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Gado avança na reserva extrativista Chico Mendes, no Acre. Fábrica estatal de camisinhas reativa mercado de látex

20 anos depois do assassinato do líder seringueiro, o desmatamento alcança 6,3% da área total de conservação federal. É tarefa de apenas um fiscal combater as queimadas e a pressão da pecuária, que acabou com a maior parte das seringueiras da região. Por Marta Salomon, da Folha de S.Paulo, 21/09/2008.

“Sou o homem de um milhão de hectares”, apresenta-se, sem exagero, José Carlos Nunes Silva, 43 anos. Ele é o único fiscal de um território de seis vezes o tamanho da cidade de São Paulo, a reserva extrativista Chico Mendes, no Acre.

Vinte anos depois do assassinato do líder seringueiro, símbolo da defesa da floresta, a área desmatada na unidade de conservação federal que leva seu nome cresceu 11 vezes e o gado, que não deveria estar lá segundo o projeto original, chega a quase 10 mil cabeças.

O desmatamento alcança 6,3% da área total, segundo o Sipam (Sistema de Proteção da Amazônia). Apesar da queda recente no ritmo das motosserras, o percentual se aproxima do limite máximo de desmatamento admitido e -mais importante- coloca em xeque as chances de o extrativismo impedir o abate da floresta.

“É difícil controlar esse negócio; se não for com mão de ferro, isso tudo acaba”, diz o fiscal. É tarefa dele conter as queimadas e, sobretudo, a pressão da pecuária, que arrasou a maior parte das seringueiras e dos pés de castanha que havia no entorno da Chico Mendes e pressiona suas fronteiras. Na reserva, o rebanho já conta com 8.431 cabeças, de acordo com o Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Acre, em levantamento feito a pedido da Folha.

O plano de manejo ainda em implantação tolera a abertura de apenas 15 hectares de floresta por família (o suficiente para 15 a 30 cabeças de gado), mas o cadastro de vacinação deste ano identificou criações com até 648 cabeças na reserva. O excedente está sujeito a confisco. Os responsáveis por irregularidades podem ser expulsos. Um cálculo preliminar estima que 15% dos ocupantes da reserva estejam nessa situação.

“Não vai ser fácil o ajuste”, avalia Renato Ferreira Ribeiro, presidente da associação dos moradores e produtores da reserva Chico Mendes. “Alguns poucos não têm gado”, diz.

Boi pirata

O ministro Carlos Minc (Meio Ambiente) reconhece na pressão da pecuária sobre unidades como a Chico Mendes, tanto uma alternativa de sobrevivência na floresta como resultado das dificuldades do Estado para zelar por áreas protegidas. “A gente sabe que tem muito boi pirata lá, até por causa da pobreza”, afirma.

A criação de novas unidades de conservação é tema de divergências no governo. Minc, defensor da idéia, enfrenta a oposição dos ministros Reinhold Stephanes (Agricultura) e Mangabeira Unger (Assuntos Estratégicos), coordenador do PAS (Plano Amazônia Sustentável). Essa oposição se dá em nome do suposto excesso de restrições ao agronegócio na região da Amazônia.

O baixo preço da borracha e a dificuldade de escoar a produção durante anos levaram quase ao abandono das árvores que Chico Mendes e outros seringueiros defendiam com seus próprios corpos, contra a ação de fazendeiros, nos chamados “empates” dos anos 70, uma forma pacífica de impedir os desmatamentos.

No ano passado, com a produção em declínio, o extrativismo na floresta amazônica foi responsável por apenas 4.000 das 110 mil toneladas de borracha natural produzidas no país. Outras 230 mil toneladas tiveram de ser importadas.

Salário mínimo

“Da seringueira não se vive mais não, se não tem gadinho, não dá”, justifica Creviano Pereira de Lima, cuja família mantém 100 cabeças de gado na colocação Gafanhoto.

Filho de ex-seringueiro, o rapaz não se anima, por ora, a abastecer a fábrica estatal de preservativos recém-inaugurada em Xapuri. Alega atrasos nos primeiros pagamentos de R$ 4,10 por quilo da borracha. Esse preço inclui o pagamento de R$ 0,70 por serviços ambientais.

Próximo do lugar onde Creviano caçava, com uma espingarda calibre 22, Domingo Florentino da Conceição corria para recolher o látex das seringueiras que havia cortado nas primeiras horas do dia. Ao final do mês, calcula Domingo, o “leite” extraído renderá cerca de um salário mínimo.

Dentro da reserva, o desmatamento ainda é menor do que fora. Entre os seis municípios que abrigam a Chico Mendes em seus territórios, apenas dois (Assis Brasil e Sena Madureira) registram índices de desmatamento inferiores aos 6,3% registrados pelo Sipam na reserva. Segundo dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), os municípios de Xapuri, Brasiléia, Rio Branco e Capixaba perderam entre 21% e 47% da floresta.

