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O Lado Escuro do Crescimento Agrícola Brasileiro: Violência, Motim e Pilhagem Ambiental na Amazônia, artigo de Isabella Kenfield

Enquanto a economia brasileira cresce devido ao aumento dos preços das commodities em todo o mundo, ao mesmo tempo cresce os conflitos pela terra na Amazônia – onde a fronteira agrícola está expandindo rapidamente. As vezes, a região parece ingovernável para a administração do Presidente Luís Inácio “Lula” da Silva e o Partido dos Trabalhadores (PT), que enfrentam forte pressão para atender os interesses do agronegócio regional, nacional e internacional.

Desde que ganhou a presidência em 2003, o governo Lula tem estado envolvido num conflito entre seis grandes arrozeiros e 19.000 indígenas numa área de 1,9 milhões de hectares de cerrado e floresta banhada pelo rio Amazonas, chamada Raposa Serra do Sol, em Roraima, o estado mais setentrional, na fronteira com Venezuela e Guiana. Atualmente, o conflito pode provocar uma guerra civil na região.

Raposa Serra do Sol foi demarcada como reserva indígena contígua pela administração de Fernando Henrique Cardoso em 1998 sendo a lei sancionada por Lula em 2005. Desde então, os arrozeiros, que chegaram à área no início dos anos 90, têm sido interpelados por lei a saírem de suas fazendas, e lhes oferecido compensação financeira. Porém, estes têm recusado. Em vez disso, dado a pressão exercida pelos arrozeiros e outros interesses do agronegócio, atualmente o Superior Tribunal Federal (STF) está analisando a possibilidade de julgar a ação em favor dos arrozeiros de modo que lhes permita permanecer na reserva em “ilhas”, em detrimento a lei vigente que definiu pela sua demarcação contígua.

O caso se faz histórico, que supostamente será decidido até o final deste ano, e preparará o terreno para o futuro dos direitos indígenas à terra no Brasil. O caso tem atraído à atenção de políticos de alto-nível, comandantes militares, organizações não-governamentais internacionais e também do Papa, opondo os interesses de expansão econômica frente aqueles de proteção dos direitos humanos e o meio ambiente.

Comandando as ações para mudar a demarcação, está Paulo César Quartiero, que é o maior arrozeiro de Roraima, ex-prefeito da cidade de Pacaraima (onde está uma parte da reserva Raposa Serra do Sol), e presidente da Associação dos Rizicultores de Roraima (ARR), um grupo poderoso de arrozeiros integrados no mercado agrícola nacional. Quartiero é um “ruralista”: um membro de uma grande rede de influentes políticos municipais, estaduais e federais, que representam os interesses dos fazendeiros e o agronegócio nacional e internacional.

Em março, quando um grupo de indígenas começou a agir exigindo a demarcação integral da reserva Raposa Serra do Sol, o governo federal determinou à polícia federal que removesse Quartiero e os demais arrozeiros da área, os quais bloquearam a operação explodindo pontes na reserva. Em maio, quando alguns índios ocuparam pacificamente as terras controladas por Quartiero, este organizou uma milícia que atacou-lhes com armas de fogo e explosivos, ficando dez indígenas feridos. Depois, a polícia federal encontrou 149 bombas na fazenda de Quartiero, deduzindo que foram produzidas com a colaboração de funcionários do Exército. Quartiero foi preso, sendo libertado após pagar fiança no valor de R$500,00.

Enquanto estava preso, Quartiero foi multado em quase US$16 milhões pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recuros Naturais (IBAMA) por destruição de terras sob proteção permanente, impedimento da regeneração natural do cerrado amazônico, uso de terras públicas federal sem autorização e atividades agrícolas em violação de sua licença. Ele recorreu às acusações. Em agosto, Quartiero foi incluído numa “Lista Suja” criado pelo IBAMA, onde constou os nomes de 38 candidatos à prefeito que comprodamente praticaram alguma atividade ilegal na Amazônia.

No dia 5 de outubro, durante as eleições municipais, Quartiero votou numa escola missionária chamada Surumu, destinada às crianças indígenas na reserva Raposa Serra do Sol. No dia 2 de setembro, a procuradora federal denunciou Quartiero por ter organizado um grupo de homens armados que, em 2004, invadiu Surumu e destruiu o prédio escolar, ameaçou educandos e funcionários da escola, e seqüestrou três padres que lá trabalhavam – quem, Quartiero manteve preso ilegalmente por dois dias.

Embora Quartiero tenha perdido em sua tentativa de se reeleger, a questão permanece: o Superior Tribunal deteminará que ele sai da reserva Raposa Serra do Sol? Se sim, Quartiero aceitará a decisão? Ainda mais, Quartiero será condenado e preso por seus crimes alegados? A região amazônica é notoriamente conhecida pela impunidade e violência.

“Quartiero continua livre e agredindo os indígenas. Semana passada ele destruiu placas da demarcação da terra indígena, destruiu carteiras e mesas escolares,” relatou Marcy Picanço do Conselho Missionário Indígena (CIMI), uma organização nacional Católica que trabalha com as populações indígenas na Raposa Serra do Sol, conforme e-mail enviado ao Centro dos Estudos das Américas (CENSA) no final de setembro.

