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Os militares e a questão indígena. Entrevista especial com Paulo Maldós

“Para os militares, soberania é povoar, como fizeram na ditadura, onde a Amazônia era terra para homens sem-terras”, segundo Paulo Maldós, o assessor do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, ele falou sobre a resistência dos militares em defender a União e a Constituição, que prevêem aos índios o direito de manter a sua cultura em uma terra demarcada e homologada. Para as Forças Armadas, apenas integrando os índios à sociedade nacional é que o país poderá se desenvolver e ter soberania sobre suas terras. “Culturas peculiares e singulares, com identidade e territórios próprios, ameaçam a unidade nacional, segundo os militares”, afirmou Maldós.

No próximo mês, o Supremo Tribunal Federal deve decidir sobre Raposa Serra do Sol, ou seja, se permite que os invasores continuem a explorar o território ou se os retira, deixando as terras aos índios. “Percebemos que o STF está sendo muito bombardeado por informações incorretas sobre a situação de Raposa Serra do Sol. Ele não tem um conhecimento à altura daquela história, daquela complexidade cultural para tomar decisão. Ele está muito submetido aos militares, e, por isso, é bombardeado com informações falsas há anos sobre Raposa Serra do Sol”, conclui ele.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são os principais resquícios da ditadura que nós vivemos ainda hoje?

Paulo Maldós – Podemos ver principalmente a atitude pouca cidadã da polícia na relação com a sociedade, com os movimentos sociais. O Rio Grande do Sul é um exemplo atual disso. No geral, as polícias militares estaduais sempre foram vinculadas às Forças Armadas. Desse modo, ainda estão muito presentes, hoje, questões como a violência, o desrespeito, atitudes de preconceito com relação aos mais pobres e a truculência com relação aos movimentos sociais.

IHU On-Line – Por que ainda hoje, depois de tantas barbáries cometidas contra os brasileiros durante a ditadura, as concepções das Forças Armadas ainda prevalecem sobre a política ambiental do país, principalmente no que se refere à Amazônia?

Paulo Maldós – Devido à história das relações das Forças Armadas, particularmente o Exército, com a região amazônica, elas se sentem donas dessa questão, como se tivessem uma autoridade maior. Isso porque a região amazônica tem uma grande faixa de fronteira. Então, percebemos que, por exemplo, lá em Roraima o Exército fica extremamente irritado com qualquer tipo de questionamento sobre sua forma de lidar com as políticas ambientais e sociais. É como se tivesse o direito adquirido de dar a linha da relação da sociedade com o meio ambiente, com a fronteira, com as comunidades ribeirinhas e indígenas, ou seja, tudo que se refere ao meio ambiente e comunidades tradicionais e indígenas. É como, enfim, se tivesse a verdade e ponto.

IHU On-Line – E o que está, verdadeiramente, em jogo em Raposa Serra do Sol?

Paulo Maldós – O que está em jogo é simplesmente o interesse sobre as riquezas que eventualmente possam existir no interior daquela reserva e também sobre aquelas existentes em outras áreas indígenas em faixas de fronteiras. Interessa a eles desconstituir a demarcação já feita, porque isso abre precedentes para outras desconstituições. Então, conhecemos as riquezas da região amazônica e da Raposa Serra do Sol, as quais, inclusive, já foram pesquisadas na época da ditadura pelo governo estadunidense. São riquezas minerais, florestais, hídricas, que foram mapeadas pelos Estados Unidos com a permissão do governo militar da época. Os militares têm conhecimento de todas elas e nunca admitiram que os territórios indígenas fossem identificados e demarcados e ficassem nas mãos da União, com todos os critérios estabelecidos pela Constituição de como usar essas riquezas.

A visão militar é de entrega do patrimônio público para a exploração, querendo desenvolvimento a qualquer custo e ritmo. Para os militares, soberania é povoar, como fizeram na ditadura, onde a Amazônia era terra para homens sem-terras. Durante a ditadura, eles levaram camponeses pobres do Sul para lá e chamaram isso de vivificar. Hoje, querem povoar a região com pessoas e empresas de qualquer maneira, porque isso seria assegurar o desenvolvimento. O que eles verdadeiramente querem, no entanto, é entregar os territórios indígenas para as grandes empresas, porque acham que isso está garantindo a presença da sociedade nacional ali. Então, o que está em jogo é que os militares querem que os índios sejam integrados à sociedade.

