EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

ArtigoEditorial

A crise hídrica chegou para ficar, por Henrique Cortez

 

seca

 

[EcoDebate] Na última década, pelo menos, cientistas, pesquisadores e ambientalistas insistentemente alertam para os riscos de uma grave crise hídrica.

Alertaram para a necessidade de revitalizar bacias hidrográficas, recuperar mananciais, ampliar ao máximo os sistemas de captação e tratamento de esgoto, conservar e proteger as áreas de recarga dos aquíferos. Isto sem falar, da redução do desperdício dos sistemas de distribuição, do uso perdulário da água pela agricultura e do desperdício pelos consumidores.

Além disto, cientistas, pesquisadores e ambientalistas também alertavam que o desmatamento da floresta amazônica ameaçava os ‘rios voadores’, de fundamental importância para o clima e as chuvas na região sudeste.

Alertaram em vão e foram rotulados de catastrofistas e apocalípticos, para dizer o mínimo. Os desenvolvimentistas a qualquer custo e os paladinos do agronegócio, em especial, sempre desqualificaram os alertas, por maior embasamento científico que tivessem.

Sei disto muito bem porque perdi a conta de quantas vezes enfrentei esta desqualificação.

Pois bem, exatamente como nos alertas, a crise hídrica chegou.

O estudo ‘O Futuro Climático da Amazônia‘, por exemplo, estimou que o desmatamento acumulado na Floresta Amazônica, em 40 anos de análise, somou 762.979 quilômetros quadrados (km²), o que corresponde a três estados de São Paulo. Dentre suas conclusões, destacou que floresta amazônica não mantém o ar úmido apenas para si mesma. Ela exporta essa umidade por meio de rios aéreos de vapor, os chamados “rios voadores,” que irrigam áreas como o Sudeste, Centro-Oeste e Sul do Brasil e outras áreas como o Pantanal e o Chaco, além da Bolívia, Paraguai e Argentina.

O pesquisador do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), Antônio Nobre, em entrevista e com base no estudo, estimou que, nos últimos 40 anos, a Amazônia perdeu 42 bilhões de árvores e que é impossível não relacionar os dados com a crise hídrica e a seca pelas quais passa o Brasil atualmente.

Ainda segundo Nobre, uma árvore grande da Amazônia chega a evaporar mil litros de água em apenas um dia. Se calcularmos todas as árvores da bacia amazônica, a quantidade de vapor que vai pra atmosfera corresponde a 20 bilhões de toneladas de água por dia (mais que o Rio Amazonas coloca no Oceano Atlântico no mesmo período).

A mesma lógica perversa também ocorre no Cerrado, vigorosamente devastado para a expansão do agronegócio. O Prof. Altair Sales Barbosa, em entrevista, destacou que …”Somente na abrangência do Cerrado, destaca, “encontram-se três grandes aquíferos responsáveis pela formação e alimentação dos grandes rios continentais. Um deles e o mais conhecido é o aquífero Guarani, associado ao arenito Botucatu e a outras formações areníticas mais antigas. Esse aquífero é responsável pelas águas que alimentam a bacia hidrográfica do Paraná, além de alguns formadores que vertem para a bacia Amazônica. Os outros dois são os aquíferos Bambuí e Urucuia (…) Os aquíferos Bambuí e Urucuia são responsáveis pela formação e alimentação dos rios que integram a bacia do São Francisco e as sub-bacias hidrográficas do Tocantins, Araguaia, além de outras situadas na abrangência do Cerrado”. Isso significa que, “representada por uma complexa teia, as águas que brotam do Cerrado são as responsáveis pela alimentação e configuração das grandes bacias hidrográficas da América do Sul”. “

Em meio a isto, o rio São Francisco agoniza, a ponto de sua nascente histórica ter secado. E, em quase todo país, os estoques de água nos reservatórios das hidrelétricas estão perigosamente baixos, como nos níveis de 2001, trazendo de volta o risco de racionamento de energia.

