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Artigo

As muralhas devastadas do rio Xingu, artigo de Rodolfo Salm


[Correio da Cidadania] Apesar de todas as controvérsias quanto ao projeto de construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, o presidente da Eletronorte, Jorge Palmeira, parece ignorar as dificuldades. Pelo menos é o que se pode concluir de suas recentes declarações à imprensa paraense.

Segundo ele, até o final de agosto serão concluídos os estudos de viabilidade da hidrelétrica da usina, já no primeiro semestre de 2009 serão concluídos todos os estudos ambientais e de viabilidade econômica do empreendimento e (independente de qualquer resultado que estes “estudos” possam gerar) as obras deverão começar no início de 2010, com uma previsão de cinco anos para entrada em funcionamento da usina.

As previsões do presidente da Eletronorte são, evidentemente, bravatas. O cronograma por ele apresentado só seria possível se não houvesse resistências à obra, o que não é o caso. Em defesa do rio, além dos índios e dos ambientalistas, há o Ministério Público Federal, que deve questionar os estudos e o processo de licitação, pois as empresas que estão fazendo os estudos técnicos são as mesmas que participarão da concorrência para a construção das barragens. Eu acredito que esta usina não sai por pelo menos outros dez anos. Mas as armações pelos barramentos do rio, e contra a floresta, seguem em curso acelerado.

Acabo de retornar de uma fascinante viagem pelo Xingu, quando subimos o rio até a Terra Indígena Kayapó, no sul do estado, onde, para a minha realização, fomos levados por um cacique a um grupo de macacos-aranha em um ponto excepcionalmente preservado da cadeia de montanhas florestadas que acompanha o curso do rio.


Imagens de satélite – Wikimapia
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A viagem ao Xingu foi parte do que seria um curso de campo para nove universitários desenvolvido na base de pesquisas do Pinkaití, na aldeia Aukre, sobre conservação e a vida social dos Kayapó. Sete deles vieram de universidades norte-americanas e dois da Universidade de Brasília (tendo sua participação subsidiada pelos alunos norte-americanos).


Imagens de satélite – Wikimapia
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Lamentavelmente, apesar de nossos esforços de planejamento e organização, os procedimentos burocráticos para concessão de autorizações para cursos em terras indígenas são extremamente complicados e, na última hora, o curso teve de ser cancelado. Porém, ainda conseguimos a tempo a autorização da FUNAI para uma visita às aldeias Kokraimoro e Pykararankre, às margens do grande rio, na porção norte da Terra Kayapó.


Imagens de satélite – Wikimapia
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Graças a esta visita, pude testemunhar o estado de abandono e as altíssimas taxas de desmatamento no município de São Felix do Xingu, além do limite norte da terra indígena, notoriamente as mais elevadas de toda a Amazônia brasileira. Se o contato com este dado pelas notícias dos jornais já dói, nada se compara a testemunhar, a partir do leito do rio, a derrubada em andamento das matas que cobrem as serras que acompanham seu curso, devastando assim as molduras daquele cartão postal magnífico. Serras às vezes tão altas que até lembram a Serra do Mar, na costa brasileira e, conseqüentemente, trazem à memória a triste história da devastação da Mata Atlântica durante os ciclos da cana-de-açúcar e do café.


Imagens de satélite – Wikimapia
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Alguns dos estudantes que acompanhávamos nunca tinham deixado os Estados Unidos e nenhum dos estrangeiros jamais pisara em um país de terceiro mundo. Na estrada para São Felix do Xingu, a cidade às margens do rio mais próxima à Terra Kayapó, passamos pelo local do famoso massacre dos sem-terra em Eldorado dos Carajás. Ali há hoje um museu improvisado em estado de abandono quase completo e um monumento muito tocante em homenagem aos mortos, erguido pelo MST, que consiste do conjunto de dezenove imensos troncos de castanheiras mortas pelo fogo, reunidos e chumbados no chão com cimento. As árvores queimadas representam cada uma das vítimas do massacre, em um protesto duplo contra a violência aos seres humanos e à natureza.

