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Crise de alimentos, seus responsáveis e conseqüências


Paris – A elevação explosiva de preço dos alimentos atira milhões de seres humanos que vivem nos países pobres do mundo ao léu e na fome. O número de pessoas subnutridas – que já era de 854 milhões antes de eclodir a nova crise alimentar – aumenta dramaticamente.

Para as populações de muitas cidades faltam o trigo, o arroz, o milho. E quando a fome chega às cidades, torna-se algo visível e ameaçador. Por isso as convulsões que explodem no Egito, nas Filipinas, no Haiti, na Indonésia e em vários outros países e regiões.

Enquanto milhões sofrem e protestam, há aqueles que se aproveitam da crise. Os desempenhos operacionais das multinacionais que controlam o mercado de produtos agrícolas registram altas galopantes, e suas ações são avidamente disputadas em todas as bolsas de valores do planeta.

Os motivos, responsabilidades e conseqüências desta grande crise alimentar foram analisadas por três conhecidos estudiosos, reunidos neste inédito diálogo, aqui em Paris: Federico Rampini, jornalista do jornal italiano La Repubblica e professor da Universidade de Berkeley; Luciano Gallino, professor de Sociologia na Universidade de Turim, Itália; e Jean Ziegler, sociólogo suíço e membro da Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). Por Mary Stassinákis, Sucursal da União Européia, do Monitor Mercantil, RJ, 06/08/2008.

Rampini: a fome como fenômeno político

Uma multidão armada, com bastões põe fogo em montanhas de pneus, e atrás de uma extensa fumaça, enfrenta a polícia em uma guerra de guerrilhas urbana em Mogadíscio, na Somália.

O governo das Filipinas é obrigado a anunciar uma distribuição de emergência de arroz para a população de Manila.

A Índia promulga lei proibindo que a Bolsa de Valores de Mumbai realize pregões das ações de empresas que comercializam produtos agrícolas.

Estes três eventos, que ocorreram no mesmo dia, são feições da mesma crise. Com a alta da inflação e a paralisação das transações no mercado internacional, o fantasma da fome tende a se expandir sobre todo o planeta.

O presidente do Banco Mundial (Bird), Robert Zoellick, adverte que “de repente, 100 milhões de seres humanos mergulham na subnutrição, e pelo menos 30 países são ameaçados de instabilidade e violência”.

O alarme é transmitido rapidamente da África para a Ásia e a América Latina, onde o governo do Haiti foi obrigado a se demitir pressionado pelos levantes populares em protesto contra os altos preços de alimentos.

Até nos EUA, a nação mais rica do mundo, o governo Bush foi obrigado a aumentar o número de cupões de distribuição de alimentos aos cidadãos norte-americanos pobres.

A praga da fome naturalmente sempre existiu. Em um mundo que transborda de abundância é um escândalo vergonhoso o fato de 826 milhões de seres humanos sofrerem fome, e 36 milhões morrerem a cada ano por falta de comida.

Mas a crise deste 2008 traz características inéditas. Não atinge apenas os pobres, aquela parcela da população mundial que sobrevive abaixo do limite de pobreza, com menos de um dólar por dia.

A inflação, que duplicou os preços do trigo e do milho nos últimos dois anos e aumentou em 150% o preço do arroz desde o início deste ano, agora também resulta no sofrimento das populações das cidades dos países emergentes que tinham saído da crise de fome.

Isso pode ser comprovado pelas “convulsões do pão e do arroz”, que explodiram durante os últimos meses.

Há anos estávamos acostumados a considerar a subnutrição uma praga que se limitava principalmente à África subsaariana. Mas os protestos atuais se manifestam em todas as outras zonas do mundo, em regiões que se beneficiavam pelo recente crescimento econômico.

Do Cairo até Manila, de Jacarta até as cidades de Marrocos e da Jordânia, as manifestações e greves em protesto contra a carestia são um fenômeno das cidades. A fome que invade as cidades é política, e é mais desestabilizadora por atingir categorias sociais preparadas para a guerra.

