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Notícia

Ministro defende titulação coletiva de área ocupada por quilombolas no Rio. Marinha diz que área ocupada por quilombolas é estratégica

O ministro da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Edson Santos, disse que a comunidade remanescente de quilombo da Ilha de Marambaia, no litoral sul fluminense, terá o seu território demarcado. O título, segundo ele, sairá em nome de toda a comunidade e não apenas das famílias. Por Isabela Vieira, da Agência Brasil.

“Vai sair [a titulação], vai sair”, disse o ministro Edson Santos à Agência Brasil esta semana, ao participar de evento sobre o Mercosul no Rio de Janeiro. “Acho que a titulação será coletiva, não há nada que indique o contrário”.

Líder comunitária Vânia Guerra defende demarcação de comunidade remanescente de quilombo
Repórter Vladimir Platonow: Ilha da Marambaia (RJ) – Líder comunitária Vânia Guerra defende demarcação de comunidade remanescente de quilombo

A declaração de Santos contraria o temor da comunidade de que a demarcação, a cargo do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), fosse feita em ilhas, abrangendo apenas o terreno da casa dos moradores, muitas de pau-a-pique e sem luz elétrica, deixando de fora áreas comuns.

No início de abril, logo após visita do ministro à ilha, a comunidade divulgou nota criticando a posição dele em relação ao assunto. Pelo documento, Santos teria dito “ser impossível” a posse coletiva da área, o equivalente a um quinto da ilha.

O ministro, no entanto, disse que foi mal-interpretado e defendeu uma demarcação que dê condições de as famílias crescerem e manterem atividades de geração de renda. Enquanto a titulação – parada por determinação da Justiça – não é finalizada, ele promete melhorias no local.

“A Seppir vai coordenar a implementação de serviços de saúde, educação, fornecimento de energia elétrica, ao passo em que vamos fazer entendimentos sobre a delimitação da área da comunidade quilombola.”

A demarcação de Marambaia está parada por conta de divergências judiciais. Na última decisão, a Justiça Federal suspendeu o processo no Incra acatando pedido da União. No caso, o desembargador Sergio Feltrin alegou que os quilombolas poderiam colocar em risco as atividades militares na ilha e o meio ambiente.

Os moradores de Marambaia disputam com a Marinha a demarcação de seu território, que já foi reconhecido pela Fundação Cultural Palmares. Os militares mantêm um centro de treinamento na ilha e defendem o local como estratégico para atividades navais.

Sem consenso, o impasse foi parar na Advocacia-Geral da União (AGU), que ainda não se pronunciou sobre o caso. O procurador responsável pelo processo, Daniel Levy, não foi encontrado para dar declarações.

Marinha diz que área ocupada por quilombolas é estratégica

O caráter estratégico é o motivo defendido pela Marinha para não ceder aproximadamente um quinto da Ilha da Marambaia aos quilombolas. Localizada na Baía de Sepetiba, área que abriga os principais projetos econômicos do estado, como Porto de Sepetiba e Companhia Siderúrgica do Atlântico, a ilha também está próxima das usinas nucleares de Angra dos Reis. Por Vladimir Platonow, da Agência Brasil.

No local há, inclusive, a possibilidade de que se construa uma futura base de submarinos nucleares. De acordo com o Comandante-Geral do Corpo de Fuzileiros Navais, almirante de esquadra Álvaro Augusto Dias Monteiro, as novas gerações de submarinos – nucleares ou convencionais – são consideradas decisivas para a segurança nacional e já não podem mais ficar fundeadas na antiga base da Ilha do Mocanguê, próximo à Ponte Rio-Niterói, na Baía de Guanabara.

“Desde que isso [submarino nuclear] seja confirmado como projeto do estado brasileiro, a Baía de Sepetiba é um dos locais adequados à instalação de uma base de submarinos, nucleares ou mesmo convencionais de maior porte. A nossa base atual é dentro da Baía de Guanabara e futuramente pode não ser mais conveniente a permanência de todos esses barcos ali. Para nós, Marambaia é de uma estratégia fundamental”, explicou o militar.