Alguns membros do Exército Brasileiro têm ameaçado rebelar-se contra o governo em apoio à Quartiero e outros arrozeiros. Em agosto, o Associated Press relatou que durante um encontro no Clube Militar do Rio de Janeiro, o Gen. Augusto Heleno Pereira, comandante da região Amazônica, atacou a política indígena do governo federal como “lamentável” e “caótica”, e sugeriu que se fosse mandado remover os arrozeiros da Raposa Serra do Sol, não o faria.

“O Exército Brasileiro não serve o governo, mas o Estado Brasileiro”, disse o Gen. Pereira. Enquanto o Gen. Pereira foi repreendido pelo Ministério de Defesa, Quartiero chamou-o de patriota, e a Assembléia Estadual de Roraima concedeu-lhe por unanimidade o título de Cidadão Emérito.

Vários políticos e residente não indígenas em Roraima apóiam a forte determinação de Quartiero e outros arrozeiros em permanecerem na Raposa Serra do Sol. “Uma grande parte da área de nosso estado já é terra indígena, e se a terra na Raposa Serra do Sol for demarcada, 47% de nosso estado será demarcado para os índios, e isso põe em perigo nosso desenvolvimento econômico”, disse José de Anchieta Junior, governador de Roraima, à Al Jazeera.

Os arrozeiros são integrados no setor agrícola brasileiro, que é altamente capitalizado, usuário de mecanização cara e agroquímicos. Segundo a ARR, desde que chegaram à Raposa Serra do Sol, os arrozeiros têm expandido a produção em 20% ao ano. Segundo o CIMI, a produção dos arrozeiros é colhida e transportada por caminhão mais de 1000 quilômetros até Manaus. A partir de Manaus, o arroz é vendido e distribuído aos mercados nacional (e, possivelmente, internacional). O Ministério de Agricultura afirma que 70% do arroz produzido em Roraima é em Raposa Serra do Sol.

Porém, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a contribuição de Roraima à produção agrícola total do país é mínima: o estado produz só 1,3% do arroz no Brasil, e sua contribuição à produção de cereais, leguminosas e oleaginosas é de apenas 1% (neste caso, a região norte, a qual representa 45% do território nacional brasileiro, e que é quase totalmente floresta Amazônica, produz só 2,6%)

Existem quase 750 mil pessoas indígenas no Brasil, das quais 70% vivem na Amazônia. As famílias das cinco tribos da Raposa Serra do Sol são camponesas, cultivando feijão, milho e mandioca para auto-sustento e os mercados locais, caçando na floresta e pescando nos rios.

Segundo Picanço, uma reserva contígua é importante porque terra e território asseguram os elementos essenciais para a sobrevivência dos povos indígenas na Raposa Serra do Sol, e a “reprodução física e cultural das gerações futuras. Toda demarcação de terras indígenas no Brasil é de forma contígua…Isso é determinação da Constituição de 1988 e não tem como demarcar em “ilhas”. Isso significa separar um povo de si próprio, significa condená-lo à morte.”

Outros, também contrários à tentativa de mudar a demarcação da Raposa Serra do Sol dizem que estabeleceria um precedente perigoso para os outros territórios indígenas ainda em processo de demarcação. “Se o Supremo Tribunal alterar a demarcação, eles irão pressionar para mudar outras demarcações, está em jogo a ampliação de áreas para plantio e as reservas minerais,” disse o Deputado Adão Pretto (PT-RS), em entrevista recente para a CENSA.

“Os Ruralistas, desde o inicio de 2007 vem pressionando para alterar a forma da publicação das portaria demarcatória…Existem diversos decretos legislativos – alguns já aprovados na comissão de agricultura – para revogar portarias que criam novas reservas,” disse Pretto.

Entre aqueles que apóiam o esforço pela alteração da legislação para a demarcação da Raposa Serra do Sol é o Deputado Abelardo Lupion (DEM-PR), quem—como Quartiero—é membro do partido de direita e reacionário Democratas. Atualmente, Lupion está sob investigação federal por suposta corrupção com vínculos à empresa transnacional Monsanto Corp., dos Estados Unidos. Em março, Lupion apresentou uma proposta que suspendeu a demarcação de uma reserva indígena no estado de Santa Catarina.

Várias outras demarcações de reservas indígenas também têm sido suspensas. No dia 16 de setembro, depois um encontro com o governador do estado, onde compareceu centenas de grandes sojeiros, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) suspendeu a demarcação de uma reserva no Mato Grosso do Sul. No dia 24 de setembro, o STF suspendeu a demarcação de uma reserva indígena na Bahia.

Em 2004, o jornal New York Times relatou que muitos indígenas da Raposa Serra do Sol sentiam-se traídos por Lula: “Eles lembram que o Senhor da Silva visitou aqui mais de uma década atrás, expressou apoio à luta dos indígenas, e prometeu que se ele chegasse à presidência, ele atenderia sua demanda.”

