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Economia bandida: Todos compramos de bandidos. Entrevista com Loretta Napoleoni

Loretta Napoleoni. Foto Revista Época
Loretta Napoleoni. Foto Revista Época

O dinheiro está correndo o mundo mais rápido que a lei e nós pagamos por isso, diz a economista

A romana Loretta Napoleoni se interessou por estudar o terrorismo quando soube que sua melhor amiga de infância havia sido presa como integrante da Brigada Vermelha, nos anos 80. O grupo golpeava a Itália com sequestros e atentados. Em 1990, Loretta visitou a amiga na prisão, entrevistou-a e iniciou sua tese de doutorado sobre a economia do submundo. Hoje, como autoridade no tema, ela é cética quanto à capacidade dos governos de enfrentar o crime organizado global. Loretta afirma que os bandidos sempre se beneficiaram de fases de transição, como o fim do comunismo. Nunca, porém, tiveram à disposição tantas fronteiras abertas, fáceis de cruzar, tantas atividades sob as quais se esconder e tantas áreas em que há mercado livre, mas não lei. Isso os torna parte da economia mundial.

Entrevista com Loretta Naspoleoni, realizada por Thiago Cid, na Revista Época, 07/05/2010 – 16:03.

ENTREVISTA – LORETTA NAPOLEONI

QUEM É
Economista nascida em Roma, mora em Londres com o marido e os dois filhos

O QUE FEZ
É doutora em economia pela Universidade de Roma, trabalhou no banco central da Hungria e especializou-se em financiamento do terrorismo

O QUE ESCREVEU
Economia bandida (lançado no Brasil em abril pela Bertrand), Terrorism and the economy, Insurgent Iraq e Terror incorporated (sem tradução no Brasil)

ÉPOCA – O que é a economia bandida?
Loretta Napoleoni –
Ela abrange as atividades ilegais, como a falsificação na China, e as zonas cinzentas das atividades não reguladas, como as movimentações escusas no mercado financeiro. Tudo isso cresce durante grandes transformações. Foi o que aconteceu na Revolução Industrial, depois da Quebra de 1929, da queda do Muro de Berlim e dos atentados de 11 de setembro de 2001.

ÉPOCA – Como os ataques de 11 de setembro afetaram a economia do crime?
Loretta –
A guerra no Afeganistão pode desestabilizar uma grande parte da Ásia Central. O tráfico de drogas promovido pelo Taleban está conquistando o continente, penetrando o Irã, o Paquistão, até a China. Temos desestabilização política, com a doutrinação do terror islâmico, e social, com a disseminação do consumo de heroína. O ataque também deslocou a lavagem de dinheiro do crime organizado global. Depois do 11 de setembro, os Estados Unidos tornaram mais difícil a movimentação de dólares ilegais, que poderiam financiar o terrorismo. A Lei Patriota fechou as portas americanas para o dinheiro sujo. As organizações criminosas mudaram as operações para a Europa, Londres em especial. Só que os europeus não têm uma legislação como a dos americanos. As fronteiras da Europa estão abertas e dão espaço para a colonização pelo crime organizado.

ÉPOCA – A Suíça e os paraísos fiscais também são um problema?
Loretta –
A Suíça tem um mercado regulado. Eu percebo uma espécie de campanha equivocada contra a Suíça, vinda de países mais lenientes com o dinheiro sujo, como o Reino Unido. Quando aparece dinheiro novo, muitos países querem retê-lo dentro de seus mercados. A legislação britânica acoberta pessoas que desejem trazer dinheiro de origem suspeita para seu sistema financeiro – basta ter residência no país. Não se sabe quanto dinheiro ilegal da Rússia e do crime nos Bálcãs foi injetado e lavado no mercado britânico.

ÉPOCA – O cidadão tem como saber se está contribuindo com a bandidagem?
Loretta –
Com produtos locais, a fiscalização é mais fácil. Mas não sabemos como a maioria dos produtos chega a nossas mãos. Por exemplo, mais de 70% do pescado consumido mundialmente vem de pesca predatória e ilegal, e a máfia russa explora a pesca no Mar do Norte.

ÉPOCA – Quais são os impactos da economia bandida sobre nós?
Loretta –
A crise financeira é o mais notável no momento. Há também a internacionalização das máfias, como a N’Drangueta, do sul da Itália. Ela funciona como uma empresa de logística para o crime organizado. Outras organizações terceirizam as atividades para ela. Ela aproxima organizações, como os narcotraficantes colombianos e os vendedores de armas sérvios, tem um braço que lava dinheiro para organizações de toda parte do mundo, oferece serviço completo. Junto com a russa, é a máfia mais poderosa do mundo.

