O desafio de conciliar transição energética e justiça climática
Por Henrique Cortez*
Crise climática e desigualdade: Duas faces da mesma moeda
Em um mundo onde a temperatura global já ultrapassou 1,5°C acima dos níveis pré-industriais, a crise climática deixou de ser uma previsão distante para se tornar uma realidade palpável que afeta diariamente bilhões de pessoas.
No entanto, essa realidade não atinge a todos da mesma forma. Enquanto nações desenvolvidas debatem sobre metas de emissão para 2050, comunidades vulneráveis já enfrentam secas extremas, inundações devastadoras e outros eventos climáticos severos que ameaçam sua própria existência.
Como destacou Mary Robinson, ex-presidente da Irlanda e fundadora da Fundação Mary Robinson para Justiça Climática: “A justiça climática relaciona direitos humanos e desenvolvimento para alcançar uma abordagem centrada no ser humano, protegendo os direitos das pessoas mais vulneráveis e compartilhando os encargos e benefícios da mudança climática de forma equitativa e justa.”
Esta perspectiva fundamenta-se no fato de que as nações industrializadas, responsáveis por 79% das emissões históricas de gases de efeito estufa, enfrentam impactos proporcionalmente menores do que países em desenvolvimento, que contribuíram com apenas 21% dessas emissões.
O que é justiça climática?
A justiça climática vai além da simples redução de emissões de gases de efeito estufa. Trata-se de um conceito multidimensional que entrelaça direitos humanos, desenvolvimento social e equidade com as políticas ambientais. Busca garantir que a luta contra as mudanças climáticas não apenas preserve o planeta, mas também promova justiça distributiva, combatendo desigualdades históricas e estruturais.
O relatório mais recente do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) de 2022 enfatiza que as comunidades mais vulneráveis aos impactos das mudanças climáticas são aquelas com menor capacidade adaptativa devido à pobreza, marginalização histórica ou dependência direta de recursos naturais para subsistência.
Dados da ONU indicam que 80% das pessoas deslocadas por mudanças climáticas são mulheres. Similarmente, populações indígenas, que representam apenas 5% da população mundial, protegem cerca de 80% da biodiversidade global restante, mas enfrentam ameaças desproporcionais da crise climática.
A justiça climática também incorpora o princípio das “responsabilidades comuns, porém diferenciadas”, estabelecido na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC). Este princípio reconhece que, embora todos os países devam agir contra as mudanças climáticas, aqueles que historicamente mais contribuíram para o problema e têm maior capacidade econômica devem assumir a liderança nos esforços de mitigação e no apoio financeiro aos países em desenvolvimento.
Transição energética justa: Além da descarbonização
À medida que o mundo avança para uma economia de baixo carbono, a transição energética justa tornou-se um conceito central. Não é suficiente substituir combustíveis fósseis por fontes renováveis; é necessário considerar o impacto social dessas mudanças.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), uma transição energética justa deve garantir trabalho decente e meios de subsistência sustentáveis para todos os trabalhadores afetados pela descarbonização.
Estima-se que até 2030, a transição para uma economia verde possa criar 24 milhões de novos empregos globalmente, mas também provocar a eliminação de postos em setores tradicionais.
De acordo com relatório da Iniciativa para uma Transição Justa, publicado em 2023, a implementação de políticas de transição justa deve incluir cinco elementos fundamentais:
- Diálogo social e engajamento comunitário: Incluindo trabalhadores e comunidades afetadas no planejamento das políticas.
- Planejamento econômico regional: Diversificando economias locais dependentes de combustíveis fósseis.
- Proteção social e trabalhista: Oferecendo redes de segurança para trabalhadores deslocados.
- Requalificação profissional: Preparando a força de trabalho para novas oportunidades em setores sustentáveis.
- Investimento público direcionado: Priorizando áreas e populações mais vulneráveis aos impactos da transição.
No Brasil, a experiência da reconfiguração do setor sucroalcooleiro ilustra este desafio. A mecanização do corte de cana-de-açúcar, embora tenha reduzido emissões de queimadas, eliminou milhares de empregos sem oferecer alternativas adequadas aos trabalhadores. Este caso demonstra como políticas ambientalmente positivas podem gerar impactos sociais negativos quando implementadas sem planejamento adequado de transição justa.
Impactos sociais das políticas de mitigação climática
As políticas de mitigação do aquecimento global, embora necessárias, podem produzir efeitos colaterais que aprofundam desigualdades quando mal planejadas.
A implementação de impostos sobre carbono, por exemplo, pode afetar desproporcionalmente famílias de baixa renda se não forem acompanhados de mecanismos compensatórios.
Um estudo publicado em 2023 na revista Nature Climate Change analisou 400 políticas climáticas em 54 países e constatou que apenas 23% incluíam avaliações de impacto social em seu desenho. Entre as políticas analisadas, aquelas que incorporavam mecanismos de redistribuição de recursos arrecadados com impostos ambientais conseguiram reduzir a desigualdade em 76% dos casos.