O abate de árvores já superou o limite legal de 10% no emblemático Seringal Cachoeira, cuja desapropriação foi o pivô do assassinato de Chico Mendes, em dezembro de 1988, a mando do antigo dono da área, Darly Alves da Silva. O presidente da associação dos moradores do Cachoeira, Raimundo Monteiro, atribui os 13% de desmatamento à “teimosia” dos assentados: “Gado tem bastante”.

Tia de Chico Mendes, Cecília Teixeira, 82, ainda mora no assentamento. “Aqui e acolá cortam a árvore e vendem o leite, mas se vive mais é de plantação, vende uma cabecinha de gado, quase todo mundo cria”, diz.

Frase

“Aqui e acolá cortam a árvore e vendem o leite, mas se vive mais é de plantação, vende uma cabecinha de gado, quase todo mundo cria” CECÍLIA TEIXEIRA DO NASCIMENTO, 82, moradora da reserva Chico Mendes (AC)

Família de Chico Mendes teme que seus ideais sejam esquecidos

À beira do rio Acre, a casa onde Chico Mendes viveu é preservada como no final da tarde em que ele foi assassinado, 20 anos atrás. Até o dominó que ele jogava é mantido sobre a mesa da cozinha, e manchas de sangue ainda podem ser vistas nas paredes de madeira. O livro de visitas do museu registra a passagem de pessoas de outros Estados e países. Entre os conterrâneos de Chico Mendes, no entanto, há divergências sobre a sobrevivência de seus ideais em Xapuri e na floresta.

“Era para ser uma memória muito viva, mas vale o ditado de que santo de casa não obra milagre. Aqui prevaleceu o conceito de destruir para desenvolver, inclusive dentro da própria reserva”, observa Raimundo Mendes de Barros, primo do líder seringueiro. Ele mora na reserva extrativista Chico Mendes e disputa vaga de vereador em Xapuri, nas eleições de outubro.

À frente da fundação que preserva a memória do pai, Elenira, 24 anos, se preocupa com os mais jovens. “Aos 17, 18, 19 anos, muitos jovens de Xapuri não sabem quem foi Chico Mendes”. A fundação exibe uma cópia de carta dirigida pelo líder ao “jovem do futuro”, de um ainda longínquo 6 de setembro de 2120, data de aniversário de uma “revolução socialista mundial” sonhada por ele.

Elenira se ocupa dos efeitos das queimadas sobre o clima na região. Ao lado dela, a mãe, Ilzamar diz que é preciso dar atenção também aos seringueiros mais velhos. “Realmente, há muito o que ser trabalhado”, insiste a viúva de Chico Mendes.

Fábrica estatal de camisinhas reativa mercado de látex

Vizinhos na estrada da Borracha, que dá acesso à cidade de Xapuri, a recém-inaugurada fábrica estatal de preservativos e um frigorífico dão ao visitante um resumo da novela do combate ao desmatamento na terra de Chico Mendes, sob um céu tomado pela fumaça -trazida pelos ventos de queimadas das vizinhas Rondônia e Bolívia, dizem os locais.

A fábrica, que só deverá entrar em operação no mês que vem, começa a reativar a produção de látex na região. O frigorífico abate, em média, cem cabeças vindas por mês da reserva extrativista Chico Mendes. O preço de um dia de trabalho nos seringais não supera o valor pago pela arroba do gado.

“É uma luta desigual, porque o gado dá mais”, contabiliza o ministro Carlos Minc (Meio Ambiente), que estuda uma edição da operação de apreensão de gado ilegal na reserva extrativista Chico Mendes, sob aplausos da viúva do líder seringueiro, Ilzamar: “Acho aquele negócio de boi pirata legal demais”.

Mas o ministro espera efeito mais relevante da medida aprovada pelo Conselho Monetário Nacional, que prevê o pagamento de subsídios aos produtores para a garantia de preço mínimo de R$ 3,50 por quilo de borracha natural. Esse preço corresponde ao custo da borracha importada da Malásia e supera o valor médio pago aos seringueiros extrativistas no Amazonas e no Acre, de R$ 2,70 por quilo.

Sócio do frigorífico Frigoverde e presidente do sindicato dos produtores rurais, Nilberto Menezes calcula que 60 bois são abatidos por dia na cidade. Uma parte do rebanho segue para frigoríficos maiores na capital, Rio Branco, distante 150 quilômetros.

Aproximadamente cem cabeças abatidas por mês sairiam da reserva extrativista, estima Menezes. “Os dados não são muito precisos, porque há muitos atravessadores e não se sabe ao certo o que vem da reserva, talvez seja mais.”

A fábrica de preservativos Natex já tem 550 seringueiros cadastrados. Dirlei Bersch, gerente da empresa, diz que a meta é alcançar 700 fornecedores de látex para a produção de 100 milhões de unidades por ano. O início da operação depende de registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária, previsto para outubro.

A produção será destinada ao Ministério da Saúde, que bancou mais da metade do investimento de R$ 30 milhões para a construção da fábrica, inaugurada em abril.

[EcoDebate, 22/09/2008]