Diante deste grave cenário, aqueles que nos desqualificaram permanecem impávidos e incapazes de autocritica. Uma parte, relativiza a crise e aposta na generosidade de São Pedro. Outra parte, opta por defender magaobras hídricas como ‘solução’, embora em custos astronômicos. Nesta lógica imediatista, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, apresentou à presidenta Dilma Rousseff, uma lista de oito obras, orçadas em R$ 3,5 bilhões, visando a ‘segurança hídrica’ de São Paulo. Mais uma vez, mais obras, obras, obras e nada de gestão, eficiência, redução de desperdício e revitalização de bacias.

Ou seja, os desenvolvimentistas apostam em mais do mesmo. E, mais uma vez, alguns apostam e todos perdem.

Sinceramente, não percebo que governos, autoridades, gestores, usuários e consumidores realmente compreendam a dimensão da crise e que as soluções passam pelas mesmas recomendações que cientistas, pesquisadores e ambientalistas fazem há mais de uma década.

Pena, porque a crise hídrica chegou para ficar.

Henrique Cortez, jornalista e ambientalista, é editor da revista Cidadania & Meio Ambiente e do portal EcoDebate.

Referências:

O Futuro Climático da Amazônia

Desmatamento acumulado na Amazônia cobra fatura e começa a afetar o clima, diz estudo

Podcast: Amazônia perdeu 42 bilhões de árvores nos últimos 40 anos

A complexa teia hídrica que brota do Cerrado está ameaçada. Entrevista com Altair Sales Barbosa

A crise hídrica em São Paulo e no São Francisco, artigo de José Eustáquio Diniz Alves

Alckmin apresenta a Dilma obras para garantir a oferta de água em SP

Desperdício de água tratada pode chegar a 50% nas grandes cidades só com vazamentos da rede

 

Publicado no Portal EcoDebate, 11/11/2014


[ O conteúdo do EcoDebate pode ser copiado, reproduzido e/ou distribuído, desde que seja dado crédito ao autor, ao EcoDebate e, se for o caso, à fonte primária da informação ]

Inclusão na lista de distribuição do Boletim Diário do Portal EcoDebate
Caso queira ser incluído(a) na lista de distribuição de nosso boletim diário, basta clicar no LINK e preencher o formulário de inscrição. O seu e-mail será incluído e você receberá uma mensagem solicitando que confirme a inscrição.

O EcoDebate não pratica SPAM e a exigência de confirmação do e-mail de origem visa evitar que seu e-mail seja incluído indevidamente por terceiros.

Remoção da lista de distribuição do Boletim Diário do Portal EcoDebate
Para cancelar a sua inscrição neste grupo, envie um e-mail para ecodebate@ecodebate.com.br. O seu e-mail será removido e você receberá uma mensagem confirmando a remoção. Observe que a remoção é automática mas não é instantânea.

Alexa

6 thoughts on “A crise hídrica chegou para ficar, por Henrique Cortez

  • Henrique,

    o modelo de civilização brasileira está rompendo o “ciclo das águas” no Brasil. Então, o fenômeno atual de escasseamento está vinculado a algo mais profundo, à origem das chuvas (Amazônia), à reservação e distribuição das águas (Cerrado), agravado pelo uso perdulário e irresponsável em vários setores econômicos e descuido com todos os mananciais.
    Então, veio mesmo para ficar.

  • claudia visoni

    Faço minhas as suas palavras Henrique. Durante décadas os cientistas não cooptados pelo sistema e os ambientalistas foram ridicularizados. E agora que a crise deu as caras os governantes planejam obras caríssimas e ignoram a necessidade urgente de restaurar florestas, proteger nascentes, rios e mananciais. A política do tiro no pé.

  • Uma proposição:

    NOVO REORDENAMENTO NA ORGANIZAÇÃO SOCIAL, POLÍTICA E ECONÔMICA DO PLANETA TERRA.

    Se no Brasil, que é tido como privilegiado, por conter 12% de toda a água doce do planeta Terra, “a crise hídrica chegou para ficar”, que dizer da situação planetária?

