EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Artigo

Do Riacho Grande a Areia Grande: 30 anos de resistência camponesa à grilagem e aos agrocombustíveis, artigo de Ruben Siqueira

[Ecodebate] Farsa e tragédia, a história da terra no Brasil é a da repetição dos conflitos agrários, suas formas, desmandos e violências. Mesmo depois de “tanta reforma agrária”, “feita” por todos os governos desde o general Castelo Branco até o ex-retirante nordestino e ex-operário Lula. O quadro fundiário se modifica cosmeticamente aqui e ali para continuar o mesmo: a terra sob controle de antigos latifundiários ou modernos empresários, vedada ao acesso dos camponeses sem terra ou com pouca terra. Agora proibida a comunidades tradicionais. O método, o mesmo, da grilagem (apropriação fraudulenta da terra com base em documentos falsos) e da violência, privada ou estatal ou as duas combinadas. A resistência camponesa e a pressão da sociedade não conseguem alterar substantivamente esta “sina”. O afã do agronegócio e o mais recente boom dos agrocombustíveis (chamá-los “bio” é meia verdade) só fazem recrudescer o quadro e a conflitividade.

Há 30 anos, em 1978, auge da Ditadura Militar, 56 famílias de posseiros do Riacho Grande, em Casa Nova, Bahia, 572 km de Salvador, habitantes do lugar desde meados do século XIX, viram-se de uma hora para outra sob o impacto da barragem de Sobradinho. O reservatório regularizou a vazão do rio São Francisco para a produção de energia elétrica e a irrigação agrícola. Mas inundou 412 mil km2 e expulsou cerca de 57 mil posseiros ribeirinhos e catingueiros (somados à população relocada de quatro cidades, foram atingidas 72 mil pessoas). Menos de um ano depois chegaram ao Riacho Grande os tratores, os jagunços e a PM da Agroindustrial Camaragibe. Vinda do Rio de Janeiro, vinculada à gente do todo-poderoso “czar da economia” Delfim Neto, a empresa captara recursos do Proálcool para produzir combustível à base da mandioca que plantaria numa área de 30 mil hectares de quatro fazendas “compradas” na região. A comunidade resistiu inédita e bravamente e venceu, conseguindo depois os títulos de propriedade de suas terras. Mas não impediu a instalação da empresa na vizinhança, às margens do lago de Sobradinho. Intencionalmente ou não, a empresa faliu e o credor Banco do Brasil ficou com a hipoteca das terras e das instalações industriais. O caso fazia parte do conhecido “escândalo da mandioca”.

Anos depois, as comunidades camponesas vizinhas, que lá habitam há mais de 100 anos, com o abandono da área voltaram a utilizá-la. Com o tempo haviam-se recuperado as matas e a vida natural intensa que tem a caatinga. Além do Riacho Grande, as comunidades de Melancia, Jurema e Salina da Brinca, em comum acordo, vieram soltar seus animais, coletar lenha, plantas medicinais e criar abelhas “oropa”. Atualmente, 300 famílias possuem ali cerca de 15 mil cabeças de caprinos e três mil caixas de abelhas, estas com apoio do mesmo Banco do Brasil no valor de 72 mil reais. A área passou a ser denominada “Areia Grande” e reconstituiu-se em um “fundo de pasto”.

“Fundos de Pasto”

Os “fundos de pasto” são áreas tradicionais no Semi-árido, de posse coletiva e de uso comum, para pastoreio de caprinos (principalmente), por famílias de uma mesma comunidade ou de comunidades próximas, de maneira complementar a agricultura de subsistência, que é feita em roças cercadas (daí a expressão “fundos”). Remontam à época do fracionamento das sesmarias em fazendas e ocorrem em “terras devolutas”, aquelas que não foram requeridas por particulares após a Lei de Terras de 1850 e, “devolvidas”, passaram à propriedade da União que as repassou aos Estados, logo após a criação da República.

