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Artigo

Um ‘siri aventureiro’ no Rio São Francisco, artigo de João Suassuna


[EcoDebate] Em junho de 2000, tivemos a notícia que pescadores estavam capturando peixes de hábitos marinhos em municípios ribeirinhos do rio São Francisco. Este fato ocorreu quando fomos convidados a proferir conferência sobre o projeto da transposição, no I Encontro dos Promotores de Justiça da Região Sul de Alagoas, promovido pela Associação do Ministério Público de Alagoas – AMPAL. A notícia veiculada naquele encontro pode ter sido considerada, pelos mais descrentes, como mera “conversa de pescador”. Ocorre que retornando recentemente a Penedo, convidados pela mesma AMPAL, para nova conferência sobre o projeto, para surpresa nossa, fomos testemunhas de um fato inusitado: a aparição de um siri nas margens do Velho Chico, naquela localidade.

Ora, como todos sabem, o siri é um crustáceo de hábitos marinhos e, portanto, a sua presença em locais distantes de regiões estuarinas (Penedo está localizada, aproximadamente, a 40 km da foz do São Francisco) dá-nos margem a outros tipos de constatação, principalmente no que concerne à degradação do ambiente natural do rio, motivada, dentre outras causas, por uma gestão desastrosa de sua bacia hidrográfica. Este fato, além de ter sido testemunhado por alguns promotores de justiça presentes ao encontro, serviu de documentário à TV Gazeta de Alagoas, emissora que fazia a cobertura jornalística do evento.

O certo é que o “siri aventureiro” não estava em Penedo admirando a sua arquitetura colonial, nem, tampouco, a riqueza de seus fatos históricos. A sua presença ali foi motivada por uma série de fatores que, combinados, proporcionaram índices elevados de salinidade à água do rio e, portanto, adequados à sua sobrevivência. Se isso não fosse verdadeiro, o siri não estaria lá. E quais seriam esses fatores?

Aliado ao fato de o rio São Francisco estar freqüentemente registrando baixas vazões em sua foz (em fevereiro de 2008 foi de 1.100 m³/s, inferior, portanto, à vazão mínima estipulada pelo IBAMA, de 1.300 m³/s), conseqüência direta dos mais variados usos a que suas águas são submetidas – a exemplo da geração e transmissão de energia para o Nordeste e para outras localidades do país -, essas questões ainda estão sendo agravadas pelo uso consuntivo, tanto nos projetos de irrigação, como no abastecimento das populações, e pela expressiva evaporação reinante no ambiente.

Diante de tudo isso, está-nos parecendo que as incursões das águas do mar pelo interior do rio estão sendo maiores do que as incursões naturais das águas do rio em direção oposta. Em outras palavras, o rio São Francisco está perdendo a luta contra o mar, o ambiente está salinizando e a prova disso são a visita inesperada do siri a Penedo e a captura de peixes de hábitos marinhos em algumas localidades ribeirinhas do rio.

E as baixas vazões voltaram a ser recorrentes na foz do São Francisco. Essa assertiva foi devidamente socializada por nós em artigo publicado na internet, no ano em curso.

O que preocupa, na ocorrência das baixas vazões do São Francisco, é a possibilidade do abastecimento de populações utilizando-se água de qualidade inferior (salobra), devido à existência de teores de sais acima do recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Para se ter a grandeza dessa problemática, 60% da população da cidade de Aracaju são abastecidos com águas do rio São Francisco, coletadas através de uma adutora situada em Propriá (SE) – são águas de transposição -, em local muito próximo àquele em que foram registradas as pescarias de peixes de hábitos marinhos. É possível que a população de Aracaju já esteja sendo abastecida com águas portadoras de elevados teores de sais, e as denúncias sobre essa questão não devem demorar a vir à tona. Constatamos esse fato, em recente viagem de trabalho ao município de Propriá, com pernoite em Aracaju. O indício maior de nossa certeza, com relação à qualidade das águas sergipanas, foi a dificuldade que tivemos em produzir espuma com o sabonete do hotel. Nesses casos, os sais em proporções elevadas na água, “cortam” as ações do sabão, fato este muito comum com as águas oriundas do embasamento cristalino da região semi-árida nordestina, sabidamente portadoras de elevados teores salinos.

Exemplos inusitados como esses, em um momento no qual o projeto da transposição do São Francisco mal saiu do papel, aliados ao descompromisso dos governadores nordestinos quanto à condução desse projeto, nos dão a certeza de que outros fatos na bacia do rio surgirão e com possibilidades de desdobramentos mais impactantes, não só em relação ao ambiente natural sanfranciscano, mas, e sobretudo, à vida da população do nordeste setentrional. Só nos resta ficar na torcida para que existam saídas técnicas viáveis para a solução desses problemas.

Recife, 04 de agosto de 2008.

João Suassuna – Engº Agrônomo e Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, colaborador e articulista do EcoDebate

[EcoDebate, 05/08/2008]