Lula não ratificou a legislação para a demarcação da Raposa Serra do Sol até dois depois de ter sido eleito. O New York Times sugeriu que a traição de Lula foi resultado do jogo político do PT para consolidar seu poder: Logo depois de Lula ser eleito, Flamarion Portela, então governador de Roraima, trocou de partido político juntando-se ao PT. Em troca, é possível que o PT tinha feito um acordo com os arrozeiros.

O fato é que a ação atual no STF sobre Raposa Serra do Sol, foi iniciada pelo Senador de Roraima Augusto Botelho – um membro do PT. Botelho propôs a ação quando era do Partido Democrático dos Trabalhadores, e se tornou membro do PT em 2002. Segundo Picanço, Botelho “deveria, por coerência, sair do PT ou o PT deveria convidá-lo a retirar a ação ou deixar o partido. Mas, infelizmente, ele continua no PT, contradizendo a sua orientação nacional, que é de apoio aos povos indígenas”.

“A posição do PT nos estados do Norte sofre muita pressão dos ruralistas,” reconhece o Dep. Pretto. “No caso especifico de Roraima, existe toda a pressão dos moradores das chamadas ilhas – municípios – que serão extintos com a demaração da reserva…Porém, a posição oficial do PT é pela demarcação como está. Esta posição foi debatida na executiva.”

Vários no PT apóiam a luta pela terra indígena. Várias vezes, o Ministro da Justiça Tarso Genro tem expressado apoio para demarcação contígua da Raposa Serra do Sol. Numa decisão sem precedentes, em 2007, Genro apoiou a demarcação de 11.000 hectares de terra para comunidades indígenas no Espírito Santo, requerendo à Aracruz Celulose S.A.- uma empresa transnacional, maior produtora de celulose de papel no mundo—renunciar uma grande área de suas monoculturas de eucalipto.

“O problema é que o poder judiciário é mais reacionário do que o executivo,” diz José Maria Tardin, um membro da Via Campesina, um movimento internacional para soberania alimentar, que tem expressado solidariedade com os povos indígenas da Raposa Serra do Sol.

O STF previa tomar uma decisão final sobre o caso Raposa Serra do Sol no dia 27 de agosto. O Desembargador de Justiça Carlos Ayres de Britto foi o primeiro a votar a favor de uma reserva contígua. Mais tarde, no mesmo dia, o Desembargador de Justiça Carlos Alberto Menezes Direito pediu mais tempo para tomar sua decisão, e adiando assim a decisão final. Uma semana depois, Quartiero e os outros arrozeiros colheram 1.500 toneladas de arroz na Raposa Serra do Sol com valor de R$100 mi.

“Alguns dizem que será 7 a 4 a favor de mudar a demarcação, mas nada é certo”, diz Pretto. “Com o relatório do Britto, agora a pressão dos ruralistas sobre os outros Desembargadores será maior.”

Se o STF mantiver a legislação para uma reserva contígua na Raposa Serra do Sol, e o governo federal convencer os arrozeiros saírem daquele território, o caso servirá para avançar os direitos humanos e a cidadania das populações indígenas no Brasil, reduzirá a impunidade na região e o reinado poderoso do agronegócio. Ainda mais, ajudará no impedimento à pilhagem daquele que é o ativo ecológico mais importante do planeta para a estabilidade climática: a floresta Amazônica.

O Brasil é um dos dez maiores paises emitentes dos gases de efeito estufa (GE), e a causa primária dos GE no país é o desmatamento. Em agosto, o IBGE divulgou que o ritmo de desmatamento na Amazônia Legal aumentou em 70% em 2007, provocando uma perda de 2,4% da floresta. Como os preços dos alimentos e agrocombustíveis cresceram, os fazendeiros na Amazônia foram estimulados a ampliar o desmatamento para aumentar seus campos de cultivo, empurrando a fronteira agrícola ainda mais ao norte dentro da floresta.

O apoio ao direito dos indígenas à terra pode ajudar a conter o ritmo de desmatamento na Amazônia. Inclusive, das 123 reservas que ainda estão por ser demarcadas, o Brasil possui outras 611 reservas que totalizam quase 13% do território nacional, e 70% das terras indígenas (das quais a Raposa Serra do Sol representa 4%) estão na Amazônia. Eleanora de Paulo Dias, porta-voz da FUNAI, informou a CENSA, de seu escritório em Brasília, que “a conexão entre as terras indígenas e a proteção do clima é fundamental. As terras indígenas são mais protegidas do que as reservas de conservação”.

Alternativamente, se o STF decidir a favor dos arrozeiros, e o Quartiero continuar se divertindo impunemente, não só os indígenas da Raposa Serra do Sol sofrerão as conseqüências; todos sofrerão.

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Isabella Kenfield (isabella.kenfield@gmail.com) é associada ao Centro de Estudos das Américas (CENSA), em Berkeley, California, e tem escrito amplamente sobre conflitos agrários no Brasil.

* Artigo enviado por Ruben Siqueira, CPT/BA, colaborador e articulista do EcoDebate

[EcoDebate, 11/11/2008]

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