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Você sabe de onde vem sua picanha?


Imagem: Revista Época n° 0535

Como os bois criados em áreas de desmatamento ilegal na Amazônia vão parar na mesa do consumidor. E por que os frigoríficos não conseguem controlar seus fornecedores

O engenheiro paulista Guilherme Parize, de 24 anos, costuma comer carne bovina de quatro a cinco vezes por semana. Faz parte do imenso contingente de brasileiros que adoram carne – e, graças ao avanço econômico, podem incluí-la em quantidades generosas em seu cardápio. Nos últimos dez anos, o consumo de carne no Brasil quase duplicou. O mercado interno responde pelo abate de 35 milhões de bois a cada ano. Um efeito colateral desse hábito alimentar tem sido o aumento da devastação da Floresta Amazônica. Pouca gente sabe, mas um em cada três bifes consumidos no Sudeste veio da Amazônia. Parte desses bois – ninguém sabe quanto – foi criada em áreas de desmatamento ilegal e de ocupação irregular de terra pública. São os bois piratas, conforme a expressão do ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc. Mesmo os consumidores que se preocupam com a procedência da carne não têm opção de compra. “O Brasil abate 50 milhões de cabeças por ano. Cerca de 17 milhões são vendidos sem nenhum tipo de controle sanitário ou ambiental”, afirma Luiz Carlos de Oliveira, diretor-executivo da Associação das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec). É um terço da produção nacional. Será tão difícil controlar o caminho dos bois piratas? Por Juliana Arini e Thais Ferreira, da revista Época, n° 0535.

ÉPOCA perguntou aos principais frigoríficos e redes varejistas do país que operam na Amazônia como eles asseguram a procedência de sua carne. Algumas redes não responderam. Outras garantiram seguir critérios ambientais. Mas, como admite José Antônio Veronesi, diretor de compra de gado do frigorífico Margen, não há como ter controle absoluto sobre quanto o produtor desmatou.

Esse descontrole representa um risco econômico: a carne brasileira pode sofrer embargos no exterior por causa das questões ambientais. Já aconteceu com a soja. Em 2006, o grão colhido na Amazônia foi recusado pelos maiores importadores mundiais com a justificativa de que o produto era um dos combustíveis de destruição da floresta. A carne é nosso principal produto de exportação. E os números associam a atividade à devastação.

Cerca de 78% do que foi derrubado no Norte do país serviu para a formação de pastos. Nos últimos dez anos, o rebanho da floresta aumentou 173%. “A criação dos bois é um dos grandes impulsos para as derrubadas na região”, afirma Paulo Barreto, pesquisador do Imazon, um dos principais institutos de pesquisa da floresta. Em 2005, foram produzidos na Amazônia 2,8 milhões de toneladas de carne, 36% da produção nacional. Mas apenas 71% foram processados por frigoríficos sob inspeção federal (SIF). O restante foi vendido como carcaça ou bois vivos para outros Estados ou por abatedores informais. “É esse rebanho sem controle, federal ou estadual, a grande raiz do problema ambiental ou sanitário”, afirma Oliveira, da Abiec. A grande maioria dos proprietários rurais não tem cadastro de suas terras no Incra, o órgão responsável pelo controle fundiário no Brasil. Se o país nem sabe quem são os proprietários, como fazer cumprir as leis?

Perseguir o gado que devora florestas virou uma política de governo para o ministro Minc. Já foram apreendidas 10 mil cabeças. Falta descobrir o que é legal ou não em um rebanho de 70 milhões. “Queremos propor uma espécie de moratória aos frigoríficos. Eles vendem a carne e são co-responsáveis pelo desmatamento”, diz Minc. “Vamos assinar a moratória em setembro”. O ministro exigiu dos frigoríficos a lista dos pecuaristas fornecedores. “Daí poderemos analisar se esses produtores cometem crimes fundiários e ambientais”, afirma o ministro. Quem continuar comprando de criminosos ambientais poderá ser fechado.

As empresas resistem. “Frigorífico é uma indústria, não pode exercer a função de Estado”, diz Oliveira. Mesmo assim, as empresas perceberam que precisarão oferecer uma resposta à pressão por critérios ambientais mais transparentes e criaram um grupo de trabalho dos maiores frigoríficos nacionais, varejistas, representantes do governo federal, além de instituições financeiras como o Banco Mundial. “Os problemas na cadeia são vários: terra grilada, trabalho escravo”, diz Liza Gunn, diretora do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), que faz parte do grupo. “Mas espero que encontremos mecanismos efetivos para tornar a carne mais sustentável”.

O grupo terá vários obstáculos. O primeiro é a questão fundiária. Criar bois na Amazônia virou uma forma de lavar dinheiro: o boi é comprado com dinheiro ilegal, a venda da carne é oficial. A Polícia Federal investiga, por exemplo, as terras do banqueiro Daniel Dantas na Amazônia. A família Dantas é a maior criadora de gado na região, com 450 mil cabeças.

A falta de fiscalização é o segundo problema. Com a intensificação da atuação do Ibama na região, três frigoríficos já foram multados em julho. No início do ano, o Quatro Marcos, um dos maiores do país, foi denunciado pelo Ibama por comprar carne do produtor que mais desmatou em 2007, a pecuarista Rosana Xavier – cuja família controla o Quatro Marcos.

Uma possível solução para criar critérios e sistemas de certificação pode passar pelos supermercados. Eles já são cobrados pelos consumidores. Alguns prometem produtos com procedência controlada. O Carrefour afirma que 50% da carne que vende já tem o selo de garantia de origem. “Temos a rastreabilidade desde a fazenda até a chegada ao supermercado”, diz Luiz Carlos Alimento Paschoal, diretor nacional de açougue do grupo.

Apesar do esforço do setor em se organizar, falta uma contrapartida do governo. “Se ficarem apenas pressionando as empresas que estão regulares, como os grandes frigoríficos, corremos o risco de dar mais força para os ilegais”, diz Oliveira, da Abiec. “Se o produtor não conseguir vender para as grandes redes, ele vai procurar um clandestino”.

[EcoDebate, 21/08/2008]