Originalmente presentes em todo o Semi-árido e também no Cerrado (onde recebem o nome de “fechos de pasto” e se destinam ao gado), hoje os “fundos de pasto” estão restritos à Bahia. A partir da Constituição Estadual de 1989, o governo deveria proceder à regularização destas áreas na forma de “direito real de concessão de uso” em favor das comunidades que as utilizam organizadas em “associações de fundo de pasto”. Existem no estado cerca de 300 destas associações, onde vivem 20 mil famílias, mais de 100 mil sertanejos; regularizadas até agora apenas umas 60, pela CDA – Coordenação de Desenvolvimento Agrário, órgão responsável do estado.

Reconhecidos como “comunidade tradicional”, os “fundos de pasto” conseguiram assento na Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável destas comunidades. Para o povo catingueiro, os “fundos de pasto” são “nosso jeito de viver no sertão”. E uma Articulação Estadual representa seus interesses frente ao Estado e a sociedade.

Com o recente avanço da grilagem e das empresas agrícolas, muitas estrangeiras, nos Cerrados baianos, também aí as comunidades “geraiseiras” (habitantes dos Gerais, mais ou menos o mesmo que Cerrados) buscam-se valer dos “fechos de pasto” como defesa e proteção de suas áreas comuns de pastoreio e do seu modo de vida tradicional ameaçado. Devem provocar a retomada de iniciativas de regularização paradas em 1989, desde que a Constituição Estadual também as incorporou como possibilidade e direito!

Tudo outra vez

No dia 6 de março deste ano, um grupo de homens da Polícia Militar, da Polícia Civil, um identificado como da Polícia Federal e outros do temível grupo da PM especializado no combate ao plantio de maconha invadem a Areia Grande, munidos de armas e tratores, destroem casas e chiqueiros de cabras, picotam os arames das cercas, exigem a retirada das colméias e prendem o camponês Raimundo Braga das 7h da manhã às 6h da tarde. Uma mulher acabou sofrendo aborto em conseqüência. Que documento trazem a “respaldar” a ação? Um “mandato de imissão de posse”, não “de reintegração”, concedido pelo juiz de Casa Nova, Eduardo Ferreira Padilha.

Os beneficiários são Alberto M. Martins, diretor do SAAE de Juazeiro/BA, e Carlos Nizam L. da Silva, empresário em Jacobina/BA. O primeiro seria sócio da Qualitycal Indústria e Comércio Ltda e diretor da Sane Engenharia Ltda, envolvida em escândalo no município de Uauá, e foi condenado, em 2004, pelo Tribunal de Contas da União e Tribunal de Contas dos Municípios (TCM) da Bahia, por acumular o salário de servidor federal e o de Secretário de Obras do Município de Juazeiro (BA), durante dois anos. O segundo é conhecido especulador imobiliário e o maior intermediário de mamona na região de Jacobina, Mirangaba e Irecê para produção de “biodiesel”.

Ao contestar a ação arbitrária, os advogados da AATR – Associação dos Trabalhadores Rurais da Bahia começaram a desvendar a trama. A dívida da Camaragibe com o Banco do Brasil, algo em torno de 40 milhões de reais atualmente, foi “comprada” por 639 mil reais, numa agência do BB em Nova Iguaçu/RJ, pelos empresários Alberto e Carlos Nizam. Com poderes assim adquiridos de negociação, eles quitam a dívida milionária dos herdeiros por R$ 700 mil, e são pagos com os imóveis contíguos supostamente pertencentes à Agroindustrial – as Fazendas Lages, Baixa do Umbuzeiro, Urecê e Casa Nova, exatamente onde estão localizados os “fundos de pasto” da Areia Grande. São “laranjas”; de quem? Para que? Fala-se na região que por trás há gente de “importância nacional” e grande empresa irá plantar agrocombustíveis, como cana-de-açúcar e mamona, e frutas de exportação…

