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Artigo

As sem-vergonhices do capitalismo, artigo de José Vidal Beneyto

O sistema econômico dominante se esqueceu de suas ascéticas e laboriosas origens calvinistas e acabou glorificando o enriquecimento rápido como referência de sucesso. Isso abriu as portas para a fraude e a rapina. Segue o artigo de José Vidal Beneyto, diretor do Colégio Miguel Servet de Paris e presidente da Fundação Amela, publicado no jornal espanhol El País, 22-11-2008. A tradução é do Cepat.

O capitalismo é, simultaneamente, uma doutrina econômica e um sistema político-econômico, de condição e uso em ocasiões positivas mesmo que com freqüência perversas, que depois da incorporação das experiências antagônicas ou alternativas – Rússia, China, países emergentes, etc. – à filosofia e prática do mercado e do lucro únicos, se converteu num modelo único na realidade do mundo, quase também na esfera do pensamento. Essa presença gloriosamente onipotente e unânime se viu sacudida pela corrupção em seu funcionamento, resultado dos numerosos atrevimentos que sob a sua invocação foram perpetrados e que acabaram convertendo o roubo em regra. Tudo isso, ademais, vindo de onde vinha. Pois, frente à consideração de que a prática religiosa é inimiga da atividade econômica, foi ela que, com o surgimento do protestantismo e, mais ainda com o calvinismo, acabou sendo um suporte decisivo para o surgimento e a difusão dos valores do capitalismo.

Dois pensadores são os arautos desta posição. Em primeiro lugar, Max Weber, que parte da constatação de que os países protestantes são, no século XIX, os que encabeçam o desenvolvimento econômico devido à sua identificação com os valores do capitalismo. Em sua obra matriz A ética protestante e o espírito do capitalismo, a essência do capitalismo está na vontade de trabalho, simultânea ao fervor pela poupança. Ambos comportamentos que não podem ser apenas individuais, pois sua efetividade exige que o sejam de todo um povo, e para isso fruto de convicções que são sobretudo de natureza religiosa. Neste caso, essas convicções comuns procedem do calvinismo que descarta o consumo, condena o gozo e o gasto e exalta o trabalho considerado como exercício religioso, secularizando com isso o ascetismo e elevando o trabalho profissional à condição de prática religiosa por excelência. Que se torna, assim, obra de Deus. Essa santificação do trabalho comum que o calvinismo opera e que tira os crentes das sacristias e os lança na conquista do mundo profissional, segue ressoando em muitas organizações religiosas contemporâneas, tanto moderadas – Opus Dei, Kikos, etc. – como progressistas – Focolarinos, Comunidade de Santo Egídio, etc.

Richard H. Tawney, em A religião e o surgimento do capitalismo [São Paulo: Perspectiva, 1971] nos oferece uma reflexão muito mais pormenorizada e colada à história, que, em oposição aos espiritualismos orientais e apoiado na Bíblia, sustenta que a vida material em seu conjunto vem de Deus e, portanto, os bens, inclusive o dinheiro, são sinal de sua bondade e em certo sentido de sua predileção. Mas, sinal que precisa estar presidido pela graça e que só pode operar em relação com o outro, cuja expressão essencial é o pobre. Além disso, Calvino/Tawney, diante da proibição bíblica, recuperam o empréstimo comercial ou industrial, que sem usura é permitido e torna possível com isso o mundo bancário e das finanças.

Era difícil imaginar a partir de inícios tão razoáveis e esperançadores, que a generalização da fraude e da rapina nos âmbitos econômico e financeiro levasse a um triunfo tão absoluto da economia criminal. De maneira decisiva contribuiu para esse resultado a mitificação unânime do enriquecimento como referência única do sucesso, a celebração do que Oskar Lafontaine chamou de Ditadura do Monetariado, e, sobretudo, a hegemonia sem alternativas do capitalismo de cassino. Tudo o que dotou de respeitabilidade as traições capitalistas mais desleais, as práticas empresariais mais abjetas. Não exagero; senão, vejam os homens e os números.

