EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Notícia

Cidades feitas para excluir. Entrevista com Raquel Rolnik, relatora especial da ONU para assuntos de moradia

A arquiteta e urbanista Raquel Rolnik é, desde março deste ano, relatora especial da Organização das Nações Unidas para assuntos de moradia. Professora na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, ela integrou a equipe que formou o Ministério das Cidades, em 2003. Conhecedora profunda da “máquina” brasileira de fazer cidades, na conversa a seguir ela explica os principais problemas enfrentados pelos municípios, e fala do momento promissor que o País vive atualmente. Entrevista publicada na Carta Capital n° 0512.

CartaCapital: A escassez de saneamento é um termômetro da situação urbana no Brasil?
Raquel Rolnik: É resultado da urbanização desenfreada, excludente e predatória. Apesar da sua importância, o saneamento não é implantado porque é mais caro e complexo do que as outras intervenções urbanas, que podem ser pontuais, como a construção de uma quadra esportiva ou de algumas casas. É um investimento complexo, grande, que não se resolve pontualmente, que necessita estar conectado a um sistema, uma rede. Por isso tem se arrastado tanto. Mais da metade das cidades não têm destinação adequada para o lixo que produzem e menos de 20% do esgoto é tratado.

CC: A criação dos conselhos municipais provocou alguma mudança na gestão das cidades brasileiras?
RR: A organização dos conselhos está em curso, mas o grande limitador para que os conselhos sejam implementados e participem de verdade no processo decisório a respeito da destinação dos investimentos em urbanização é que, de fato, as cidades não têm recursos próprios, autônomos, para isso, dependendo fundamentalmente de transferências voluntárias dos executivos e legislativos estaduais e, principalmente, federal.

CC: Por que isso acontece?
RR: Nós temos um modelo federativo e um modelo fiscal-tributário que, na relação com o sistema político brasileiro, fazem com que os processos decisórios dos recursos sejam sempre mediados politicamente, via processo de transferências. É diferente, por exemplo, do que acontece com o Sistema Único de Saúde (SUS), em que a transferência dos recursos é compulsória e calculada per cidadão. Ainda que não esteja livre de problemas, esse modelo permite que os Conselhos de Saúde, de fato, tenham algum poder. Na área de desenvolvimento urbano não existe nada disso.

CC: Como um município consegue recursos para a urbanização?
RR: O acesso acontece via convênios com ministérios e secretarias estaduais, ou via emendas parlamentares, ambos processos 100% intermediados pelo sistema político-partidário; ou via empréstimos, principalmente com a Caixa, mas também com o BNDES. As fontes de recursos próprios de um município são os impostos sobre a propriedade (IPTU e ITBI) e os serviços (ISS), e as taxas locais. Dentre os 5.507 municípios brasileiros, a maioria não arrecada o suficiente nem para se manter. Ou porque não tem dinâmica urbana alguma, ou porque não cobra devidamente os processos de valorização imobiliária. Apenas as cidades maiores e mais ricas utilizam parte desses recursos para investir em urbanização. Os demais dependem do Fundo de Participação dos Municípios, que cobre apenas o custeio da máquina. Ou seja, os municípios brasileiros vivem permanentemente sem recursos para produzir urbanidade.

CC: Os conselhos, então…
RR: Mesmo que não tenha poder para definir investimentos, o papel de um conselho municipal pode ser fundamental na definição da regulação do uso e ocupação do solo, que é uma competência municipal, ou seja, a decisão de qual pedaço da cidade será destinado a cada grupo econômico-social. Há alguns exemplos interessantes de construção participativa de políticas. A cidade de Diadema (na grande São Paulo), dos anos 1980 até os anos 2000, transformou-se dessa forma de um acampamento em uma cidade. Belo Horizonte tem um conselho atuante, bastante consolidado. Certamente, existem muitos outros exemplos no Brasil.

CC: Quais são os principais problemas do urbanismo no Brasil?
RR: Uma questão seriíssima é o setorialismo. Produzir cidades é urbanizar, e urbanizar é pensar em tudo junto. No Ministério das Cidades, queríamos criar um paradigma novo, uma política urbana integrada, nos três níveis federativos e com controle social. Começou a se investir nessa direção e o processo foi claramente interrompido (após a saída de Olívio Dutra, em 2005).

CC: O que o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) representa na política urbana brasileira?
RR: Sem dúvida, o PAC ativou essa área e isso gera movimentos importantes. No entanto, ele não veio juntamente com uma reforma de Estado capaz de dar conta da capacidade de gestão dos territórios, que ainda é necessária. Por outro lado, a consolidação da política de regularização fundiária plena e a urbanização de favelas fazem parte de uma mudança inovadora. É preciso termos em mente que pelo menos um terço dos domicílios brasileiros está em situação irregular ou precária.

CC: Quais as mudanças mais significativas na postura em relação às favelas?
RR: Nosso modelo de urbanizar produz esses assentamentos precários. Pelo menos, agora temos uma idéia de que é preciso intervir no passivo, urbanizar as favelas. Mas o grande desafio é: como evitar a formação de novas? Isso só vai acontecer quando, finalmente, reconhecermos a moradia adequada como um direito dos cidadãos e garantirmos que os pobres tenham acesso à terra. No fundo, esta é a raiz de questões aparentemente distintas, como a dos quilombolas, dos sem-terra, dos indígenas e a dos posseiros urbanos. Hoje, temos recursos para construir a casa, mas não temos o chão. Esse é o pacto socioterritorial que o Brasil precisa fazer. Não da forma como é hoje, como se oferecer infra-estrutura, dignidade, fosse um favor que o governante faz: “Ele olhou para nós”. Isso não deveria ser negociado.

CC: Mas retornamos ao problema inicial, da falta de recursos para os municípios atenderem a essa demanda, não?
RR: O erro do debate sobre infra-estrutura urbana é achar que a questão fundamental, única, é a dificuldade de recursos para investir, quando, na verdade, nós já vivemos isso. Nos anos 1970, havia o Banco Nacional de Habitação (o extinto BNH), que investiu milhões, e que cidades nós produzimos? Foi aí que explodiu a favelização no Brasil. Agora temos o PAC. O diferencial, hoje, é que o crescimento econômico está sendo mais redistributivo. Mas isso não basta, porque sem regulação nem capacidade de gestão local do território podemos reproduzir esse modelo de cidade precária e desequilibrada. E isso não está acontecendo.

CC: Com o PAC, o Brasil está diante de uma oportunidade de repensar suas cidades?
RR: Sem dúvida. Hoje nós temos um maior nível de organização social, mais acesso à educação, recursos, a economia está crescendo e pela primeira vez há condições legais e demográficas de organizar melhor as cidades. O Estatuto das Cidades (de 2001) é uma delas, por oferecer instrumentos de natureza urbanística para ampliar o acesso à terra para os setores de menor renda, além de outras inovações. A possibilidade da formação de consórcios públicos entre municípios para gerir recursos para necessidades comuns, algo que sozinhos não conseguiriam, é outro.

CC: Podem-se esperar, então, grandes transformações urbanas?
RR: O grande ponto está no mundo da política, do poder, e na estruturação do Estado na área de desenvolvimento urbano. Ainda há um poder concentrado dirigido para a privatização dos ganhos, rápidos, em poucas mãos. Nossa máquina de produzir cidades é concentradora, excludente. É aí que temos de romper.

[Ecodebate, 09/09/2008]