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Artigo

Por uma democracia social com partidos políticos de outro tipo(3), artigo de Bruno Lima Rocha

[EcoDebate] Neste artigo da série, retomando a arena prioritária para este modelo e suas razões, subordinando o conceito de hábitos de vida incorporados a uma classe, fração ou setor desta e sua estrutura de código decifrável, incorporável para o recrutamento e treinamento político para uma organização política de tipo não-eleitoral. A todo o momento a problematização aqui defendida e apresentada é a de superar equívocos da pós-modernidade – período histórico erroneamente denominado de pós-1968 – com os conceitos-chave da política em sentido estrito, ou seja, da política como a continuação do conflito por direitos, demandas e projeções de poder.

Duas variações de erro e o mito (falsificável) da “classe para si”


Temos duas variações de erros típicos a apresentar aqui. Um destes, passa pelo mito da “consciência de classe”, como se houvesse uma e não várias formas de tomar ciência de sua condição (somente quando em comparação com as demais). Outro erro decorrente é supor que tomar ciência implique em algum grau de rebeldia contra o dominador. Algo imediato. São dois problemas distintos, quase sempre abafados pelas mitologias de origem determinista e economicista. Óbvio que como toda verdade revelada por uma lei supostamente universal, esta tem porta-vozes, eleitos por si mesmos e proclamados por uma espécie de destino manifesto.

A hipótese da falsa consciência ou da não-consciência tem origem na noção de que se o indivíduo não cumpre aquilo que o partido advoga para a classe, ele se encontra no nível de consciência da classe em si e não na classe para si. Ou seja, o próprio partido já se auto-proclamou porta-voz dos interesses do povo ou da classe trabalhadora, como sendo este órgão (o partido), a classe para si. Sinceramente, tudo isso não passa de absurdo teórico e pretensão meta-filosófica. Afirmamos que o comportamento de classe é um aspecto, a identidade outro e a opção um terceiro, que pode adquirir uma série de significações distintas.

O comportamento de classe enquanto vivência dos códigos através da norma e consumo cultural pelas representações das indústrias de bens simbólicos, se adquire majoritariamente através de trajetória incorporada, aproximando-se assim do conceito de habitus (ver Bourdieu, 1979, cap 8). Também se dá através de esforço para inserção e incorporação em outra classe que não a de origem. Este conceito é reconhecido pela tradição de esquerda como opção de classe. Um termo leninista em desuso, e que considero um problema de falsa humildade, pois seus defensores tornaram-se depois nova classe dominante no regime de Capitalismo de Estado (sob a ditadura do comitê executivo do secretariado do partido) é suicídio de classe. Esta noção já foi bastante utilizada para setores estudantis universitários que, com possibilidade de ascensão ou mobilidade social através da graduação, optam por não assumir funções intermediárias na estrutura de classes do capitalismo. O mesmo se dá ao reverso, quando o suicídio é para cima, no caso da parcela deste setor que vai para a universidade receber treinamento para renovar a perpetuação. Isto, pela tipologia liberal de Bobbio e Cia. trata-se de renovação para perpetuar o desenho da pirâmide social, alterando apenas seu caleidoscópio de cores e frações de elites dirigentes, incluindo-se aí os percentuais de representantes destacados através de alguns cortes, a saber: gênero, etnia, origem sócio-econômica ou de portadores de necessidades especiais.

Após passarmos por esta longa ponderação comentada, retomamos a afirmação que o habitus poupa custos e esforços de sanções e de ambientação, mas não supera problemas de ordem de compreensão teórica e de mecanismo de funcionamento do ambiente político. A cultura política é componente, mas não é resultante dos processos políticos. Esta compreensão depende exclusivamente de treinamento, tanto teórico, conhecimento histórico e de vivência, compreendida por experiência empírica analisada a luz da própria razão da instituição política, da maioria dos quadros.

Saídas de curto prazo ou de ordem tática tais como encarar a participação eleitoral como estratégica, as alianças de classes no plano eleitoral ou no outro extremo, alguma opção de tipo foquista ou massista também podem ser evitadas caso as ferramentas de interpretação e as políticas deliberadas pelo coletivo sejam permanentemente reforçadas e estudadas. Delegar a fidelidade do militante para como as orientações ideológicas e partidárias apenas para a vivência individual ou ao mundo das idéias (e conjecturas do pensamento) não são suficientemente fortes para se contrapor a uma dinâmica que já é, desde o ponto de partida, hegemonizada pelas pautas e agendas comandadas pelas elites dirigentes de um determinado regime; e neste caso, do regime de democracia representativa.

