A transição religiosa no Brasil: 1872-2049
Artigo de José Eustáquio Diniz Alves
O Brasil foi concebido no contexto das grandes navegações promovidas pela Europa cristã. A ocupação econômica das terras americanas constituiu um capítulo fundamental da expansão comercial europeia. No entanto, para além dos interesses econômicos, é importante destacar que o Brasil nasceu e se desenvolveu profundamente vinculado à religião católica, especialmente ao catolicismo ibérico.
O projeto colonizador português tinha como uma de suas metas prioritárias a evangelização do Novo Mundo. As velas das naus comandadas por Pedro Álvares Cabral ostentavam a Cruz de Malta — uma cruz de oito pontas, formada por quatro “Vs”, cujo desenho remonta às cruzadas medievais. O primeiro nome atribuído ao território foi Ilha de Vera Cruz.
Com o avanço das explorações e a constatação de que se tratava de um continente, o nome foi alterado para Terra de Santa Cruz. Foi também aos pés de uma cruz que se oficializou a Primeira Missa em solo brasileiro, celebrada por Frei Henrique de Coimbra no domingo, 26 de abril de 1500 (ALVES, 2022).
O catolicismo tornou-se, ao longo do tempo, uma das principais marcas identitárias do Brasil. Até o início da República, a Igreja Católica era a única instituição religiosa oficialmente reconhecida, mantendo-se hegemônica por grande parte do século XX. Ser brasileiro era, em larga medida, sinônimo de ser católico.
O primeiro censo demográfico do país, realizado em 1872 — meio século após a Independência —, indicou que 99,7% da população de 9,9 milhões de habitantes se declarava católica. Entre esses estavam a maioria dos escravizados e dos povos indígenas, classificados como católicos. Apenas 0,1% (cerca de 10 mil pessoas) foram registrados como evangélicos, em sua maioria imigrantes europeus oriundos de países de tradição protestante. Em 1890, primeiro ano da República pouca coisa mudou nos números.
Mas 98 anos depois, em 1970, a população total brasileira deu um salto para 93,1 milhões de habitantes, sendo 85,5 milhões de católicos (91,8%), 4,8 milhões de evangélicos (5,2%), 2,1 milhões de outras religiões (2,3%) e 702 mil autodeclarados sem religião (0,8%). A perda de filiações católicas ficou pouco abaixo de 1% por década.
Todavia, a redução do percentual de católicos brasileiros se acelerou bastante nas décadas seguintes. O número de católicos chegou a 121,8 milhões (83%) em 1991, passou para 124,9 milhões (73,6%) em 2000 e diminuiu para 123,3 milhões em 2010. Percebe-se que o número absoluto de católicos atingiu o valor máximo no ano 2000 e, pela primeira vez na história brasileira, o número absoluto de católicos caiu na década inaugural do século XXI.
O gráfico abaixo mostra que o percentual de pessoas que se autodeclaram católicas caiu de 89% em 1980, para 83,3% em 1991, para 73,9% no ano 2000, para 64,6% em 2010 e 56,7% em 2022. Entre 1980 e 2022 o percentual de pessoas que se autodeclaram evangélicos passou de 6,6% para 26,9%. Em 2022, o percentual de pessoas que se declaram sem religião ficou em 9,3% e o percentual de pessoas das demais religiões ficou em 7,1%. Os dados de 2010 e 2022 não incluem as crianças com menos de 10 anos.
Fica evidente que o Brasil está passando por um processo de transição religiosa que se desdobra em quatro movimentos: declínio absoluto e relativo das filiações católicas; aumento acelerado das filiações evangélicas; crescimento percentual das religiões não cristãs; aumento absoluto e relativo das pessoas que se declaram sem religião.
A tabela abaixo mostra a variação anual das mudanças percentuais dos quatro grandes grupos religiosos no Brasil entre 1980 e 2022. Nota-se que a queda dos católicos foi de -0,52% entre 1980 e 1991, subiu para o recorde de -1,04 entre 1991 e o ano 2000, caiu ligeiramente para -0,89% entre 2000 e 2010 e teve um queda mais expressiva de -0,69% entre 2010 e 2022.
Os evangélicos cresceram 0,22% ao ano entre 1980 e 1991, subiram para 0,71% entre 1991 e 2000, caíram ligeiramente para 0,63% ao ano entre 2000 e 2010 e tiveram uma queda mais significativa para 0,43% entre 2010 e 2022. O grupo que se autodeclara sem religião cresceu 0,18% ao ano entre 1980 e 1991, subiu para 0,20% entre 1991 e 2000, caiu para 0,15% ao ano entre 2000 e 2010 e caiu novamente para 0,12% entre 2010 e 2022.
Já o grupo das demais religiões apresentou uma variação positiva de 0,12% ao ano entre 1980 e 1991, subiu ligeiramente para 0,13% ao ano entre 1991 e 2000, caiu para 0,11% ao ano entre 2000 e 2010 e subiu para 0,14% ao ano entre 2010 e 2022. O maior crescimento ocorreu entre as religiões de matriz africana (Umbanda e Candomblé) que passaram de 0,3% do total populacional em 2010 para 1% em 2022.
