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Crise financeira e crise do capitalismo, artigo de Pedro A. Ribeiro de Oliveira


Imagem: Stockxpert

Estamos hoje imersos na crise provocada pela “bolha” financeira dos EUA. Ela repercute no mundo todo porque o dólar estadunidense é a moeda padrão para a economia e o comércio mundial. Ninguém duvida da sua gravidade; o que se discute hoje é o caminho a tomar para se sair dela. Isso implica tanto um diagnóstico correto quanto uma opção ideológica – as idéias-força que impulsionam a ação coletiva. As perguntas-chave são: (i) esta é mais uma crise característica do sistema capitalista, ou se estamos diante do esgotamento de sua capacidade de produzir e distribuir riqueza? e (ii) trata-se de corrigir os excessos do capitalismo, ou de lançar as bases de um sistema alternativo?

É evidente que não há análise de conjuntura neutra. O economista Delfim Netto, por exemplo, embora reconheça a gravidade da atual crise, vê nela – como nas outras 46 crises registradas desde 1790 – o mérito de forçar os agentes do sistema capitalista de mercado a corrigirem seus erros e exageros, sob pena de serem substituídos por agentes mais criativos. Segundo seu pensamento, foi a organização social e econômica do mercado que “nos últimos 150 anos trouxe os homens da Idade da Pedra à Idade da Informática. Eles não a inventaram. Ela é produto de uma espécie de seleção natural produzida pelo próprio desenrolar histórico. Foi sendo descoberta pelo homem desde que saiu da África, há 200 mil anos, e foi pensada criticamente pelos gregos há pelo menos 2,5 mil anos”. Sendo conatural ao ser humano, o sistema de mercado não admite alternativa viável. “Todas as formas alternativas gestadas até agora por cérebros peregrinos, e executadas por fanáticos psicopatas aos quais a sociedade descontente entregou em desespero e descuidadamente o poder, terminaram em tragédia. E as que estão por aí infestando a infeliz América Latina, onde a psicopatia é acentuada pela ignorância, não serão exceção à regra: são apenas pontos fora da curva do processo civilizatório” (1).

Nossa perspectiva sociológica, ao contrário, vê no sistema capitalista de mercado um produto da história humana. Esboçado nas cidades do norte da Itália desde o século XIII, estruturou-se no “longo” século XVI, provocou a “revolução industrial” no século XVIII e consolidou-se por meio das revoluções política e cultural do século XIX. No século XX atingiu a maturidade, ao mundializar-se pelo processo de globalização. A pergunta, agora, é se ele sobreviverá ao século XXI. Ao longo do tempo, não só assumiu diferentes formas – mercantilista, liberal, imperialista-colonial, de bem-estar social e neoliberal – como transferiu seus pólos (das cidades italianas para Amsterdã, dali para Londres e depois Nova York). Todas essas mudanças foram acompanhadas de graves crises, em geral resolvidas por meio de guerras.

O que torna a atual crise financeira especialmente preocupante é menos o montante das perdas financeiras e a inevitável recessão, agora em escala mundial, do que sua conjunção com duas outras crises: de energia e de aquecimento global. Isso não significa que o abalo financeiro não seja grave. Ao contrário, “o descolamento dos ganhos financeiros em relação ao sistema produtivo pode ser identificada na comparação do PIB com a quantidade de recursos aplicados em derivativos” (2). Enquanto o PIB mundial alcançou quase US$ 55 trilhões, em 2007, o volume dos direitos negociados no sistema financeiro mundial chegou a quase US$ 600 trilhões. O mesmo indicador do valor (a moeda expressa em US$) aplica-se a duas realidades muito diferentes: o volume de bens e serviços efetivamente produzidos, e a compra e venda de direitos que são repassados sem que nenhum bem tenha sido produzido (por isso, chamados de derivativos).