    Outra questão que me chama a atenção e que, certamente, agride a todas as mentes sensatas, é o fato de técnicos “cooptados pelo sistema”, conforme classificação de Claudia Visoni, em comentário acima, ocupam canais de televisão para defender o reuso das água como solução suficiente para sanar todos os problemas decorrentes da crise hídrica brasileira, e não fazem qualquer alusão à recuperação das bacias dos rios que já foram mortos e dos que estão morrendo, nem de qualquer corpo d’água, muito menos à implantação de medidas governamentais objetivando a redução da população humana, através de rígido controle da natalidade, como se a superpopulação humana não fosse o instrumento utilizado pelo regime capitalista para promover o desenvolvimento econômico almejado, o qual tem como subprodutos, ou dejetos, a devastação ambiental e a consequente crise hídrica, já instaurada, e outras alterações igualmente prejudiciais ao equilíbrio do sistema Terra, como a acidificação dos oceanos e o aquecimento global.
    Se a população humana continuar crescendo ou, menos pior, se estabilizar, a devastação ambiental não poderá ser contida nem mesmo controlada, pois será o poder econômico, com o aval dos Estado-nações, quem ditará o ritmo da devastação a ser realizada.
    Diante desse quadro, colocar a população humanos para beber esgoto não representa uma solução para o problema da falta de água, e o que é pior: sobre o que acontecerá às demais espécies – animais e vegetais – os técnicos cooptados nem falam.
    De tudo que o artigo apresenta e que os comentários trazem, se conclui que a espécie humana chegou ao momento crucial da sua existência, o qual lhe cobra uma decisão imediata: ou submeter-se aos desígnios do capitalismo ou mobilizar todas as forças humanas do Planeta – intelectualidade, cientistas, lideranças políticas, econômicas e religiosas – interessadas na permanência da vida na Terra, para dar um novo reordenamento na organização social, política e econômica do Planeta, instalando, talvez, uma única administração planetária, na qual os Estados nacionais deixem de existir, e a dominação, a competição e a exploração entre os seres humanos sejam substituídas pela colaboração e pela solidariedade.

    Parabenizo o autor, Henrique Cortez, pelo excelente trabalho apresentado, e agradeço a oportunidade que me deu para tentar contribuir, pouco que seja, com o enorme trabalho que haveremos de realizar.
    Se seremos exitosos nessa empreitada, ou se sofreremos o colapso global, o tempo nos dirá.

  • João Augusto Madeira

    Enquanto isso, em Minas Gerais, forças políticas e econômicas poderosas se mobilizam para licenciar mais mineração sobre áreas de recarga de aquíferos (Serra do Gandarela) e para licenciar a destruição do Rio Santo Antônio para fornecer água para minerodutos. Vão usar água limpa, em quantidade suficiente para abastecer uma cidade de 250 mil habitantes, para carregar minério de forma mais barata para um porto, por um tubo que cortará municípios onde falta água… Como é possível que isso seja cogitado???

  • Valdeci, permita-me discordar de você com relação ao reúso da água.
    Água é para ser usada e reusada. O ciclo hidrológico nos leva a essa conclusão. Você pode estar bebendo água que foi xixi de um dinossauro há alguns milhares de anos.
    Como diz o nordestino, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Se defendemos o reúso da água (e eu vou mais longe, me bato pela potabilização do esgoto sanitário), não quer isso dizer que devemos deixar de lado a proteção de mananciais, o plantio de matas ciliares, o controle efetivo contra a devastação da Amazônia. Tudo isso precisa ser feito e, também, o reúso da água.
    O João Augusto trouxe uma má notícia e eu dou uma boa notícia. A Vale do Rio Doce está fechando contrato com a Copasa para comprar o efluente da Estação de Tratamento de Esgoto do Onça, no norte de Belo Horizonte. Assim, ela vai reutilizar o esgoto tratado em suas atividades de mineração.

  • “nos últimos 40 anos, a Amazônia perdeu 42 bilhões de árvores”.

    É o Brasil trabalhar, para que nos próximos 40 anos, a Amazônia ganhe 42 bilhões de árvores!

Fechado para comentários.