Lehman Brothers, uma das jóias da finança norte-americana, entra em falência e todo o mundo vai à rua sem indenização alguma, salvo Richard Fuld, seu presidente que embolsa legalmente 480 milhões de dólares. A AIG, a paradigmática companhia de seguros, também quebraria, mas o caso é simbolicamente muito grave e Washington interveio injetando 85 bilhões de dólares para tapar o buraco. O que permite a Joseph Cassano, diretor da seção de Produtos Privados, perceber uma bonificação de 3,4 milhões de dólares, e Martin Sullivan, presidente-executivo, outra de 5,4 milhões de dólares. Os diretores da companhia reabilitada com o dinheiro dos contribuintes norte-americanos, festejam a redenção num suntuoso hotel californiano, com quartos a mil dólares o pernoite, 10 mil dólares em bebidas, 23 mil em cuidados pessoais e um interminável etc. Bob Diamond, número dois do Barclays Bank, declarou ter percebido 50 milhões de euros em prêmios, entre 2006 e 2007; Marcel Ospel, presidente do conselho de administração do banco suíço UBS, 15,7 milhões de euros; Josef Ackermann, presidente do Deutsche Bank cobrou 10 milhões de euros ao ano; Fred Goodwin, diretor-geral do Royal Bank of Scotland, e Andy Hornby, do HBOS, ambos em situação de falência, cobraram remunerações anuais de 5,3 milhões e três milhões de euros, respectivamente.

Na França, os donos dos seis grandes grupos financeiros BNP Paribas, Société Générale, Crédit Agricole, Crédit Mutuel, Caisses d’Epargne e Banques Populaires se precipitaram sobre os 10 bilhões de euros que o Estado francês colocou à sua disposição para ajudar as suas organizações a sairem da crise e não se soube nada sobre o seu destino. O valor total das bonificações e outros prêmios pessoais percebidos pelos donos das grandes empresas em falência ou à beira, se aproxima dos 80 bilhões, todos interpretando o apólogo de Woody Allen take the money and run [no Brasil, o filme tem o nome de Um assaltante bem trapalhão]. E do outro lado da grade, mais de um milhão de trabalhadores ficaram sem trabalho, e somente o Citigroup contribuiu com cerca de 70.000 pessoas.

Os estragos e a desmoralização causados por estas pilhagens vindas de cima, vieram acompanhados pela incitação à fraude, resultante da extraordinária expansão do crédito que, ao coincidir com o forte barateamento do custo do dinheiro, tinha que produzir a deriva monetária e os efeitos perversos que a acompanharam. Mas, além disso, essa orgia financeira dispôs para a sua celebração de um avultado arsenal de instrumentos, produtos de uma brilhante engenharia financeira que os havia elaborado e posto em ação durante a última década. Apelidados de tóxicos, por sua capacidade disruptiva e malignizante, sua circulação e uso aumentaram dia após dia. Entre eles estão os Fundos Especulativos ou hedge funds, mais familiarmente fundos-lixo, talvez os mais repudiados; ainda que seus efeitos perturbadores sejam menores que os dos fundos private equity, instrumento privilegiado pelos especuladores para comprar sociedades e pagá-las sem dinheiro próprio, revendendo-as em seguida, e tudo reinicia. Mesmo que sem esquecer que todos os outros fundos, incluindo os venture-funds e inclusive os fundos soberanos, apesar de sua natureza pública, não se livraram desse destino especulador. E assim se originou este descalabro maiúsculo que alguns vinham anunciando/denunciando já algum tempo (vejam minhas seis colunas neste jornal: El capitalismo contra el planeta, de fevereiro a março de 2007, as duas sobre os Fondos-Buitre, de 7 e 13 de julho do mesmo ano, ou ultimamente Capitalismo sin limites y Noticias del caos). Descalabro que dificilmente poderemos superar porque as análises, as soluções e os atores continuam sendo os mesmos. E para aqueles que duvidarem, aí está para prová-lo a Declaração da Reunião de Washington, do G-20. O comunicado da ATTAC Espanha, feito na terça-feira passada, faz dela uma análise brilhante quanto esclarecedora. Certamente, como é possível que nenhum meio de comunicação espanhol nunca ecoe as análises de uma das organizações mais consistentemente críticas e progressistas de nosso país?

A mencionada Declaração é um estrito “mais do mesmo”. Convocada por e realizada nos Estados Unidos; reservada aos grandes países que excluem mais de um terço da população mundial; insistindo nos salvíficos princípios liberais da força salvadora da liberdade de comércio e dos mercados competitivos; reclamando um reforço das instituições internacionais – OMC, FMI, Banco Mundial – responsáveis pela derrocada, que deveriam ser substituídas o quanto antes; pregando uma política monetária de objetivo único, controlar a inflação, esquecendo as necessidades das classes mais simples e das pequenas e médias empresas; sem uma única proposta efetiva para acabar com os paraísos fiscais; em definitiva, sepultando ainda mais os Objetivos do Milênio. Somente uma mobilização popular e intelectual, insistida e de grande calado, poderá ajudar-nos a acabar com tanta balela e tantas sem-vergonhices.

(http://www.EcoDebate.com.br, 25/11/2008) publicado pelo IHU On-line, 24/11/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

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