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Especialistas duvidam de canibalismo mas alertam para consumo de álcool nas aldeias. PF vai investigar venda de bebida alcoólica a indígenas de Envira

Na opinião do antropólogo, professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e especialista em assuntos indígenas, Lino João de Oliveira Neves, a morte de Océlio Alves Carvalho, no início deste mês em Envira (AM), pode representar apenas a ponta de um grande problema na região: o alcoolismo entre indígenas.

Apesar das suspeitas da polícia local de que indíos da etnia Kulina teriam praticado homicídio e depois ingerido partes do corpo da vítima, Neves considera improvável a prática de canibalismo entre esse povo.

“Acho improvável que tenha ocorrido canibalismo. O que tudo indica foi um homicídio seguido de consumo de carne humana. Diante disso, o que mais me preocupa entre os indígenas é o uso do álcool, que é causa de desequilíbrio social. Historicamente, o álcool tem sido usado na Amazônia como elemento de aliciamento e para causar dependência dos povos indígenas junto à sociedade nacional. Como droga, o álcool traz inúmeros prejuízos sociais entre os brancos e mais ainda entre os índios”, avaliou o professor universitário.

Neves estuda os povos indígenas da região do Juruá-Purus, onde vivem os Kulina, desde a década de 80. Com base nos estudos antropológicos, ele reafirmou a posição da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) quanto ao assunto, ao ressaltar que não há nenhum registro histórico que trate da prática de canibalismo naquela área, nem por índios nem por não-índios.

Em entrevista à Agência Brasil, Neves explicou que, em termos técnicos, o canibalismo significa uma prática realizada de forma ritual e cultural. No caso do assassinato do jovem Océlio Alves Carvalho, Neves considera que o ocorrido tenha sido uma fatalidade isolada e não uma seqüência de prática periódica. Por isso, avalia que o caso precisa ser melhor investigado pois o emprego do termo canibalismo coloca os indígenas numa posição de bárbaros e não civilizados.

“Infelizmente vemos no país uma série de investidas anti-indígenas e contra os interesses indígenas, que tem uma prática histórica de afirmar os índios como não civilizados, primitivos, etc. O canibalismo nos remete diretamente à lembrança de povos bárbaros e não civilizados. Além disso, é uma prática específica, realizada periodicamente e repassada culturalmente. Isso é diferente de um crime localizado onde possa ter havido consumo de carne humana.”, explicou.

A opinião de Neves é compartilhada pelo coordenador do núcleo de Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Victor Py-Daniel. De acordo com Daniel, o consumo exagerado de bebida alcoólica pelos indígenas pode contribuir diretamente para o aumento da criminalidade entre esses povos.

“No geral, os povos indígenas da Amazônia precisam de maior assistência e de programas para melhorar a qualidade de vida. A disponibilidade de álcool não se isola em Envira, mas ocorre em várias outras terras indígenas do Amazonas. A conscientização quanto ao consumo do álcool e o que ele pode causar, é que deve ser trabalhada entre os indígenas. O álcool tira qualquer pessoa do sério, não precisa ser indígena”, lembrou.

Em nota, a Funai, declarou que a administração executiva regional do órgão federal em Manaus segue acompanhando o caso do assassinato em Envira para que os fatos sejam devidamente esclarecidos. Segundo o documento da Funai, a vítima tinha convívio social com os indígenas e consumia bebidas alcoólicas dentro da aldeia.

PF vai investigar denúncias sobre venda de bebida alcoólica a indígenas de Envira

Nos próximos dias, a Polícia Federal (PF) no Amazonas vai instaurar inquérito para investigar as denúncias apresentadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai) a respeito da venda indiscriminada de bebida alcoólica a centenas indígenas que vivem no município de Envira. A cidade está localizada a cerca de a 1.200 quilômetros de Manaus, na divisa entre o Amazonas e o Acre.

Segundo a assessoria de comunicação da PF, a investigação atenderá a um pedido feito pela Funai, depois que um jovem, não-índio, de 21 anos foi brutalmente assassinado dentro da aldeia indígena Cacau, em Envira.

De acordo com um dos responsáveis pelo acompanhamento do caso na cidade, o sargento da Polícia Militar Osmildo Ferreira, o crime teria ocorrido entre os dias 1º e 2 deste mês. Em entrevista à Agência Brasil, Ferreira disse que Océlio Alves Carvalho foi esfaqueado e depois esquartejado. Parte dos órgãos do rapaz, como coração, fígado e cérebro não foram encontrados no corpo da vítima. Segundo o sargento, a polícia local trabalha com a hipótese de os criminosos terem praticado canibalismo já que um dos suspeitos teria confessado que o grupo comeu parte do corpo da vítima, depois de matá-lo.

“O que compete à PM está sendo investigado aqui. Recebemos uma denúncia direta que nos levou ao corpo da vítima e aos suspeitos. Coletamos alguns depoimentos e um dos suspeitos, que é o Antônio Valdecir, nos declarou que os índios comeram as vísceras do Océlio. A vítima tinha problemas mentais, mas não apresentava nenhum potencial ofensivo contra ninguém”, relatou o sargento.

Quatro homens e uma mulher – todos indígenas da etnia Kulina – são suspeitos de praticar o crime. No local do assassinato, às margens de um igarapé localizado dentro da aldeia Cacau, também foram encontradas garrafas de aguardente que indicam o consumo de bebida alcoólica antes do crime.

O coordenador da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Jecinaldo Sateré, afirmou que desconhece qualquer registro que trate da prática de canibalismo entre o povo Kulina. Para a organização, a divulgação equivocada desse tipo de ato pode ser mais uma tentativa de denegrir a imagem dos indígenas no país.

“O caso vai ser investigado. Entretanto, de imediato, o que também está nos deixando mais preocupados é o consumo de bebida alcoólica na região”, afirmou Sateré.

Para a direção da Coiab, as acusações contra os Kulina fortalecem o preconceito e discriminação racial. A organização indígena informou que também enviará à direção da Funai pedido para formação de uma equipe de antropólogo e assistente social para fazer um laudo técnico sobre o episódio. O objetivo, segundo a direção da entidade, é garantir segurança e proteção do povo Kulina. Em Envira, segundo a Coiab, vivem aproximadamente 800 indígenas da etnia.

Em entrevista à Agência Brasil, a presidente da Comissão Organizadora do Movimento Indígena Regional (que reúne índios do Acre, do Sul do Amazonas e Noroeste de Rondônia), Letícia Yawanawa, ressaltou que o fato de o assunto ter tomado repercussão nacional causou aos outros indígenas uma situação de desconforto. Segundo a líder indígena, que atualmente vive em Rio Branco (AC), o assunto chegou às escolas e provocou novas situações de preconceito entre as crianças. Ela criticou a abordagem dos veículos de comunicação sobre a questão.

“Estou chocada com as matérias veiculadas sobre o assunto. Hoje meus filhos foram à escola e voltaram chorando e entristecidos porque os colegas disseram a eles que não poderiam se aproximar porque eles [meus filhos] comiam ser humano”, lamentou.

Matéria de Amanda Mota, da Agência Brasil, publicada no EcoDebate, 21/02/2009.

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