O Banco Mundial, em seu relatório “Políticas Climáticas e Desigualdade” (2023), identificou três mecanismos pelos quais políticas climáticas podem afetar grupos vulneráveis:
- Efeitos de preço: Políticas como impostos sobre carbono podem aumentar o custo de bens essenciais, como energia e alimentos, afetando desproporcionalmente famílias de baixa renda que gastam maior percentual de sua renda nestes itens.
- Efeitos sobre o mercado de trabalho: A eliminação gradual de indústrias intensivas em carbono pode provocar desemprego em regiões altamente dependentes desses setores, sem necessariamente criar oportunidades equivalentes localmente.
- Acesso desigual a subsídios e benefícios: Incentivos para tecnologias limpas, como painéis solares ou veículos elétricos, frequentemente beneficiam consumidores de maior poder aquisitivo com capacidade de investimento inicial.
Segundo Thomas Piketty e Lucas Chancel, economistas especializados em desigualdade, em artigo publicado em 2022: “As políticas climáticas devem ser desenhadas não apenas para maximizar a redução de emissões por unidade de custo econômico, mas também para distribuir esses custos de forma progressiva, onerando mais aqueles com maior capacidade contributiva.”
Governança climática inclusiva: Quem decide?
A questão da representatividade nas decisões sobre políticas climáticas é central para a justiça climática. Fóruns internacionais como as COPs (Conferências das Partes) têm sido criticados pela sub-representação de nações em desenvolvimento e grupos vulneráveis.
Análises da composição das delegações nas COPs revelam desequilíbrios significativos. Por exemplo, na COP26 em Glasgow (2021), os países desenvolvidos enviaram em média delegações três vezes maiores que as nações menos desenvolvidas.
Um estudo da Universidade de Leeds mostrou que representantes de empresas de combustíveis fósseis superaram as delegações oficiais de muitos países vulneráveis às mudanças climáticas.
Tasneem Essop, diretora executiva da Climate Action Network International, destacou em 2022: “Não podemos ter justiça climática sem democratizar os processos decisórios. As vozes daqueles que estão na linha de frente da crise climática devem estar no centro da formulação de políticas.”
O relatório “Inclusão e Representatividade na Governança Climática Global” (UNEP, 2023) identificou quatro dimensões principais da governança climática inclusiva:
- Representatividade geográfica: Garantir que países de diferentes regiões e níveis de desenvolvimento tenham voz proporcional à sua população.
- Participação de grupos marginalizados: Incluir povos indígenas, comunidades tradicionais, mulheres e jovens nos processos decisórios.
- Transparência de processos: Assegurar que negociações não ocorram em espaços fechados dominados por atores poderosos.
- Capacidade técnica equitativa: Fornecer apoio para que delegações de países em desenvolvimento possam participar efetivamente das negociações complexas.
A inclusão é particularmente importante quando se consideram os povos indígenas. Dados da FAO e do Banco Mundial mostram que territórios indígenas, apesar de ocuparem menos de 22% da superfície terrestre, abrigam cerca de 80% da biodiversidade global e estocam quantidades significativas de carbono em suas florestas e solos.
Justiça intergeracional: O compromisso com o Futuro
A ciência climática aplicada à justiça social nos lembra que as decisões tomadas hoje terão impactos por gerações. O conceito de justiça intergeracional questiona o direito das gerações atuais de comprometer a capacidade das futuras de atender suas necessidades.
O filósofo Stephen Gardiner, em seu livro “A Perfect Moral Storm” (2011), caracteriza as mudanças climáticas como um problema ético único por sua natureza intergeracional: as gerações que mais contribuem para o problema não são as mesmas que sofrerão suas piores consequências. Isso cria o que ele chama de “tirania do presente” sobre o futuro.
Dados do relatório do IPCC de 2022 mostram que mesmo que todas as emissões cessassem hoje, os gases já liberados na atmosfera continuariam afetando o clima por décadas ou séculos. Por exemplo, o CO₂ tem uma vida média atmosférica de aproximadamente 100 anos, enquanto alguns gases industriais permanecem ativos por milhares de anos.
O economista Nicholas Stern, autor do influente “Relatório Stern” sobre a economia das mudanças climáticas, observou em uma palestra em 2021: “O que fazemos nos próximos 20 anos determinará as condições de vida na Terra pelos próximos séculos ou milênios. Poucas gerações na história humana enfrentaram responsabilidade tão grande.”
A justiça intergeracional implica três princípios fundamentais:
- Princípio da sustentabilidade: Garantir que recursos naturais críticos sejam preservados para gerações futuras.
- Princípio da opção: Não eliminar opções futuras através de ações irreversíveis (como extinções de espécies ou pontos de não-retorno climáticos).
- Princípio da compensação: Quando recursos não-renováveis são utilizados, deve-se investir em alternativas que beneficiem gerações futuras.