Ao longo das estradas do sul do Pará, ficou claro para os visitantes (se ainda houvesse alguma dúvida) que as leis ambientais brasileiras, como a que determina a preservação de uma elevada percentagem de matas e cerrados nativos em propriedades rurais, não passam de palavras no papel. Quase nada sobrou da vegetação que havia ali. E apesar de o município de São Felix do Xingu ter o maior rebanho bovino do Brasil, cruzando a estrada (em asfaltamento) que leva à cidade na beira do rio, avistei pouquíssimos animais. A explicação que me deram para isso é sinistra: os pastos à beira da estrada já são “velhos”, pois foram formados na década de 1980, quando a estrada para o oeste foi aberta. Agora, a maior parte do gado está longe, além da vista de quem corta a estrada principal para São Felix, distante, para o norte e para o sul, em direção à mata. É mais barato desmatar para a formação de um novo pasto do que recuperar uma pastagem velha, que, dentre outras coisas, exige que sua terra seja arada e revirada.

Foi somente chegando em São Felix, passando do ônibus para o barco que nos levaria rio-acima, e deixando a cidade para trás, que realmente nos sentimos adentrando a Amazônia. O Xingu é um rio maravilhoso. Suas águas verdes, praias, ilhas e corredeiras são uma alegria para os sentidos. Uma pintura que só não é mais bela porque a moldura de montanhas, ao fundo, sofre um acelerado processo de desmatamento. Nem mais alegre porque o rio, as praias, os pedrais e as corredeiras, que ainda escapam da degradação humana, estão ameaçados pelo avanço das hidrelétricas.

O que sobrou da mata da beira do rio na maior parte do trecho até o início da terra indígena estava ressequido, depauperado pelos madeireiros, ameaçado pelo fogo e semi-abandonado. E o que resta da fauna é intensamente caçado, como pudemos perceber pelo número de disparos ouvidos à noite enquanto acampávamos nas ilhas, viajando Xingu acima. Então, espécies sensíveis à pressão de caça, como os macacos-aranha que veríamos mais tarde em abundância, já na reserva Kayapó, não têm como se sustentar ali. Felizmente, cruzados os limites da Terra Kayapó, pudemos apreciar a natureza preservada, como era há até poucos anos em toda a extensão do Xingu.

Fomos recebidos com festa nas duas aldeias. Os Kayapó, além de orgulhosos de sua cultura e da preservação de suas terras, estavam felizes com a presença dos estudantes, que pagaram cada um 400 dólares pela visita. Além de desenvolverem uma atividade econômica verdadeiramente sustentável com a visita dos estudantes às suas terras, os índios também contribuíram para a economia do resto do Brasil, pois os norte-americanos gastaram pelo menos outros três mil dólares cada em outras partes do país. E podem contribuir muito mais, se o potencial de aproveitamento turístico de suas terras for desenvolvido.

Fora dos limites da Terra Indígena, apesar de tantos desmatamentos às margens do Xingu, se vi meia dúzia de vacas pastando nessas montanhas foi muito. Desmatamentos, é bom que se diga e repita, duplamente criminosos, pois, além de estarem à beira de rio, o que é proibido (e que rio!), foram feitos na serra, o que também é ilegal. Então, por que, nos dias de hoje, em que se fala tanto em preservação, se desmata tanto justamente ali, bem na beira daquele rio fabuloso? Não se faz nada para evitar esse crime porque, aos olhos dos governantes, não há motivo para aquelas montanhas serem florestadas. Para eles, antes de molduras de um quadro maravilhoso para o deleite dos visitantes do Xingu, elas são as paredes dos reservatórios das futuras hidrelétricas.

Rodolfo Salm, PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, é professor da Universidade Federal do Pará.

Artigo enviado pelo Autor e originalmente publicado pelo Correio da Cidadania.

[EcoDebate, 18/08/2008]