O período histórico exemplar dessa passagem e incorporação da agenda legal por sobre as agendas estratégicas está muito bem debatido e com derivações de importantes teorias para a politologia contemporânea (obs: insisto em afirmar a politologia como substantivo genérico da área ao invés da ciência política). No caso, para uma discussão precisa da participação eleitoral da social-democracia européia, entendo como fundamental ver a obra de Przeworski (1995, pp.39-44) e como se deu a incorporação de partidos de massa às dinâmicas dos Estados capitalistas do centro do sistema-mundo. Como não tratamos neste artigo de momentos de ruptura, mas sim de trabalho no longo prazo sob regimes de democracia representativa sem distribuição de renda e participação política em decisões estratégicas para o país (América Latina), apenas apontamos a discussão de “reforma ou revolução”, nesta obra de Przeworski, pp.44-51. Neste trecho do livro, é fundamental ver como a carga de compromissos adquiridos antes de eleições majoritárias (como, por exemplo, um programa de transição nacional-estatista, como o promovido no governo de Salvador Allende, Chile, 1970-1973), uma vez que este é impossível de realizar dentro da legalidade, exclui outras possibilidades rupturistas, já que a ferramenta de organização de classe (o partido, ou a organização política) está compartilhando parcelas de poder do governo central, dentro do regime burguês, e com responsabilidades poli classistas.

As arenas prioritárias e o treinamento necessário: a necessidade de se fazer escola

Ressalto que os equívocos não são apenas obras do acaso. O erro na análise é um erro de treinamento político. A falta de crítica interna é um reflexo da ausência de democracia interna. A compreensão das realidades (treinamento), os enlaces através da inserção social do partido (através de seus quadros aí recrutados) e uma carga de experiências materiais e oportunidades políticas concretas formam um conjunto mínimo para ir mantendo e adequando uma instituição política para cumprir seu programa máximo de câmbio social e ruptura com a ordem constituída no longo prazo.

Um último aspecto necessário para o treinamento básico dos quadros deste tipo de partido é a adequação para seus níveis de responsabilidades, das arenas prioritárias para o partido se lançar na vida política onde este se afirma. Por exemplo, o nível eleitoral não basta ser considerado como tático ou secundário, uma vez envolvido, salvo raras exceções históricas, a tendência é que a agenda das eleições e a gerência do Estado consumam as energias de quem antes se organizava para modificar a sociedade. Quando este nível negado, aponta para este partido outras arenas diferentes das esferas legais de concorrências por parcelas do poder. É fundamental a prática teórica interna como mecanismo de fortalecimento decisório, além de fornecer uma análise conjuntural permanente. Cumprir esta pauta interna de forma “afiada” é a garantia de aplicação desta análise no nível social, o que pode ser definitivo para o sucesso ou não – ou ao menos da continuidade do trabalho – do trabalho deste modelo de partido.

Um observador externo, que não compreenda os objetivos estratégicos de uma determinada instituição política, tende a ver este tipo de partido como “suicida” (caso analise pela via do comportamento político) ou “infantil” (numa compreensão mais precária de evolucionismo político). Já se o jogo político prioritário para esta organização é a arena do poder real, a compreensão muda. O determinante passa a ser a própria matéria prima da ciência política, que é formada pelas relações de força em uma sociedade realmente existente. No caso latino-americano, uma sociedade de classes e de controle social das elites do regime por sobre as maiorias em geral sub-representadas.

Se esta for a arena eleita pelo modelo orgânico, então há equivalência de propósito e conduta política de acordo com o programa e análise deste tipo de organização. Ao inverso do modelo de análise tradicional (ancorado na teoria das elites e no mito da indissolubilidade da oligarquia), o que entendemos poder vir a ocorrer é justamente o oposto dos conflitos decorrentes de interesses e vontades mais aguerridos da base partidária em contra dos acordos centrais de uma elite dirigente, como foram os estudos de casos tratados por Panebianko (1982) e Tsebelis (1998), a exemplo dos partidos trabalhistas e social-democratas europeus.

