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Enchentes em Santa Catarina: crônica de desastre anunciado

Luiz Alves (SC) - Casa destruída por deslizamento de terra causado pelos temporais que atingiram o município no Vale do Itajaí, em Santa Catarina Foto: Wilson Dias/ABr
Luiz Alves (SC) – Casa destruída por deslizamento de terra causado pelos temporais que atingiram o município no Vale do Itajaí, em Santa Catarina Foto: Wilson Dias/ABr

As chuvas torrenciais que caíram em tempo recorde sobre o Vale do Itajaí, em Santa Catarina, no Sul do país, vão engrossar os registros históricos. Elas fazem parte de uma estatística de enchentes – e de tragédias – que não é de hoje. As enchentes e conseqüentes tragédias são notícias ainda da primeira metade do século XIX, atravessam todo o século XX e entram forte no século XXI. Por exemplo, num período de 24 anos (1980-2004) só na cidade de Blumenau foram 32 inundações.

A natureza não se cansa de dar “avisos” desse fenômeno e de que ele se repetirá, e se de fato estiver associado ao aquecimento global, esses extremos – chuvas torrenciais ou secas prolongadas, fenômeno que está se dando simultaneamente no mesmo Estado – vão se tornar cada vez mais freqüentes.

Mas, os “avisos” dados pela natureza são ignorados por todos: população e autoridades políticas locais e federais. Como escreve Wagner Costa Ribeiro, professor no departamento de geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador do grupo de estudos de ciências ambientais do Instituto de Estudos Avançados “a banalização do risco é uma das características da sociedade contemporânea”, numa clara referência ao sociólogo Ulrich Beck.

Não se trata em nenhum momento de afirmar que seja uma “vingança” da natureza, o que seria transpor um sentimento humano para a natureza, além de uma injustiça para com ela. Trata-se antes de perceber as teias, as relações e os limites que a natureza tece e impõe e que foram desrespeitados pelos humanos. Convém atentar para o ecossistema que foi quebrado e que se encontra em grave desequilíbrio. Edgar Morin diria que é preciso ficar atento aos efeitos não desejados de uma determinada ação, isto é, “a ecologia da ação”. Perceber que as ações humanas se inscrevem numa complexa rede de relações e interpenetrações, que envolvem não apenas a comunidade humana, mas também o ambiente.

Um grupo de especialistas de Santa Catarina enumerou o que, ao seu ver, seriam as razões do desastre: a quantidade de chuva na região, o local da concentração da chuva, o tipo de rocha do Vale do Itajaí, a forma como vem sendo feita a ocupação desordenada do local e o desmatamento da vegetação local. Como se vê, o desastre mescla razões de ordem natural, mas também de ordem humana, o que está sendo ignorado. “Estamos cansados de ver a reconstrução repetindo os mesmos erros do passado. É preciso aprender com os erros. Está na hora de reinventarmos a região e erguer as cidades a partir das lições que tivemos”, diz Beate Frank, uma das especialistas.

Na hora de fazer uma ocupação humana, as formações morfológicas da região foram simplesmente ignoradas tanto pela população, como pelas autoridades públicas em suas diversas instâncias (local, estadual e federal). Assim, “áreas de risco e áreas de preservação são invadidas, loteadas, ocupadas em nome de interesses e conveniências privados e, não raro, em nome de direitos sociais”, como alerta José de Souza Martins. Ou mesmo é incentivada por vereadores

“A causa da tragédia catarinense não é a chuva, mas a irresponsabilidade de quem permitiu que milhares de pessoas vivessem em locais perigosos, nas encostas dos morros ou nas várzeas dos rios. A maioria dos mortos não foi vítima da água, mas, sim, da terra ou do tijolo que caiu sobre suas cabeças. Era obrigação do poder público mapear as áreas de risco, combater o desmatamento nos morros, fazer obras de prevenção onde isso era possível ou simplesmente impedir a ocupação onde não era”, escreve Rogério Gentile.

Portanto, medidas preventivas poderiam e deveriam ter sido tomadas. “Medidas preventivas não evitam as turbulências da natureza, mas podem disciplinar e organizar a relação do homem com ela, atenuando efeitos adversos”, adverte José de Souza Martins. O que remete à sucessão de inoperâncias, descasos, que vêm se repetindo ano após ano, governo após governo, século após século.

“Cabe ao Estado se antecipar e proteger a população de acontecimentos como os que ocorreram, mas cabe, antes de mais nada, impedir a ocupação de áreas de risco”, sentencia Wagner Costa Ribeiro.

Mas, a responsabilidade segue sendo empurrada adiante, como se constata na fala do Major Márcio Luiz Alves, Coordenador da Defesa Civil de Santa Catarina: “Qualquer um sabe que não pode ocupar as áreas, que tem de tirar a população. Mas quero ver quem é que vai fazer”. O grande perigo é que, depois do momento de comoção, as coisas voltem à sua rotina sem que os grandes desafios sejam enfrentados e, mais uma vez, os “sinais” não sejam percebidos.

José de Souza Martins chama a atenção para a necessidade de uma revisão do direito fundiário para um uso mais “racional” do solo urbano: “Os desastres climáticos e ambientais, cada vez mais freqüentes, agravados pela superocupação irracional do solo nas cidades, pedem uma revisão do direito fundiário urbano e uma igualmente profunda mudança na política urbana, com interdição definitiva das áreas de risco, o que implica a revisão e regulamentação do direito de propriedade”.

O direito fundiário, por sua vez, deve estar associado a uma política de habitação que dê conta dos desafios naturais e sociais da região. A sua falta, contribuiu para o desastre no Vale do Itajaí.

Como se vê, o desastre provocado pelas enchentes em Santa Catarina é multifacetado. Mas, o descaso dos poderes públicos tem peso significativo na amplitude de suas conseqüências. Isso fica evidente também quando se observa que o governo federal tem negligenciado investimentos em obras de prevenção a desastres. Este ano, de toda a verba destinada a obras de prevenção de secas, enchentes, incêndios e outras emergências, o governo só gastou 8% do previsto.

(http://www.EcoDebate.com.br, 05/12/2008) publicado pelo IHU On-line, 03/12/2008, Conjuntura da Semana. Uma leitura das ‘Notícias do Dia’ do IHU de 26 de novembro a 02 de dezembro de 2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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