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Artigo

Para escapar à barbárie urbana, artigo de Washington Novaes

[O Estado de S.Paulo] Às vésperas de eleições municipais, deveríamos meditar no significado dos números da contagem divulgada há duas semanas, que apontam uma população nacional de 189,6 milhões, quando se acreditava que ela já estaria próxima de 200 milhões. Mais ainda, a contagem mostra que o índice de fecundidade das mulheres já baixou para 1,8 filho, abaixo da taxa de reposição populacional, que é de 2 filhos por mulher (que substituirão mãe e pai, sem aumentar a população), e que se esperava só fosse atingido em meados do século, com uma população em torno de 245 milhões. Isso quer dizer que ultrapassamos o crescimento populacional “explosivo”. A população só continuará aumentando nas próximas décadas porque ainda é alto o número de mulheres em idade fértil (por causa das altas taxas de natalidade nas décadas de 60 a 90 do século passado). A persistirem as atuais taxas de fecundidade, a população poderá até reduzir-se em poucas décadas.

É hora, então, de repensar as políticas urbanas. Para que os benefícios da mudança no quadro populacional não venham a ser anulados por políticas que continuem estimulando a concentração urbana e a formação de megalópoles próximas da ingovernabilidade, como nas últimas décadas. Os números expostos pelo caderno especial Megacidades (Estado, agosto de 2008) são assustadores, com a megarregião São Paulo-Campinas concentrando em 11.698 km2 (0,27% do território nacional) nada menos que 22 milhões de moradores, 22,1% do PIB brasileiro e 65% do PIB paulista. Para agravar, pouco mais de um quarto dos paulistanos, 3,2 milhões de pessoas, vive em 1.565 favelas e 1.128 loteamentos irregulares (4/8), além de 36,5 km2 de áreas de mananciais (500 mil pessoas).

O déficit habitacional ali é calculado em 1,5 milhão de moradias. Mas as contas são difíceis porque, ao mesmo tempo, é imenso o número de moradias vagas, com a degradação de certas áreas e a migração de pessoas em busca de segurança. Entre 1996 e 2007, dizem a Fundação Seade e o IBGE , o “centro expandido” perdeu 441 mil habitantes, enquanto áreas “extremas” da Região Metropolitana ganharam 1,21 milhão. É evidente que o deslocamento gera novas demandas. E, ao mesmo tempo, o fechamento progressivo, a “condominialização” de ruas ou setores inteiros em busca de segurança, é uma nova questão.

Para completar, o quadro dos transportes urbanos: “São Paulo vai parar”, diz o urbanista Cândido Malta Campos Filho (Estado, 30/3), segundo quem os paulistanos só aceitam deixar o carro se dispuserem de metrô. E ele não acredita que o Rodoanel venha a alterar significativamente o panorama, pois só deslocará 50 mil veículos.

Nesse panorama, parece claro que só a descentralização político-administrativa para valer, com participação da sociedade na elaboração, execução e fiscalização do orçamento, poderá levar a novos rumos – e impedir que as decisões administrativas continuem confinadas em corporações de interesses político-econômicos. Mas se esbarra aí em outra questão, tratada com muita competência pelo sociólogo José de Souza Martins neste jornal (24/8), ao dizer que a utopia urbana é bloqueada “pelas irracionalidades e absurdos que, infiltrando-se pelas eleições, chegam à política e dominam as cidades”. Explica ele: “Pessoas que foram secularmente mantidas à margem dos direitos políticos, e ainda estão à margem dos direitos econômicos e sociais, tiveram um crescimento político mutilado por essa deformação, que, inevitavelmente, se reflete nas eleições por meio da transformação das carências não-políticas em demandas políticas.” Ou seja, os marginalizados transformam a satisfação de suas carências econômico-sociais em demanda eleitoral – e, por esse caminho, em política clientelista por parte dos candidatos. Não se concebem políticas urbanas adequadas, e sim formatos de atendimento de necessidades específicas (asfalto, ônibus, escola, postos de saúde) em locais específicos. Não se consegue conceber macropolíticas que mudem os rumos das grandes cidades.

Seria fundamental, então, que o País conseguisse chegar a verdadeiras políticas de redistribuição da renda, que nos tirassem do patamar vergonhoso em que nos situamos, com pelo menos 30% da população abaixo da linha da pobreza e milhões na miséria. Embora o Bolsa-Família seja importante, não se pode esperar daí nenhuma transformação profunda do quadro. Ainda mais sabendo que, pelo outro lado, prossegue a concentração, com o pagamento de juros absorvendo 15 vezes mais recursos que o Bolsa-Família. Sem falar em isenções de impostos, perdão de dívidas, crédito privilegiado, sonegação tolerada, etc., etc.

Simultaneamente, precisamos conceber políticas urbanas que levem a transformações profundas na localização de investimentos (e na geração de postos de trabalho), para redistribuir espacialmente a população. Enfrentar interesses que levam à expansão urbana desordenada, sem implantação das infra-estruturas básicas (e transferindo os ônus para toda a sociedade). Ter coragem no enfrentamento das questões do trânsito: vai-se continuar permitindo, sem nenhuma outra exigência (como a retirada de veículos muito antigos), o licenciamento de mil veículos novos a cada dia numa cidade que está parando? Não se estabelecerá nenhuma exigência quanto ao tipo de veículo e seu volume de emissões de gases, nem se implantará o programa de aferição de emissões, aprovado há mais de 20 anos? Não se tornarão obrigatórias novas regras para construções, que substituam e economizem materiais, além de estimular a iluminação e aeração naturais? Não haverá obrigatoriedade de todo gerador de resíduos pagar pela sua coleta e destinação?

“Nossas cidades”, diz José de Souza Martins, “estão escapulindo da civilização em direção à barbárie.” Não é com políticas e medidas paliativas/clientelistas que se pode fugir a desse destino.

Artigo originalmente publicado no O Estado de S. Paulo, 19/09/2008.

[EcoDebate, 22/09/2008]