Há que se destacar duas observações sobre o censo demográfico 2022. Primeiro é que houve um erro de cobertura censal que pode ter afetado ligeiramente os dados do quesito religião de 2022, pois enquanto o censo indicou uma população total de 203,081 milhões de habitantes em 2022, as projeções populacionais (revisão 2024) indicaram 210,863 milhões de habitantes (Alves, 02/09/2024). Em segundo lugar, houve uma ligeira mudança de metodologia, pois os resultados do censo 2022 não incluíram as crianças de 0 a 9 anos. Proporcionalmente os evangélicos são mais fortes entre os jovens e os católicos são mais fortes entre os idosos.
De qualquer maneira, os resultados do censo demográfico de 2022 mostram que houve uma desaceleração da queda dos católicos e uma redução do ritmo da subida dos evangélicos e também do grupo sem religião (a ausência de crianças com menos de 10 anos afetou a taxa do grupo sem religião). A única aceleração (mesmo que pequena) foi do grupo das demais religiões, conforme mostrado na tabela acima.
Tomando como base a variação percentual anual dos quatro grandes grupos entre 2010 e 2022, o gráfico abaixo apresenta uma projeção até o ano de 2049 quando as filiações evangélicas podem ultrapassar as filiações católicas se o ritmo da última variação intercensal for mantida.
O gráfico mostra que o percentual de católicos deve cair para 51,2% em 2030, para 44,3% em 2040 e para 38% em 2049. O percentual de evangélicos deve subir para 30,4% em 2030, para 34,7% em 2040 e para 38,6% em 2049. O percentual de pessoas que se declaram sem religião deve chegar a 12,5% em 2049 e o percentual das demais religiões deve chegar a 10,9% em 2049.
Em projeção anterior publicada aqui no Portal Ecodebate (Alves, 12/10/2022) foi estimado que a mudança de hegemonia entre católicos e evangélicos se daria em 2032. Na ausência de dados oficiais do IBGE entre 2010 e 2022, utilizamos os dados do grande crescimento dos templos evangélicos como base para estimar uma aceleração da transição religiosa no Brasil, como mostrado no artigo “O acelerado crescimento dos templos evangélicos e a transição religiosa no Brasil” (Alves, 20/12/2023).
Contudo, os dados do censo 2022, mesmo com suas possíveis limitações, mostram que houve uma desaceleração da transição religiosa no Brasil entre 2010 e 2022, com os católicos caindo em ritmo menor e os evangélicos subindo em ritmo mais lento.
Estudos mais aprofundados são necessários para avaliar toda a complexidade do cenário religioso do país.
Sem dúvida, os católicos mostraram resiliência e diminuíram o ritmo de perda de fiéis, valendo-se da capilaridade da longa tradição da Igreja Católica no Brasil. Os dados do censo 2022 indicam que os católicos devem manter a maioria absoluta (mais de 50%) das filiações religiosas no Brasil na atual década. A que se destacar que os evangélicos ultrapassaram os católicos no Acre e em Rondônia.
O ritmo de avanço dos evangélicos, no geral, perdeu força. Evidentemente, as explicações são multifacetadas. Porém, há evidências de que a associação entre alguns grupos evangélicos e movimentos de extrema-direita tem causado afastamento de fiéis mais moderados, além de gerar críticas dentro e fora das igrejas. Esse fenômeno ocorre em vários países, incluindo o Brasil, onde parte do evangelicalismo se alinhou a discursos políticos polarizados.
Uma das possíveis razões para o afastamento de moderados é que muitos fiéis buscam nas igrejas um espaço espiritual, não político. Quando líderes religiosos adotam posições partidárias radicais, alguns membros se sentem desconfortáveis ou até traídos. Igrejas que abraçam discursos extremistas (contra minorias, negacionistas, contra os direitos reprodutivos, etc.) podem afastar jovens e pessoas com visões mais inclusivas. Escândalos envolvendo pastores aliados a políticos controversos ou casos de corrupção e abusos sexuais minam a confiança nas instituições religiosas.
Desta forma, o fundamentalismo de setores evangélicos mais radicais parece provocar rejeição em boa parte da população brasileira. Há relatos de pessoas que deixaram igrejas evangélicas devido ao apoio incondicional a Bolsonaro e a pautas extremistas.
A politização extrema pode fortalecer a lealdade de quem vê a fé e a política como uma batalha, mas pode afastar os setores moderados que desejam equilibrar engajamento político e espiritualidade.
Os dados do censo 2022 não possibilitam uma análise definitiva sobre a transição religiosa no Brasil. Novas pesquisas serão necessárias para se traçar um quadro mais amplo do cenário atual e das perspectivas futuras.
O debate está aberto e é preciso mais tempo para se analisar todos os aspectos da transição religiosa no maior país católico do mundo.
José Eustáquio Diniz Alves
Doutor em demografia, link do CV Lattes:
http://lattes.cnpq.br/2003298427606382
Referências:
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https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv31839.pdf
ALVES, JED, BARROS, LFW, CAVENAGHI, S. A dinâmica das filiações religiosas no brasil entre 2000 e 2010: diversificação e processo de mudança de hegemonia. REVER (PUC-SP), v. 12, p. 145-174, 2012.
http://revistas.pucsp.br/index.php/rever/article/view/14570
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http://periodicos.pucminas.br/index.php/horizonte/article/view/P.2175-5841.2014v12n36p1055/7518
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ALVES, JED. Demografia e Economia nos 200 anos da Independência do Brasil e cenários para o século XXI, Escola de Negócios e Seguro (ENS), (com a colaboração de Francisco Galiza), maio de 2022.
https://prdapi.ens.edu.br/media/downloads/Livro_Demografia_e_Economia_digital_2.pdf
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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