Entre os motivos que tornam a base do Mocanguê obsoleta está a dificuldade de movimentação e saída rápida da Baía de Guanabara, que possui um tráfego intenso de embarcações, além da profundidade menor, tornando um submarino mais vulnerável em caso de ataque.

Segundo o almirante, Sepetiba tem um canal natural com 50 metros de profundidade, o que facilita submersão e movimentação imediata para alto-mar. “Marambaia domina a entrada desse canal, então é preciso preservá-la para que ela possa cumprir esse papel”, destacou Monteiro.

Para ele, se não forem tomados cuidados, a ilha pode atrair um grande número de novos moradores e sofrer um rápido processo de favelização.

“No caso da Ilha Grande e Angra dos Reis, a pressão demográfica foi muito grande e o Poder Público não foi competente para impedir a degradação. Na Marambaia, o ambiente está preservado, tanto pela Marinha quanto pelos moradores. Temo que, se isso for titulado de maneira imprecisa, a comunidade não tenha poder político suficiente para impedir a explosão demográfica”, alertou o militar.

A líder comunitária Vânia Guerra afirma que a demarcação da área como quilombo em nada atrapalharia os planos da Marinha em construir na região uma base de submarinos. “Nós sempre vivemos ali, mesmo antes da Marinha chegar e nunca atrapalhamos em nada.”

Moradores da Marambaia defendem permanência da Marinha

O debate sobre a demarcação de uma área quilombola na Ilha da Marambaia expõe a delicada relação da Marinha e dos moradores, a maioria descendente de escravos.

Embora lideranças comunitárias defendam o reconhecimento de parte da ilha como quilombo, boa parte dos moradores reconhece o trabalho dos militares e defende sua presença.

Distante cerca de uma hora do continente, a comunidade depende do transporte gratuito oferecido em um barco da Marinha, que também oferece serviço de saúde e fornece luz elétrica através de um gerador a óleo para parte da ilha, incluindo a escola.

No posto de saúde a consulta é de graça e praticamente não há filas. Para a aposentada Lúcia Alves Soares, 68 anos, o serviço é essencial: “Se a gente tem uma dor, é aqui que a gente se socorre”. Ela diz que nasceu na ilha, assim como seus pais e avós, e lembra que, ainda criança, ouvia falar na existência de um quilombo: “Os meus pais falavam que tinha”.

Ramiro Benedito Santos, de 77 anos, defende a permanência da Marinha na região: “Desde que a Marinha chegou aqui, melhorou muito. Se ela saísse, tudo ia piorar”. Nascido em Marambaia, o pescador aposentado conta que seus avós eram escravos, naturais da própria ilha. Porém, ele diz não se lembrar de ter ouvido falar sobre a existência de quilombos na região.

A falta de memória sobre a existência de um quilombo no lugar também é um problema para Ignes Rosa, de 92 anos, que conta ter sido cozinheira do ex-presidente Getúlio Vargas por duas vezes. Ela lembra que o avô nasceu na ilha, mas que a avó veio da África.

Já os jovens da ilha destacam o desafio de achar trabalho e educação mais qualificados. Aos 20 anos de idade, cursando o primeiro ano do ensino médio, Rafael Guerra Saturnino, filho da líder comunitária Vânia Guerra, sonha em terminar a escola e fazer faculdade. Até este ano, a única escola da ilha só oferecia até o nível fundamental, mas agora passou a contar com um supletivo noturno de nível médio.

“Aqui não tem muita opção, além da pescaria. Além disso, todo mundo tem de morar agarrado. Se eu casar, tenho de fazer um puxado na casa da minha mãe, igual fez a minha irmã. Se saísse a titulação, ia ser bem melhor. É difícil, mas a gente vai lutando devagarzinho”, diz ele, referindo-se à proibição imposta pela Marinha de que sejam erguidas novas casas no local.

[EcoDebate, 22/07/2008]