Para quem negocia, o importante é auferir o lucro monetário, pouco importando se o objeto da negociação é real ou virtual. Pode-se ganhar dinheiro pelo trabalho ou no jogo de azar, mas há uma diferença: o cassino não produz riqueza. Dado que até pouco antes da crise quem aplicasse seu dinheiro em derivativos obtinha mais lucro do que na produção de riqueza, muitas empresas aplicaram suas reservas no mercado financeiro. Auferiram assim lucros fabulosos – principalmente os bancos, que são os intermediários dessas aplicações. No momento, porém, em que esses títulos perdem sua capacidade de se converter em dinheiro, sobrevém a crise financeira. São trilhões de dólares que correm o risco de virarem pó. Isso pode representar a falência de muitas empresas e, consequentemente, desemprego em massa. A ameaça de falência da General Motors é emblemática, por ser uma empresa-símbolo do capitalismo moderno – “o que é bom para a GM é bom para os EUA, e vice-versa”.

Foi para evitar essa catástrofe financeira que os Bancos Centrais dos países ricos intervieram, aportando dinheiro para se liquidarem os negócios e assim segurarem um mínimo de credibilidade sem a qual desmorona toda a economia monetária (pois o dinheiro só tem valor enquanto se acredita em seu poder de comprar bens ou serviços). Neste sentido, é uma medida de emergência, que alivia tensões e permite que se busque outra saída que não seja a guerra. Mas essa medida precisa ser criteriosa para que os jogadores irresponsáveis não sejam reembolsados às custas de quem trabalha, e deve ser acompanhada de uma nova regulação do sistema de mercado. Uma possibilidade é retomar a proposta feita em 1972 pelo prêmio Nobel Tobim, de impor uma taxa de 0,1% a todas as transações financeiras, de modo a reduzir drasticamente os ganhos especulativos (grandes somas aplicadas em curto ou curtíssimo prazos) sem por isso onerar substancialmente os investimentos produtivos. Ou seja, há meios para que seja superada a crise financeira, mas eles exigem sacrifícios. O que se discute, portanto, é sobre quem recairão esses sacrifícios…

O que não tem sido trazido à baila, é o que a teoria econômica liberal classifica como “externalidades”: os efeitos não-econômicos dos processos econômicos regidos pela lógica do lucro capitalista. Por não incluir em seus cálculos de custo externalidades como produção de lixo, desperdício de matérias-primas e energia, destruição da biodiversidade, degradação dos solos e das águas, doenças, exclusão social e revolta dos oprimidos, o capitalismo conseguiu produzir uma enorme quantidade de riqueza. O problema, agora, é que, a se manter a mesma lógica econômica, as externalidades se voltarão contra o sistema e impedirão seu funcionamento. Os graves problemas ambientais, energéticos e humanos (como a violência e a miséria) estão hoje a apontar que o sistema capitalista de mercado está prestes a esgotar sua capacidade de produzir riqueza.

Falando para a ONU, no “Painel sobre a crise financeira”, F. Houtart afirma que é preciso mudar a própria lógica econômica e “privilegiar o valor de uso sobre o valor de troca, o que significa outra definição da economia: não mais a produção de um valor agregado, fonte de acumulação privada, mas a atividade que assegura as bases da vida material, cultural e espiritual dos seres humanos através do mundo”. A partir desse momento, o mercado servirá de regulador entre a oferta e a procura, em vez gerar lucro para quem tem dinheiro. Serão combatidos o desperdício de matérias primas e energia, e a destruição da biodiversidade e da atmosfera, e serão contabilizadas e consideradas as externalidades ecológicas e sociais. Isto porque, continua o velho mestre, “privilegiar o valor de uso provoca a não mercantilização dos elementos indispensáveis à vida – sementes, água, saúde, educação -; o restabelecimento dos serviços públicos; a abolição dos paraísos fiscais e do sigilo bancário; a anulação das dívidas odiosas dos Estados do Sul; o estabelecimento de alianças regionais sobre a base de complementaridade e de solidariedade; a criação de moedas regionais; bem como outras medidas em favor da multipolaridade. A crise financeira constitui a ocasião única de pôr estas medidas em aplicação” (3).

Houtart termina sua fala indicando quem será portador deste projeto: “o novo ator histórico, portador dos projetos alternativos, é hoje plural. São os trabalhadores, os camponeses sem terra, os povos indígenas, as mulheres primeiras vítimas das privatizações, os pobres das cidades, os militantes ecologistas, os migrantes, os intelectuais ligados aos movimentos sociais. A sua consciência de ator coletivo começa a emergir. A convergência das suas organizações está apenas no seu começo e ainda carece frequentemente de ligações políticas. Certos Estados, notadamente na América Latina, já têm criado condições para as alternativas se realizarem. A duração e a intensidade das lutas destes atores sociais dependerá da rigidez do sistema existente e da intransigência dos seus protagonistas”.

