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O inferno do Haiti depois dos furacões: morte, lixo, fome e desolação


Foto: UN World Food Programme

O ar é pegajoso. O sol bate sem piedade, ainda que já seja quatro horas da tarde e, em duas horas, será noite. O cheiro golpeia. Mistura de águas paradas, montanhas de lixo e animais mortos. Gonaives, a terceira cidade em importância no Haiti, segue inundada depois da passagem de dois furacões e de uma tempestade tropical no mês passado.

A reportagem é de Carolina Brunstein, e publicada pelo jornal Clarín, 22-09-2008. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

As águas demoram para baixar e em algumas zonas se transformaram em um lodaçal. Estima-se que cerca de 100 mil pessoas, quase a metade da população dessa cidade, seguem evacuadas. As mais afortunadas sobrevivem sobre os telhados de suas casas, se é que a fúria da água não as derrubou. Mas elas não têm nada. Seu único consolo são as sacolas de alimentos que começaram a chegar da mão de organizações internacionais. Aqui, ainda que a inundação passe, a fome e a pobreza nunca terminam.

Primeiro foi o furacão Gustav, nos últimos dias de agosto. Mas foi a tempestade tropical Hanna, no dia 2 de setembro, a que castigou com mais violência essa zona postergada do país mais pobre da América, onde 80% da população vivem na miséria mais profunda. Quase toda Gonaives ficou debaixo de mais de um metro e meio de água. As chuvas e ventos que o furacão Ike provocou, dias depois, terminaram o trabalho de destruição. O balanço oficial fala de 360 mortos, ainda que outros sinalem que poderia ser de até 600, já que haveria centenas de corpos debaixo do lodo.

O centro dessa cidade onde o Haiti declarou sua independência da França no dia 1º de janeiro de 1804 e onde começou a se formar, em fevereiro de 2004, a violenta revolta popular que derrubou o governo do ex “padre dos pobres”, Jean Bertrand Aristide, está praticamente intransitável. Os habitantes, quase todos de uma magreza extrema, caminham com a água na cintura. Os únicos veículos que circulam são os caminhões militares da Minustah, a força da ONU para a manutenção da paz nesse país, criada nestes meses caóticos depois da queda de Aristide. São, agora, encarregados de escoltar as organizações humanitárias que tentam apaziguar a fome e dar algum tipo de atenção médica aos milhares de haitianos que só subsistem vendendo frutas ou pão.

O governo de René Préval, debilitado por uma crise política, não parece ter capacidade para atender a emergência. O Estado está quase ausente e parece descansar sobre os organismos internacionais. Em um dos caminhões brancos da ONU, chegaram a Gonaives três médicos e três logísticos argentinos, todos especialistas em emergências, em uma missão de Cascos Blancos, que trabalhará junto com um grupo da Organização Pan-Americana da Saúde.

“Foi uma convocação das Nações Unidas. Nos próximos dias, virá, ainda, um carregamento de pastilhas potabilizadoras de água e medicamentos”, explica ao jornal Clarín Carlos Villalba, coordenador geral da missão de Cascos Blancos, uma entidade dependente da Chancelaria argentina, que trabalha sob o domínio da ONU. O grupo fica alojado no batalhão General San Martín, a base da Minustah em Gonaives, responsável pelos mais de 400 militares argentinos que integram essa força. Esse prédio enorme povoado de barracas militares salvou-se, em grande parte, da inundação porque está na parte alta da cidade.

Os médicos saíram ontem antes das 7 horas da manhã, sob um sol violento e carregados de repelente – imprescindível aqui – em uma caravana de quatro caminhões do Programa Mundial de Alimentos da ONU que levou sacolas de arroz, feijões e latas de azeite para repartir entre cerca de duas mil pessoas em Luciné, uma localidade nas aforas de Gonaives. O carregamento foi escoltado por cinco caminhões com militares argentinos e bolivianos, armados para fazer frente a tentativas de saques.

“Aqui está tranqüilo porque é uma zona rural. Mas na cidade já reviraram três caminhões. As pessoas brigam pela comida. É terrível a fome que existe”, diz um dos soldados responsável pela partilha.

Em Luciné, onde as casinhas de adobe ou tijolos inacabadas se perdem entre a vegetação, uma fila interminável de mulheres espera para receber sua ração. Têm vestidos coloridos e lenços na cabeça. Quase todas estão descalças. “Perdi tudo. O ciclone levou minha casa, os animais. Não tem comida”, lamenta-se Séneyal a esta enviada, enquanto espera sua sacola de arroz. Outras mulheres assentem, levam as mãos à cabeça em um gesto de desespero.

“Viemos ver que atenção médica essas pessoas necessitam. Tem avidez por contar o que lhes acontece, por ser atendidos. Muitas nos dizem que têm dores no peito, angústia e outros sintomas desde o dia do ciclone. Uma me contou, quase chorando, que a água levou seu avô”, comenta ao jornal Clarín a doutora Viviana Luthy, coordenadora médica do SAME [Serviço de Assistência Médica de Emergência] de Buenos Aires, que estará trabalhando aqui durante dez dias. As mulheres sorriem ao sair com seu pacote, que levam com elegância sobre suas cabeças. Por um momento, são felizes.

(www.EcoDebate.com.br, 25/09/2008) publicado pelo IHU On-line, 24/09/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]