Por causa de suas características totalmente inabituais, esta repentina situação encontrou os especialistas despreparados. Ninguém a havia previsto, porque esta crise não corresponde ao modelo de crise alimentar do passado.

O mundo já conheceu reaquecimentos periódicos da inflação, em decorrência da insuficiência de produtos agrícolas. As maiores dificuldades atingiam as populações pobres, e o motivo freqüentemente era uma grande redução das safras, provocada por desastres naturais como a estiagem e as inundações.

Em outros casos, a insuficiência de alimentos era resultado paralelo de crises de humanitarismo em países afetados por choques militares, guerras civis e extermínios étnicos.

Em todo o caso, o problema quase sempre era a insuficiência de alimentos disponíveis, provocada por uma “crise de oferta”, segundo definição usada pelos economistas. Hoje, pelo contrário, estamos diante de uma crise provocada pela demanda.

O verdadeiro novo dado foi a explosão do consumo de alimentos em regiões do mundo com forte crescimento econômico (China, Índia e não só). É exatamente esta tendência de longa duração que é forte ao ponto de alterar o equilíbrio mundial, e a ela vêm se somar ações e reações que agravam os problemas.

O economista Jeffrey Sachs resume assim as quatro razões da crise de alimentos: “A primeira é a produtividade cronicamente baixa dos agricultores nas nações mais pobres, pois não podem adquirir sementes e outros implementos agrícolas, havendo ainda o problema de acesso à irrigação. A segunda é a política equivocada de incentivo aos biocombustíveis nos EUA e na União Européia. A terceira é a mudança climática e a quarta é o aumento da demanda mundial por alimentos, provocado pelo aumento de rendimentos de gigantescas parcelas populacionais”.

As reações dos governos, até o presente momento, não têm tido outro resultado senão o de agravar a crise.

A crise atual testa a teoria do novelista indiano Amartya Sen, segundo o qual as democracias não geram crises alimentares porque permitem a livre expressão do protesto social, e assim reagem de forma mais eficaz.

Até agora, nesta crise alimentar, as democracias ainda estão cometendo erros gigantescos, como o subsídios agrícolas e até protecionismos de toda espécie.

A nova fome é, sob todos os pontos de vista, um fenômeno político. Não é gerada por eventos naturais, mas por cálculos equivocados, falta de previsibilidade, medidas demagógicas e prejudiciais.

Gallino: as responsabilidades do rico Ocidente

Há algum tempo, o então presidente do Banco Mundial James Wolfenson disse que “quando a metade do mundo fica assistindo televisão enquanto a outra metade morre de fome, a civilização já chegou ao fim”.

A crise alimentar que ocorre em dezenas de países pode elevar o total de seres humanos que morrem de fome em mais de um bilhão. A frase de Wolfenson ganha assim mais realismo.

Com um esclarecimento: a nossa metade do mundo não se limita a ficar olhando aquilo que está acontecendo. Pior, contribui para a materialização do cenário verdadeiro, que depois a televisão o apresenta para ser assistido.

Embora múltiplas razões conjunturais – as mudanças climáticas, a especulação, os chineses e indianos que comem mais carne, os milhões de hectares que são destinados não para a produção de alimentos e sim para os biocombustíveis – de alguma forma agravem a fome atual, não é de forma alguma uma fase descendente no círculo “produção de alimentos-mercado-consumo”.

Até se pode dizer que, por mais de duas décadas, a fome tenha sido produzida com critérios industriais pelas políticas norte-americanas e também européias.

A decisiva intervenção, que começou a ser alavancada com energia já na década de 1980, é responsável pela destruição dos sistemas agrícolas periféricos nos países em desenvolvimento.

Ricos em biodiversidade, adequados aos ecossistemas locais e tolerando facilmente as mudanças climáticas, os sistemas agrícolas periféricos poderiam alimentar melhor um número muito superior de seres humanos que vivem nessas regiões.

Mas era preciso que se desenvolvessem com intervenções que visassem o aumento da produtividade das culturas locais, com a escolha de tecnologias mecânicas e organizacionais harmonizadas com suas características seculares.

Ao contrário, os sistemas agrícolas periféricos foram eliminados da face da terra de forma sistemática.