Esta visão exige que a viabilidade de políticas climáticas seja avaliada não apenas por critérios econômicos de curto prazo, mas considerando seus impactos distributivos ao longo do tempo.
Como tornar políticas climáticas mais justas?
Diversas pesquisas recentes e experiências práticas apontam caminhos concretos para incorporar a justiça climática no desenho de políticas públicas:
- Avaliação de Impacto Social: O Framework de Avaliação de Impacto Climático e Equidade (FACE), desenvolvido pelo World Resources Institute em 2023, propõe uma metodologia sistemática para analisar como diferentes grupos populacionais serão afetados por políticas climáticas, distribuindo custos e benefícios. Países como Canadá e Escócia já adotaram avaliações obrigatórias de impacto distributivo para suas políticas climáticas.
- Participação Efetiva: O modelo de “co-design” de políticas implementado pela Nova Zelândia em seu Plano Nacional de Adaptação Climática (2022) estabeleceu comitês consultivos com representação paritária de comunidades Maori, garantindo que perspectivas indígenas fossem incorporadas desde a concepção das políticas. Esta abordagem resultou em medidas que combinam conhecimento científico ocidental com saberes tradicionais.
- Financiamento Climático Equitativo: O Fundo Verde para o Clima, estabelecido sob a UNFCCC, adotou em 2023 novos critérios para priorização de projetos que explicitamente consideram o Índice de Vulnerabilidade Climática e indicadores de desenvolvimento humano. Os dados mostram que, historicamente, apenas 25% do financiamento climático global foi direcionado para adaptação, que beneficia diretamente populações vulneráveis, enquanto 75% foi para mitigação.
- Capacitação Local: O programa “Adaptação Baseada em Comunidades” da CARE International documentou 200 estudos de caso em 37 países onde o fortalecimento de capacidades locais para adaptação climática resultou em soluções mais duradouras e custo-efetivas do que abordagens impostas de cima para baixo. Estas iniciativas incluem sistemas de alerta precoce gerenciados localmente, bancos de sementes comunitários e infraestrutura verde adaptada às condições locais.
- Proteção de Direitos Socioambientais: Um estudo publicado na revista Science em 2023 demonstrou que áreas protegidas gerenciadas por povos indígenas têm taxas de desmatamento 50% menores e maior resiliência climática do que áreas sob controle estatal. O reconhecimento legal de direitos territoriais indígenas provou ser uma das estratégias mais eficazes de conservação e sequestro de carbono.
Edward Davey, diretor do World Resources Institute UK, resumiu em 2024: “As políticas climáticas mais eficazes são aquelas que não tratam justiça social como um co-benefício opcional, mas como um componente essencial do desenho da política. Não é apenas uma questão moral, mas também de eficácia.”
Por um futuro climaticamente estável e socialmente justo
A verdadeira medida do sucesso no combate às mudanças climáticas não será apenas a redução das emissões de gases estufa, mas também como esse processo contribuirá para reduzir desigualdades históricas e criar sociedades mais resilientes e equitativas.
Como observou o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, em seu discurso na Assembleia Geral em setembro de 2023: “A crise climática é fundamentalmente uma crise de justiça. Resolver uma sem abordar a outra é impossível.”
A evidência científica é clara: segundo o relatório “Desigualdade Climática Global” (2022), produzido pelo Stockholm Environment Institute, o 1% mais rico da população mundial é responsável por mais emissões de carbono do que os 50% mais pobres. Ao mesmo tempo, análises do Banco Mundial estimam que as mudanças climáticas podem empurrar 132 milhões de pessoas à pobreza extrema até 2030.
O desafio da justiça climática é complexo, envolvendo questões de desenvolvimento, direitos humanos, comércio internacional e políticas energéticas. No entanto, ignorá-lo significaria trocar uma crise por outra, substituindo a instabilidade climática por instabilidade social.
As experiências bem-sucedidas, desde a política de “dividendo de carbono” implementada na Colúmbia Britânica (Canadá), que redistribui receitas de impostos sobre carbono para famílias de baixa renda, até a inclusão formal de representantes indígenas nas negociações climáticas na Costa Rica, demonstram que soluções justas e eficazes são possíveis.
À medida que governos e sociedade civil se preparam para a próxima rodada de negociações climáticas, a justiça climática deve estar no centro das discussões, não como um elemento adicional, mas como princípio orientador de todas as ações de mitigação e adaptação às mudanças climáticas.
Como resumiu a ativista ambiental Wangari Maathai: “Na luta contra as mudanças climáticas, não podemos ter sucesso a menos que todos os membros da sociedade sintam que têm algo a ganhar com a transformação.”
Henrique Cortez, jornalista e ambientalista. Editor do EcoDebate.
Referências adicionais:
Estudo global revela desconhecimento sobre justiça climática
Violações de direitos envolvendo transição energética e mineração
in EcoDebate, ISSN 2446-9394
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