Respaldadas por audiência acontecida em Salvador, com presença das várias autoridades implicadas e do Ouvidor Agrário Nacional, Gercino Silva, cerca de 300 pessoas das comunidades acampam à entrada da área, impedem a construção de guaritas e forçam a retirada de tratores e homens armados. A preocupação é impedir maiores danos e pressionar pela justiça e pelo seu direito como posseiros e da área como “fundo de pasto”. Sofrem nova invasão, por homens encapuzados e fortemente armados, que atiram na direção dos posseiros, agridem-nos verbal e fisicamente, inclusive com tições de fogo e a mulheres e crianças. Quatro dessas são usadas pelos jagunços como escudos humanos para se defenderem contra a reação dos posseiros. Barracos são queimados. Uma assessora, de uma ONG da região, é espancada e tem sua máquina fotográfica quebrada porque com ela registrava as violências. Horas depois chegam PMs, que para surpresa geral conversam amigavelmente com os jagunços encapuzados. Estes só fogem quando a Polícia Federal chega para averiguar denúncias; um deles é preso por porte ilegal de arma e são apreendidos dois automóveis que usavam.

Dias depois, o juiz substituto, Edinaldo Fonseca, concede reintegração de posse às famílias, mas estas afirmam não terem segurança suficiente de retornar a área. Nova audiência com o Ouvidor Agrário Nacional, desta vez pública e em Casa Nova, resultou na revogação pelo juiz titular de sua primeira decisão, que beneficiava os empresários. Os posseiros saem pelas ruas da cidade festejando a decisão. Também a determinação de que o Incra e a CDA devem vistoriar a área, fazer estudos e revisão de processos para regularização do “fundo de pasto”. Porém, ao se fazer cumprir o mandado, o documento se referia apenas aos 11 posseiros que assinam a ação. Os demais foram impedidos de retornar à área.

Em 1º de abril, como parte da jornada de lutas do Dia da Mentira da Transposição do São Francisco, 500 pessoas das comunidades da Areia Grande e de outras acampam na praça central de Casa Nova e dentro da prefeitura municipal. Reivindicam que a polícia acompanhe a reintegração de posse, retire e prenda os pistoleiros; que todos posseiros possam retornar à área; os prejuízos sejam indenizados e se apresse a regularização do “fundo de pasto”.

No dia 3, os posseiros retomaram a área e suas atividades. Até quando terão paz? Por toda a Bahia e país afora comunidades tradicionais têm sido assediadas por grileiros testas-de-ferro de empresas agrícolas e mineradoras. O governo do estado, do petista Jaques Wagner, lança o “Bahiabio”, oferecendo atrativos para que empresários venham investir em agrocombustíveis. Estão sendo disponibilizados 870 mil hectares para cana destinada à produção de etanol e 868 mil hectares de oleaginosas para “biodiesel”. Só na bacia do São Francisco estão sendo disponibilizados 510 mil hectares para cana. Para serem irrigados com água da bacia? Haverá para tanto? O Bahiabio disputa com a transposição?

Não será mera coincidência que isso se dê ao mesmo tempo em que o governo federal recua na política de regularização dos territórios reivindicados por povos e comunidades tradicionais… O Judiciário, como quase sempre, facilita para esses poderosos interesses. A imobilização destas áreas, por força da aplicação da lei, constituem em empecilhos à sanha avassaladora do capital. Por isso mesmo, essas comunidades se revestem de nova importância, como guardiãs dos bens naturais restantes – que até aqui bem ou mal souberam usar e preservar – e produtoras de alimentos, cada vez mais difíceis pela concorrência com os agrocombustíveis. Nosso futuro depende também destas comunidades de resistência. É nosso dever apoiá-las.

* Mestre em Ciências Sociais, agente da CPT – Comissão Pastoral da Terra / Bahia, atua na bacia do São Francisco.

[EcoDebate, 23/07/2008]