Da Índia à América Latina, e da África à Indonésia e às Filipinas, milhões de hectares de terra foram levados – em poucos anos – das tradicionais culturas intensivas, praticadas por pequenas empresas agrícolas, para as culturas extensas, exploradas por grandes empresas produtoras de trigo.

A produtividade por hectare aumentou de forma impressionante, mas a vantagem disto – em grau elevado – foi parar nas tesourarias das grandes empresas do setor, como Monsanto (mais de US$ 1 bilhão em desempenho operacional em 2007), Cargill, General Mills, Archer Daniel Midland e Sidzeda (a única empresa não norte-americana deste grupo).

Por seu lado, os agricultores, após terem sido expulsos de suas terras, foram aumentar as favelas das grandes cidades. Ou pior, cometem suicídio por não conseguirem pagar as dívidas em que estão mergulhados, em seus desesperados esforços para competir no mercado com os preços que as empresas da indústria agrícola impõem às sementes, adubos e máquinas. Só na Índia, entre 1995 e 2006, 200 mil pequenos agricultores cometeram suicídio.

Sabe-se que o braço executivo da dissolução dos sistemas agrícolas periféricos foi o Bird, que com seus financiamentos para qualquer obra, barragem, rodovia e oleoduto servia a este objetivo.

E foi também o Fundo Monetário Internacional (FMI) que, com a imposição de correções estruturais nos orçamentos públicos (traduzida na privatização obrigatória da terra, água e serviços) como premissa para a liberação de empréstimos. Em seguida, veio a Organização Mundial do Comércio (OMC).

E por fim, principalmente no que diz respeito à África, há a União Européia e sua política agrícola que contribui para lançar milhões de agricultores africanos na miséria, porque funciona de tal forma, com subsídios e acordos bilaterais, que em muitas zonas da África os produtos da Bavária custam menos que os produtos locais.

Tudo isso conta ainda mais o forte apoio dos governos nacionais, que preferem manter boas relações com as multinacionais do setor agrícola a se preocupar com a manutenção de suas populações agrícolas.

O braço ideológico do mesmo argumento foram milhares de “economistas” e “analistas”, grande parte dos quais atua dependendo destas organizações e formulam, em inúmeras universidades, mudanças no princípio da Vantagem Comparativa.

Inicialmente (em 1817!), este princípio sustentava algo muito lógico: Se os britânicos são melhores em tecelagem do que na construção de portos, e os portugueses conseguem construir portos melhor do que fabricar tecidos, é interessante para ambos adquirir do outro país o produto que este sabe fabricar melhor.

David Ricardo, outro capitalista, estaria abalado se visse que este princípio, reincorporado em complicados e digitalizados modelos econométricos, atualmente é aplicado para comprovar que, ao agricultor de Senegal ou da Índia, é mais interessante plantar uma única espécie de legume ou verdura para o mercado internacional do que dezenas de alimentos agrícolas e frutas que deixariam a comunidade local satisfeita.

Quando milhares de sistemas agrícolas periféricos – em maior ou menor grau auto-suficientes – foram substituídos por um mega sistema agrícola mundial, que julgava certo e seguro se auto-regular, todos os demais acompanharam isto como uma seqüência natural.

São os pobres que pagam o ônus do sistema agrícola mundial. A crise alimentar não decorre de uma falta de alimentos. Aliás, a produção jamais foi tão abundante. É um problema de acesso aos alimentos.

Em outras palavras, um problema de pobreza, cujo nível foi tremendamente elevado por causa do sistema agrícola mundial.

Ziegler: revoluções por pão e arroz

As razões da atual crise de produção de alimentos geraram, sob vários aspectos, uma violação do direito à alimentação.

De fevereiro de 2007 ao mesmo mês do atual ano, o preço do trigo subiu 130% no mercado internacional, o do arroz 74%, o da soja 87% e o do milho 31%. Neste período, o preço dos produtos de primeira necessidade para as populações subiu, em média, mais de 40%.

Existem três aspectos a serem considerados no fenômeno, e devemos examiná-los. Antes de mais nada, países fortes como China, Índia, Egito e outros hoje estão em condições de oferecerem às suas populações os alimentos de primeira necessidade, embora isto não seja um processo de longo prazo.