ÉPOCA – A queda do Muro de Berlim também ajudou a economia bandida?
Loretta –
A queda destruiu o sistema comunista. A doutrina que lhe sucedeu se baseia no princípio de que o mercado funciona melhor que o governo para conduzir a economia. O problema é que a economia tomou o controle do antigo mundo comunista sem nenhuma estrutura capaz de regulá-la.

ÉPOCA – Isso quer dizer que o comunismo era algo positivo?
Loretta –
Não. O Muro caiu porque o comunismo era totalmente disfuncional. O problema é que um sistema político implodiu, sem ser substituído por outro. Passou a valer um sistema puramente econômico, sem governança nem mecanismos para regular as forças sombrias que surgiram.

ÉPOCA – A senhora afirma que o capitalismo, a globalização e até a democracia podem contribuir com a economia bandida. Pode explicar isso?
Loretta –
O modelo ocidental, de democracia e livre mercado, serviu de referência para redesenhar as economias das ex-colônias europeias e do antigo bloco soviético. Mas esses países se viram sem mecanismos para regular os capitais nem conter abusos políticos. Na Rússia, a antiga elite se apropriou das áreas estratégicas. Na China, a economia bandida se tornou um motor do país. Os trabalhadores são explorados, e o Estado incentiva a fabricação de produtos falsificados para consumo em escala mundial. Nos antigos países comunistas europeus, a implementação da democracia coincidiu com a explosão da escravidão feminina. O que aconteceu? As mulheres tinham emprego enquanto o comunismo vigorava. Depois da queda do regime, elas se viram desempregadas. Ao mesmo tempo, o crime organizado deixou de ser contido. Com um estoque de mulheres bonitas e desesperadas à mão, eles as exportaram para quase todos os prostíbulos da Europa. Sem regras, o capitalismo e a globalização criam melhores condições para o crime organizado explorar oportunidades comerciais, como o tráfico de armas, drogas e escravas sexuais.

“Você não sabe mais a origem do que consome. O produto pode ter sido
feito sem pagar impostos, por escravos ou com matéria-prima ilegal”

ÉPOCA – Mas o crime organizado sempre existiu.
Loretta –
Claro. Mas, em sistemas desenvolvidos, o aparato jurídico e político supervisiona a economia. O crime organizado, de colarinho-branco e o terrorismo se instalam apenas nas brechas. Agora, a economia bandida se tornou global: você não sabe a origem do que consome. O produto pode ter sido feito sem pagar impostos, por escravos e com matéria-prima ilegal.

ÉPOCA – É possível parar o processo?
Loretta –
Sim, mas seria preciso ter instrumentos e vontade política. Bem pouco é feito atualmente. É ridícula a ideia de que a Colômbia está sozinha no negócio da cocaína. Ela está nesse negócio porque o mundo inteiro compra cocaína. Se europeus compram, como o governo da Colômbia vai resolver sozinho o problema? Os Estados Unidos continuam a agir como se fossem o exemplo de sistema que funciona, o que não é verdade. A maior expressão da economia bandida nos últimos tempos é a recente crise financeira internacional.

ÉPOCA – O mercado financeiro tem um papel nessa história?
Loretta –
Ele é um dos grandes vencedores na economia bandida: não tem regulação e faz produtos não necessariamente ilegais, mas que não são éticos. Não se podem criar produtos vendidos como seguros, mas destinados a causar prejuízo a quem os compra. Foi isso que as instituições financeiras fizeram com os créditos imobiliários.

ÉPOCA – E qual é o efeito sobre as áreas mais pobres do mundo, como a África?
Loretta –
Os líderes que surgiram para governar as novas repúblicas africanas na segunda metade do século XX estavam enraizados no crime. Assim, desde 1960, a África recebeu cerca de meio trilhão de dólares em ajuda, mas a situação lá não melhorou. O problema não é falta de dinheiro ou ajuda, mas sim de boa governança. Mais dinheiro não vai resolver o problema da falência institucional na África. Os programas de ajuda internacional financiaram, indiretamente, guerras civis. Uma das melhores maneiras de o Ocidente ajudar a África seria abrir mercados para os produtos africanos. O protecionismo dos países ricos não é ilegal, mas é imoral.

ÉPOCA – Como a senhora avalia o Brasil?
Loretta –
É um país que se beneficiou da globalização por meios corretos, com instituições ativas e democracia verdadeira. O mercado financeiro é bastante regulado. Há corrupção e criminalidade, mas eu não diria que há uma força bandida atuando no desenvolvimento, ao contrário do que vemos na China, na Rússia, na Itália ou nos mercados financeiros dos países desenvolvidos.

EcoDebate, 24/05/2010

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