Neste momento, ganha enorme importância o próximo Fórum Social Mundial, a realizar-se em Belém do Pará, de 27 a 31 de janeiro do próximo ano. Por ser um espaço privilegiado de reflexão, debates e troca de experiências sobre os caminhos para “um outro mundo possível”, o próximo FSM poderá marcar uma virada histórica. Ele tem anunciado que “outro mundo é possível”, mas só conseguiu demonstrar essa possibilidade em casos espacialmente delimitados. Seu desafio, agora, é elaborar projetos de âmbito realmente global, coerentes com a nova consciência planetária que se difunde pelo mundo.

Se esta análise está correta, as medidas tomadas pelo governo Lula estão na direção contrária à busca de “outro mundo possível”. O Banco Central não só manteve a elevada taxa de juros – que retira dinheiro da economia real para alimentar o jogo financeiro dos rentistas improdutivos – como o Brasil tomou junto ao FMI um empréstimo de US$30 bilhões para assegurar que os ganhos financeiros aqui realizados retornem ao exterior. O “pacote” de medidas do governo para dar liquidez à economia, é um paliativo incapaz de estancar a especulação financeira e a fuga de divisas. A política macroeconômica de H. Meirelles segue igual ao que era antes da crise: ignora o fracasso da autorregulação do mercado e continua apostando no futuro do sistema de mercado regido pela lógica do lucro e pelo produtivismo. A obsessão por realizar superávits primários (eufemismo que serve para camuflar o déficit fiscal provocado pelo serviço da dívida) continuará sangrando o Tesouro Nacional, que repassa a conta para quem de fato produz e paga impostos.

Além disso, o Presidente continua dando força ao agronegócio e à mineração, sem atentar para os danos que causam ao meio-ambiente. Tudo se passa como se o aumento da produção para a exportação fosse uma solução e não um paliativo que adia a crise econômica mas antecipa a crise ecológica – que é muito mais grave e que prejudicará mais os pobres do que os ricos. Também sua política industrial vai no sentido de favorecer a indústria automobilística – que continua produzindo carros de passeio como se eles tivessem aonde trafegar nas grandes cidades. Fazendo de conta que a crise é apenas financeira e que o capitalismo encontrará uma solução tecnológica para os problemas de energia e de meio-ambiente, Lula entregará a seu sucessor ou sucessora um país em situação tão precária quanto a que recebeu – com o agravante de um contexto mundial em recessão e não em crescimento, como teve em seus dois mandatos até dois meses atrás.

Juiz de Fora, 13 de novembro de 2008.

Notas:

(1) Artigo publicado em Carta Capital de 15/10/2008, p. 45.
(2) Cfr. artigo de Marcio Pochmann, publicado no jornal Valor, 30-10-2008 e reproduzido por IHU-online.
(3) Palestra feita em N. York, em 30/ outubro e reproduzida por ADITAL em 4/novembro.

Pedro A. Ribeiro de Oliveira – Professor da PUC-Minas e membro de ISER-Assessoria

Artigo originalmente publicado pela Agência de Informação Frei Tito para a América Latina – Adital, parceira estratégica do EcoDebate na socialização da informação.

[EcoDebate, 17/11/2008]

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One thought on “Crise financeira e crise do capitalismo, artigo de Pedro A. Ribeiro de Oliveira

  • Capital

    O capitalismo serve-se do egoísmo
    Para servir egos e vontades,
    Todos se esforçam por dar produção.
    São escravos de um sonho
    Um sonho lindo!

    Tudo é possível na verdade
    Mas atendendo às leis da probabilidade,
    A maioria vai viver o pesadelo da realidade.

    O capitalismo evoluiu, é certo
    Não é fruto das ideias de um punhado de homens
    É como um ser vivo que reage segundo as leis da vida

    Mas quando se chama liberalismo puro e duro,
    Com ausência de mecanismos de controlo,
    Que impeçam grandes oscilações dos equilíbrios
    Acontecem grandes desgraças
    Ou crises!

    Mas também não se pode esperar muito,
    De algo que se baseia no egoísmo
    E esquece o altruísmo!

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