IHU On-Line – Para alguns militares, o usufruto pelos índios de terras que ocupam milenarmente ameaçaria a soberania nacional. O intuito deles é totalmente nacionalista, ou seja, utilizar as riquezas e integrar os índios à sociedade em prol do país?

Paulo Maldós – Então, com relação às terras indígenas, de maneira geral, os militares não vêem com bons olhos, porque não gostaram dos artigos 231 [1] e 232 [2] da Constituição Federal. Esses artigos reconhecem aos índios o direito aos seus territórios, formas próprias de vida, projetos próprios enquanto povos diferenciados no interior do Estado nacional. Eles não gostaram disso e nunca aceitaram a Constituição brasileira, no que diz respeito aos direitos indígenas. Eles também têm uma leitura equivocada dos instrumentos internacionais que o Brasil assinou, no caso a Declaração da ONU dos direitos dos indígenas e a Convenção 169 da OIT [http://www.institutoamp.com.br/oit169.htm].

A visão deles é essa: integrar os povos indígenas à sociedade nacional. Em 1967, a ditadura brasileira tinha um projeto de até o ano 2000 não ter mais índios no Brasil. Isso estava claro em um documento que vazou na época e causou um escândalo muito grande no interior do país e lá fora, pois essa era a meta do governo. Na verdade, eles mantiveram essa concepção de zerar os povos indígenas no Brasil, integrando-os como camponeses pobres. No geral, a visão dos militares é que as terras indígenas não devem ser dos povos indígenas.

Com relação à soberania, me parece que essa concepção militar de que qualquer comunidade que tenha uma identidade própria, que não é coincidente com a hegemonia cultural do país, é ameaçadora. Qualquer diferenciação cultural é, portanto, ameaçadora para eles. Os militares estadunidense estão desenvolvendo toda uma concepção de que, na América Latina, as comunidades culturais diferenciadas são perigosas. É um balanço que eles fazem do neoliberalismo, por ter devastado as sociedades latino-americanas. Culturas peculiares e singulares, com identidade e territórios próprios, ameaçam a unidade nacional, segundo os militares. Isso vem do próprio Pentágono. Se antes a classe operária era ameaçadora ao status quo, hoje são os povos indígenas a grande temeridade do futuro. Isso veio reforçar essa visão nacional de que aqui também temos povos ameaçadores, que são as comunidades com identidade própria, arraigada e milenar, e que no limite, na medida em que têm seus territórios demarcados, irão se sentir senhores desses territórios e, dentro de décadas, reivindicá-los como próprios. Então, para os militares, o melhor é desestruturá-las como comunidades, dissolvê-las e impedir que esses territórios sejam demarcados.

No debate sobre Raposa Serra do Sol com os militares, eles sempre falam: “É isso agora, mas daqui a algumas décadas eles vão queres ser donos daqui”. Isso é uma fantasia! No entanto, muitos pensadores, até no Pentágono, têm essa questão como certa. Os índios, hoje, ameaçam a estabilidade dos governos e do capitalismo.

IHU On-Line – E como você teve acesso a essas pesquisas, por exemplo, feitas pelo Pentágono?

Paulo Maldós – As intenções dos militares brasileiros descobri através da internet, de textos de jornal e informações que recolhemos em Roraima, conversas com os índios, com missionários, nas dioceses. A Polícia Federal fez muitos levantamentos e identificou toda a presença da Agência Brasileira de Informações em Roraima, produzindo muitas informações. Tivemos acesso a algumas delas. Sobre a questão do Pentágono, há estudiosos que pesquisam a questão da militarização da América Latina e investigam a relação dos militares e territórios no Terceiro Mundo. Essas são algumas fontes.

IHU On-Line – Onde podemos chegar com essa intervenção do Exército em relação às terras indígenas?

Paulo Maldós – O Exército precisa se colocar no seu lugar constitucionalmente. No momento, ele está abusando, transgredindo o seu lugar. No caso de Raposa Serra do Sol e no caso geral da política indigenista, o governo vem buscando rigorosamente aplicar a Constituição, mas com muita lentidão. Do ponto de vista do Cimi, este governo, como os governos anteriores, é extremamente lento nos processos de identificação, demarcação e homologação das terras indígenas. A Constituição de 1988 estabeleceu um prazo de cinco anos para que todos os territórios indígenas fossem demarcados no país. Então, isso seria em 1993. Imagina! Ainda faltam algumas centenas de terras para serem identificadas e demarcadas. O governo, como falei, vem sendo extremamente lento, mas onde se move vem fazendo conforme o critério constitucional.

