pedem-maior-participacao-em-debates-sobre-cop30

Braz, G. (2025, maio 06) Indigenas reafirmam protagonismo na COP30 em evento em Brasilia.

Correio Braziliense. https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2025/06/7166089-indigenas-reafirmam-protagonismo-na-cop30-em-evento-em-brasilia.html

Chiaretti, D. (2025, mar 10) Brazil calls for global effort to tackle climate emergency. Valor International. https://valorinternational.globo.com/environment/news/2025/03/10/brazil-calls-for-global-effort-to-tackle-climate-emergency.ghtml

Climalnfo (2025, junho 08) Pré-COP Indígena reafirma protagonismo dos Povos Originários na

COP30. https://climainfo.org.br/2025/06/08/pre-cop-indigena-reafirma-protagonismo-dos-povos-originarios-na-cop30/

COIAB (2025) Declaração política dos povos indígenas da bacia amazônica e de todos os biomas do brasil para a cop30. https://coiab.org.br/wp-content/uploads/2025/06/DECLARACAO-DOS-POVOS-INDIGENAS-DA-AMAZONIA-PARA-A-COP30.docx.pdf

Cúpula dos Povos(2024) Carta Política – Manifesto da Cúpula dos Povos rumo à COP30 https://cupuladospovoscop30.org/en/manifesto-2/

Fellows, M., Zimbres,B., Guarido, P., Karipuna, K., Tuxá, D., do Vale, S., Melo, K., & Alencar, A. (2024) Demarcação é Mitigação Contribuições Nacionalmente Determinadas brasileiras sob a perspectiva indígena. APIB Oficial. https://apiboficial.org/files/2024/11/Demarcação-é-Mitigação.pdf

Lima, D.D. (2025, may 27) There will be no life on a burning planet. Undisciplined environments.https://undisciplinedenvironments.org/2025/05/27/there-will-be-no-life-on-a-burning-planet/

Rodriguez, S. (2025, apr 23) It’s shameful”: Amazon Indigenous people call for oil drilling ban at

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Souto, M. (2025, abr 11) COP30 mostrará territórios indígenas como parte do combate à crise

climática. Boletim Cop30. https://cop30.br/pt-br/noticias-da-cop30/cop-30-mostrara-territorios-indigenas-como-parte-do-combate-a-crise-climatica

Tubiana,L. & Guérin, E. (2025) Resisting the Empire of Fossil Fuels: A Strategy For COP30

in Lula’s Brazil. Géopolitique. https://geopolitique.eu/en/articles/a-new-hope-cop30-in-lulas-brazil/

Vasques, V. (2025, junho 09) Povos indígenas da Amazônia apresentam proposta de NDC com

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in EcoDebate, ISSN 2446-9394

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