EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Notícia

A fome expressa a natureza da desigualdade, entrevista com Rosana Magalhães, da Fundação Oswaldo Cruz

Ao analisar os programas de transferência de renda no Brasil, a pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz, Rosana Magalhães acredita que “tais programas enfrentam o desafio de não se tornarem uma ajuda e sim um direito social associado ao fortalecimento de novos horizontes para a maior inserção social”. Em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line, ela ainda afirma que “outro dilema importante é garantir de fato a convergência de políticas sociais e, portanto, o maior acesso ao conjunto de bens e serviços coletivos”. Rosana acrescenta que “fome e pobreza não são sinônimos, embora sejam processos associados de maneira complexa e contraditória. A efetividade da renda na redução da insegurança alimentar, sabidamente importante para a compra de alimentos no mercado pelas famílias, só será plena se articulada a fortes investimentos em educação, promoção da saúde, inserção ocupacional, saneamento básico e acesso à terra”.

Rosana Magalhães possui graduação em Nutrição, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mestrado em Saúde Pública, pela Fundação Oswaldo Cruz, e doutorado em Saúde Coletiva, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Atualmente, é pesquisadora Fundação Oswaldo Cruz. É autora de, entre outros, Fome: Uma (re)leitura de Josué de Castro (Rio de Janeiro: Ed.Fiocruz, 1997).

IHU On-Line – Quais as principais relações que podemos estabelecer entre pobreza, saúde e políticas públicas?

Rosana Magalhães – Na área da saúde, os temas da justiça, da eqüidade e do bem-estar têm orientado diversos estudos e pesquisas e há um razoável consenso em torno da idéia de que as necessidades de atenção e cuidado não são iguais. Sem dúvida, a análise das diferenças no comportamento dos fenômenos de saúde e doença segundo sexo, raça, gênero e idade tem sido objeto de inúmeros estudos epidemiológicos há décadas. No entanto, é mais recente a perspectiva de discriminação positiva no campo da saúde, no sentido de garantir mais direitos aos que têm maiores necessidades. Nesta abordagem, também ganha maior relevância o compromisso com a caracterização das iniqüidades ou desigualdades injustas em saúde definidas enquanto problemas evitáveis, os quais, em geral, tendem a acompanhar as distâncias sociais existentes entre os indivíduos. Para Margareth Whitehead, “iniqüidades em saúde referem-se a diferenças desnecessárias e evitáveis as quais são, ao mesmo tempo, consideradas injustas e indesejáveis. O termo iniqüidade tem, assim, uma dimensão ética e social.” Se nem toda desigualdade em saúde é injusta, é importante qualificar melhor as iniqüidades, ou seja, não só identificar as variações na situação de saúde, mas buscar correlacioná-las com o contexto e as condições sociais.

IHU On-Line – Como a senhora vê os programas de transferência condicionada de renda, tendo em vista o cenário da fome em nosso país? O que significa essa ajuda para as famílias que sofrem a fome em sua pior instância?

Rosana Magalhães – Os programas de renda mínima são transferências monetárias às famílias ou indivíduos, objetivando garantir um patamar mínimo de satisfação das necessidades complementando ou substituindo outros programas sociais. As primeiras experiências de renda mínima surgem na Escócia em 1579 e depois na Inglaterra em 1795, a chamada Speemhamland, revogada com a revisão da Lei dos Pobres em 1834. Alguns países posteriormente vão instituir programas de renda mínima. Os EUA instituem em 1935 o Social Security Act, que inicialmente cobria mulheres viúvas com crianças menores. Na Grã Bretanha, surge, em 1948, o Income Suport e, em 1964, Lyndon Johnson, nos EUA, cria o Food Stamps como forma de complementação de renda, pago em cupons que só poderiam ser gastos com alimentos. No entanto, o debate cresce no contexto de crise do Welfare State. A crise do Welfare redimensiona a questão na medida em que emprego gerando renda torna-se um equilíbrio não só cada vez mais instável como também improvável. No Brasil, tais programas enfrentam o desafio de não se tornar uma ajuda e sim um direito social associado ao fortalecimento de novos horizontes para a maior inserção social. Além disso, outro dilema importante é garantir de fato a convergência de políticas sociais e, portanto, o maior acesso ao conjunto de bens e serviços coletivos. É preciso lembrar que fome e pobreza não são sinônimos, embora sejam processos associados de maneira complexa e contraditória. A efetividade da renda na redução da insegurança alimentar, sabidamente importante para a compra de alimentos no mercado pelas famílias, só será plena se articulada a fortes investimentos em educação, promoção da saúde, inserção ocupacional, saneamento básico e acesso à terra.

IHU On-Line – Que alternativas podemos vislumbrar para a superação da miséria, da fome e da redução de desigualdades sociais nos diferentes contextos sociais brasileiros?