O problema é que a maioria dos países mais pobres não têm a mesma possibilidade. O Haiti consome 200 mil toneladas de farinha e 320 mil toneladas de arroz por ano, e 100% da farinha consumida é importada, assim como 75% do arroz.

Entre janeiro do ano passado e janeiro deste ano, o preço da farinha subiu 83% e o do arroz 69% no Haiti. Seis dos nove milhões da população haitiana sobrevivem em condições de extrema pobreza.

Em um segundo nível de análise, os acordos para exportações prevêem que cerca de 90% dos produtos de primeira necessidade são vendidos free on board, com o custo do transporte onerando o comprador. Apenas alguns poucos são vendidos cost insurance and freight, com seguro e frete onerando o vendedor.

Isto significa, de um modo geral, que devemos somar o custo do transporte ao já altíssimo preço dos alimentos, o que agrava a situação se levarmos em consideração o preço do petróleo.

Muitos países da África Ocidental, como Mali e Senegal, por exemplo, importam até 80% de suas necessidades alimentícias do exterior, principalmente o arroz da Tailândia e do Vietnã.

Terceiro ponto: a iminente tragédia do aumento de preços agrava uma tragédia já em evolução, a da fome, que no ano passado matou seis milhões de crianças abaixo de 10 anos.

As estatísticas do Banco Mundial (Bird) revelam que mais de 2,2 bilhões de seres humanos sobrevivem em condições de extrema pobreza, e que o custo da alimentação atinge de 80% a 90% da renda familiar.

Na Europa, a analogia muda. Somente 10% a 15% da renda familiar é gasta na aquisição de alimentos. A situação dos pobres, muitos dos quais residem em centros urbanos, é consequentemente esta: devido aos gigantescos aumentos de preço, também estes – aos poucos – despencam no abismo da fome.

Qual é o motivo deste aumento? Um dos mais importantes é a especulação, a orgia na Bolsa de Commodities de Chicago, onde são definidos os preços de quase todos os alimentos do mundo.

Entre novembro e dezembro do ano passado, as bolsas de valores despencaram e mais de US$ 1 trilhão que havia sido investido nelas virou fumaça. Assim, a maioria dos grandes especuladores, como os que investiram em hedge funds, terminaram investindo em produtos agrícolas não industrializados e em produtos de primeira necessidade.

Em 2000, o valor comercial total dos produtos agrícolas, nas diversas bolsas de commodities do mundo, somavam quase US$ 10 bilhões. Em maio deste ano, o total já havia atingido US$ 175 bilhões!

Todos os produtos de primeira necessidade são controlados por oito grandes empresas multinacionais. A maior delas, que comercializa trigo, é a Cargill, de Minnesota, EUA. No ano passado, ela controlava 25% de todos os produtos agrícolas produzidos no mundo. Seu desempenho operacional no primeiro trimestre deste ano somou US$ 1,3 bilhão.

O segundo motivo da explosão de preços é a maciça destruição de produtos agrícolas, principalmente do milho, com o objetivo de produzir etanol e biodiesel. Em 2007, os EUA “queimaram” 138 milhões de toneladas de milho, 1/3 de sua safra anual, para transformá-lo em etanol. E a União Européia se move na mesma direção.

John Lipsky, o segundo na hierarquia do Fundo Monetário Internacional, sustenta que o uso de produtos agrícolas para a produção de etanol é responsável por 40% dos aumentos de preço dos produtos agrícolas.

Mas por este pavoroso aumento não são menos responsáveis os programas do Fundo Monetário Internacional e as políticas da Organização Mundial do Comércio. Por muitos anos estes dois organismos priorizaram a exportação de produtos como algodão, açúcar, café e chá, e isto gerou graves problemas para a segurança alimentar.

Esta equivocada política agrícola imposta aos países em desenvolvimento é, em grau elevado, responsável pela catástrofe atual. As populações interessadas não estão em condições de suportar custos ainda mais altos para os alimentos.

[EcoDebate, 07/08/2008]

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