O direito como base da legalidade interna da organização

Risco de desvio e de sedução tanto pela conspiração oficial como pelo canto de sereia do melhorismo, sempre há. Entendemos como maior a possibilidade de ocorrência de uma determinação coletiva não ser aplicada por quadros individuais, por motivações de recompensa material, coação de suas bases (necessidades diretas), recompensas individuais e falta de rigor analítico. Para superar este tipo de problema crônico, são necessários todos os fatores de constrangimento citados acima, somando a isso medidas disciplinares (coação organizativa, punitivas e de sanções morais) que variam de acordo com o tipo de defecção sofrida e dos limites orgânicos do partido em questão. Em conjunturas mais acirradas, algumas organizações do gênero chegam a ter organismos jurídicos internos, aplicando punições mínimas até extremas. Uma boa discussão de experiência jurídica partidária dentro de outro regime se encontra na maior e mais importante Organização Político-Militar de esquerda peronista, os Montoneros argentinos, 1968-1980 (para este caso, que reconheço como ultrapassando os limites da sanidade interna, ver Anguita e Caparrós, 1998, parte 24).

Mais uma vez não há que se confundir a conjuntura acirrada com a intolerância interna (típica das tradições caudilhescas e leninistas). É óbvia a correlação entre o nível de confronto com o regime, a carga de violência empregada e o nível punitivo esperado como fator de disciplina interna. O peso da gravitação e legitimidade social adquirida, pode também vir a dotar os movimentos sociais nesta órbita de uma instância de legalidade própria, atuando como mecanismo de coação coletiva de acordo com a institucionalidade acordada em coletivo, agindo com variados graus de participação e deliberação. Os limites das sanções não podem jamais ultrapassar os marcos do direito. O direito do indivíduo num embrião de sociedade igualitária não podem ser inferiores aos direitos já existentes nos códigos de leis burguesas. A igualdade prevê mais e mais direitos e garantias, exercidos numa legalidade societária e, portanto, sem os corpos especializados do aparato Jurídico-Policial.

Linhas conclusivas: a técnica subordinada ao conceito estratégico da etapa

Já os recursos técnicos necessários para o desenvolvimento próprio da instituição política, tais como o discurso e a linguagem política eleita para ser utilizada, são fruto direto de treinamento e experimentação orientada. Somados aos conceitos básicos, formulados como parâmetros analíticos e idéias-guia de fundo normativo, devem ser de uso comum a todos os quadros de um mesmo partido.

Retornando ao tema da análise política de qual a arena que se joga e se lança um determinado partido, esta só pode ser compreendida e analisada caso se conheça ao objetivo estratégico do partido e o grau de compreensão e fidelidade que seus militantes e quadros têm em relação a seu próprio objetivo finalista e a estratégia permanente definida. Entendemos assim que o treinamento inicia e se complementa na análise estratégica em sentido amplo, isto porque este modelo de organização de minoria tem como missão institucional uma incidência política dentro e através de um conflito de classe de longo prazo. Como dissemos no início, neste pressuposto teórico o objetivo subordina ao método e este se desenvolve de acordo com as necessidades de momento adequadas para acumulação de fatores positivos para o objetivo de longo prazo.

Bibliografia referenciada:

ANGUITA, Eduardo & CAPARRÓS, Martín. La Voluntad, tomos I, II e III. Buenos Aires, Norma Editorial, 1998.

BOBBIO, Norberto. Ensaio sobre ciência política na Itália. Brasília, Editora UnB, 2002.

BOURDIEU, Pierre. La Dinstinction. Paris, Minuit, 1979.

PANEBIANKO, Angelo. Modelos de Partido. Madrid, Alianza Editorial, 1982.

PRZEWORSKI, Adam. Capitalismo e Social-Democracia. São Paulo, Cia. das Letras, 1995.

TSEBELIS, George. Jogos Ocultos. São Paulo, EdUSP, 1998.

* Colaboração de Bruno Lima Rocha, editor do sítio Estratégia & Análise: a política, a economia e a ideologia na ponta da adaga, para o EcoDebate, 31/05/2010

Nota do EcoDebate: Leiam, ainda, os artigos anteriores desta série: Por uma democracia social com partidos políticos de outro tipo(1) e Por uma democracia social com partidos políticos de outro tipo(2).

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