Rosana Magalhães – Nosso país exibe níveis de desigualdade social (para além do aspecto da renda monetária) alarmantes frente ao nosso potencial econômico e dinamismo produtivo. O acesso à educação de maneira universal e com qualidade na maioria dos países democráticos modernos mostrou-se a pedra de toque do “turn over” equitativo. A recente pesquisa realizada pelo CEBRAP, “Demografia e Saúde”, mostrou que um dos fatores de maior repercussão na queda da desnutrição infantil foi a educação das mães. Esta é uma evidência inquestionável da relevância deste debate para a superação da fome e da miséria. Não basta, porém, as crianças estarem na escola; é preciso garantir qualidade e envolvimento das famílias com a vida escolar.

IHU On-Line – Qual a importância das obras Geopolítica da fome, de Josué de Castro, e Vidas secas, de Graciliano Ramos, para pensar na problemática da fome e para sensibilizar as pessoas para esse drama?

Rosana Magalhães – Estes autores são verdadeiros “arautos” da nacionalidade brasileira. Latifúndio, escravidão, desigualdade e injustiça social nestas obras emergem como obstáculos ao bem estar e a democracia substantiva no país.

IHU On-Line – Qual a especificidade de Josué de Castro ao falar sobre a fome, o que lhe rendeu tanto sucesso e faz dele até hoje autor de referência sobre o tema?

Rosana Magalhães – Acredito que Josué de Castro pensou de maneira ampla a questão alimentar no Brasil a partir de sua formação sólida, tanto no campo da medicina como da geografia e da sociologia. Isto fez com que o autor rompesse fronteiras disciplinares artificiais e construísse uma análise robusta da fome como fenômeno social. As clássicas oposições e dualidades entre natureza e cultura, biológico e social, indivíduo e sociedade foram tensionadas e abriram, na obra do autor, ricas oportunidades de reflexão e pesquisa.

IHU On-Line – Como a senhora avalia as ações do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea)? Quais os limites para equacionar a fome no Brasil?

Rosana Magalhães – Trata-se de um espaço novo de mobilização e problematização da questão alimentar e nutricional onde os múltiplos atores sociais envolvidos na construção de políticas e programas na área podem forjar novos consensos e arranjos institucionais, capazes de enfrentar os diferentes problemas e desafios da área. Esta experiência estimulada pelos rumos da descentralização decisória e democratização do país após a década de 1980 deve ser fortalecida e ampliada.

IHU On-Line – Como está no Brasil, de modo geral, o descompasso entre as condições salariais e as necessidades alimentares dos trabalhadores? Qual o papel do Estado e das políticas de governo nesse sentido?

Rosana Magalhães – Sem dúvida, a máxima liberal de que o mercado é auto-regulado, justo, e qualquer interferência do Estado é prejudicial e acaba por gerar resultados perversos cada vez mais, é confrontada pela realidade contemporânea. O Estado tem um papel crucial na garantia de maior justiça social. Seu papel redistributivo é inegável. No entanto, frente à crise do trabalho e engessamento burocrático experimentados na maioria das sociedades atuais, é preciso reconstruir esta intervenção estatal, repensar princípios e, sobretudo, investir em uma cultura de avaliação de resultados, processos e impactos dos programas sociais. Somente assumindo a importância da avaliação no âmbito das políticas públicas poderemos aprender com os erros e fazer melhores escolhas.

IHU On-Line – Em que sentido a fome está associada aos dilemas da construção da nação, do Estado e do desenvolvimento econômico e social do país?

Rosana Magalhães – Cada formação sociohistórica particular revela uma maneira de interpretar as interdependências e também as fronteiras entre os pobres e o restante da sociedade. O estatuto social dos pobres em cada época e em cada sociedade depende de como são tecidos, portanto, os laços sociais. A própria emergência da pobreza e também da desigualdade social está ligada a uma ruptura do padrão de coesão social tradicional. Ou seja, nem sempre a pobreza foi um problema a ser enfrentado. Pelo contrário, já foi algo desejável e natural. A pobreza é, portanto, um objeto sociológico sui generis. Simmel vai dizer que a reflexão espontânea sobre a pobreza leva a pensar em definições sobre quem são os pobres, como vivem e analisar sua situação ao longo do tempo. Esta abordagem é insuficiente do ponto de vista sociológico. Para a sociologia colocar em termos binários as características dos pobres e do “resto da sociedade” é sempre arbitrário. O importante seria, assim, não estudar o pobre ou os famintos, mas a relação de proteção e assistência entre grupos que vivem numa sociedade. Ou seja, a fome, enquanto fenômeno social que ultrapassa a privação de nutrientes, expressa a natureza da desigualdade, o perfil do Estado e as expectativas em relação ao desenvolvimento no país.

(www.EcoDebate.com.br, 25/09/2008) entrevista publicada pelo IHU On-line, 22/09/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]