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Cor da pele, vocabulário e analfabetismo remetem cortadores de cana de São Paulo aos tempos do escravismo


O cenário verdejante que pigmenta as fotografias e colore o horizonte não passa de ilusão -o tom do canavial é outro. A fuligem das queimadas ensombrece as varas de cana-de-açúcar e torna rubro-negra a terra roxa em que outrora se fincavam cafezais. Fragmentos da palha incinerada se amalgamam com o suor dos rostos e desenham máscaras escuras. A cor predominante dos canavieiros, de banho tomado, não muda. Da Folha de S.Paulo, 24/08/2008.

São negros -a soma de “pretos” e “pardos”- 63,7% dos trabalhadores no cultivo da cana no país. A proporção supera os 43,4% de negros na PEA (população economicamente ativa) e os 55% na PEA rural.

A característica se repete em São Paulo, onde a presença negra na labuta da cana beira os 49%, o equivalente a 76% mais que na PEA geral do Estado e 54% mais que na sua fração do campo -conforme o Censo de 2000, em dados colecionados pelo economista Marcelo Paixão (UFRJ).

Os números frios ganham vida nas plantações. De perto, o canavial é mesmo negro.

Como eram os escravos que no Brasil moviam as moendas de cana, como documentou aquarela de Jean-Baptiste Debret em 1822. Ou, em gravura de William Clark de meses depois, os cativos que decepavam com facão a cana em Antígua.

Traços raciais e instrumentos de ofício se mantêm, mas o anacronismo vai além da semelhança de personagens dos retratos atuais com os das pinceladas do século retrasado.

É como se estatuto e cultura escravistas teimassem em permanecer, assim como um pé de cana se agarra ao solo e por vezes rende dez safras.

“Já conversei com o meu feitor”, diz um canavieiro, sobre a autorização para que ele fosse fotografado para a reportagem (pedido negado). “O meu feitor é bom comigo”, concede outro.

Inexiste conteúdo pejorativo, na boca dos cortadores, ao pronunciar a palavra. No Houaiss, uma acepção de feitor: “Diacronismo: antigo. Diz-se de encarregado dos trabalhadores escravos”.

É arcaico -ou velhaco-, porém os chefes de turma assim são chamados na roça. Imprimiu-se a expressão “feitor” em ação civil pública e em decisão judicial recentes.

Em meio ao canavial, o cortador cuida do seu “eito”. “Não paro até acabar o meu eito”, conta um. O dicionário define eito como “plantação em que os escravos trabalhavam”.

Analfabetismo

Assim como na escravidão africanos e descendentes cantavam, a cantoria hoje desafia o silêncio nas fazendas. Não são tristes os canaviais.

Em Serra Azul, um peão embala os golpes de podão com refrão da dupla sertaneja Gino e Geno: “Não é bebendo que você vai esquecer de mim; não é fugindo que o nosso amor vai chegar ao fim”.

Cortadores de cana apegam-se ao copo, reconhecem muitos deles. A convivência longe da roça confirma.

A caninha não era tabu pré-Abolição. Na década de 1820, Carlos Augusto Taunay recomendava aos senhores, no “Manual do Agricultor Brasileiro”, distribuir cachaça aos escravos após o jantar (reedição da Companhia das Letras, 2001, organização do historiador da USP Rafael de Bivar Marquese).

Naquele tempo, confinava-se a escravaria no analfabetismo. Na Revolta dos Malês, levante negro na Bahia de 1835, os líderes se distinguiram pelo domínio, raro, da leitura e da escrita.

Colhe-se o semeado. Com base em estatísticas de 2006, os pesquisadores Rodolfo Hoffmann (Unicamp) e Fabíola C.R. de Oliveira (USP) constataram que a escolaridade média dos trabalhadores da cana é de 3,7 anos. Na classificação de educadores, isso os reduz à condição de analfabetos funcionais.

No país, a média de estudo é de 6,9 anos. Na indústria do álcool, de 8,6.

Acumulam-se contratos em que a impressão digital do funcionário substitui a assinatura. “Não vou mentir, nunca fui à escola”, conforma-se uma lavradora. Ela não pode ler os relatórios do Ministério do Trabalho e da Organização Internacional do Trabalho que descrevem cortadores de cana “resgatados” e “libertados”.

Em maio, a Justiça Federal do Maranhão condenou um fazendeiro por reduzir seres humanos a condição análoga à de escravo. Ele foi acusado de torturar um funcionário com ferro de marcar gado.

Também por trabalho escravo, em 2005 a Justiça Federal de Piracicaba sentenciou à prisão um aliciador de paraibanos para o corte da cana em Nova Odessa (SP).

Cabem recursos.

Escravidão

Como interpretou Gilberto Freyre em “Casa Grande & Senzala”, a cana “trouxe em conseqüência uma sociedade e um gênero de vida de tendências mais ou menos aristocráticas e escravocratas”.

No canavial, o “mais ou menos” deu lugar ao paroxismo.

No livro clássico de 1933, o sociólogo pernambucano anotou que, nos idos de 1850, anúncios apregoavam preferência por negros com todos os dentes da frente. Nas plantações contemporâneas, multiplicam-se banguelas.

No finzinho do século 17, o jesuíta Jorge Benci pregava que os escravos não dessem duro aos domingos, como cita Bivar Marquese no livro “Feitores do Corpo, Missionários da Mente” (Companhia das Letras, 2004).

Hoje o Ministério Público do Trabalho combate o regime de cinco dias por um, adotado em muitos canaviais, no qual poucas folgas caem nos domingos e feriados.

A escala impede os oriundos de Minas Gerais e do Nordeste de celebrar datas que lhe são caras em virtude da religião.

No passado, batia o aperto, corria-se ao matinho. Segue assim: muitas empresas não instalam banheiros móveis obrigatórios ou, por inibição, os lavradores os evitam.

Se antes os filhos da casa grande se iniciavam nos dengos da cama com as moradoras mais formosas da senzala, agora se protocolam denúncias de assédio sexual de feitores contra as cortadoras.

Nas famílias canavieiras, mulheres vivem de outra profissão herdeira do Brasil colonial: são empregadas domésticas. Nessa atividade, elas têm mais tempo pela frente.

A socióloga Maria Aparecida Moraes Silva (Unesp) estima que a vida útil dos cortadores seja de 15 a 20 anos. É menos que a dos escravos nas décadas derradeiras do cativeiro no país. É como se os lavradores “estivessem em uma galé”, escreveram os professores Francisco Alves (UFSCar) e Marcelo Paixão.

Em 13 de maio de 1888, a princesa imperial firmou a lei nº 3.353, com dois artigos: “É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil. Revogam-se as disposições em contrário”.

No interior paulista, evoca-se a história. Em Dois Córregos, um migrante pernambucano sobrevive em uma espécie de cortiço na rua 13 de Maio. Em Guariba, uma habitação degradada de cortadores maranhenses fica na avenida Princesa Isabel.

Em Piracicaba, uma blitz oficial parte de outra rua 13 de Maio. Vai para a roça, onde aves de rapina perseguem os roedores que as queimadas expulsaram das tocas.

Sem dar pelota ao duelo entre ratos e urubus, homens e mulheres cortam cana.

[EcoDebate, 25/08/2008]