Então, as Forças Armadas precisam se colocar no seu lugar na cadeia de comando deste país, pois não vivemos mais na Ditadura Militar. Elas devem acatar a política governamental. Mas o que elas têm feito é se insurgir. Você vê general após general dando declarações à mídia dizendo que os índios devem ser integrados. Isso significa que eles têm idéias francamente anticonstitucionais na maior tranqüilidade. O presidente do Clube Militar simplesmente afirmou, numa entrevista, que os artigos da Constituição estão errados. Onde já se viu isso? Um militar com essa irresponsabilidade diz que a Constituição está errada e nada acontece com ele? Outro general foi ao Jornal Nacional dizer que o governo tem uma política indigenista equivocada e nada aconteceu com ele também. O que estamos vivenciando é um abuso! Os generais, as Forças Armadas e o Exército devem se colocar na posição que a Constituição definiu para eles. Há uma cadeia de comando neste país e eles precisam acatar isso. Como cidadãos, podem mudar o governo votando em outras opções, outros presidentes, mas não ficar se insurgindo contra a Constituição.

IHU On-Line – Em sua opinião, o que o STF deve decidir em relação às terras de Raposa Serra do Sol?

Paulo Maldós – Esse é outro problema, porque notamos como o poder Legislativo está muito desprestigiado. O governo federal é muito frágil em tomar decisões e implementá-las. O STF acaba tomando para si um lugar que não é dele, ou seja, ocupando espaços de outros na tomada de decisão. Percebemos que o STF está sendo muito bombardeado por informações incorretas sobre a situação de Raposa Serra do Sol. No entanto, ele não tem um conhecimento à altura daquela história, daquela complexidade cultural para tomar decisão. O STF se submete excessivamente aos militares, e, por isso, é bombardeado com informações falsas há anos sobre Raposa Serra do Sol. Então, percebemos todos muito sensibilizados por essas teses, por falta de informações próprias e pela pressão brutal por parte dos militares. Os militares pegaram Raposa Serra do Sol por uma questão de honra, já que perderam Ianomâmi [3], na visão deles. Por isso eles vêm bombardeando o Judiciário, há anos, com informações falsas. Estamos muito preocupados!

Uma prova concreta dessa falsa de informações foi essa viagem que o presidente do STF fez junto com dois ministros, de avião, de um dia, à Raposa Serra do Sol. Sem comunicar as partas envolvidas no conflito, eles foram até lá quase por conta própria, com o avião da FAB, ou seja, só com os militares sabendo. Numa área daquele tamanho, com aquela complexidade cultural e econômica, é um tanto pretensioso você viajar de avião, ter alguns contatos e achar que isso pode esclarecer muita coisa. O STF tem informações precárias e muitas falsas e está sendo muito pressionado para que se tome uma posição favorável em relação à Roraima. Temos receio por isso.

Não sabemos qual será a resolução deles e estamos preocupados pela desigualdade em relação a essa situação. Estamos preocupados com o que a decisão do STF pode significar, pois existem informações, através dos missionários do Cimi em todo o país, e percebemos como isso repercute em diferentes regiões. Há fazendeiros em Santa Catarina dizendo que, quando sair o resultado em Raposa Serra do Sol, eles vão partir para cima dos indígenas deste estado. No Mato Grosso do Sul, está acontecendo a mesma coisa, assim como no Nordeste. Raposa Serra do Sol virou um símbolo, um marco jurídico, pois mexer com ela vai enfraquecer um processo em que os índios têm usufruto daquela terra. É importante enfatizar isso: a terra é da União, e os índios têm apenas usufruto dela. Se a decisão não for favorável aos índios, voltaremos a uma situação de antes da Constituição. A situação seria a de integrar os índios na sociedade nacional e desrespeitar seus direitos históricos. É voltar à perspectiva integracionista e, do ponto de vista antropológico e cultural, esse é um processo de genocídio.

Notas:

[1] Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º – São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2º – As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. § 3º – O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.§ 4º – As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. § 5º – É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, ad referendum do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. § 6º – São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé. § 7º – Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.

[2] Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo

[3] A Terra indígena ianomâmi: foi homologada pelo presidente Fernando Collor em 25 de maio de 1992. Em sua maior parte, o território está coberto por densa floresta tropical úmida. As aldeias, que podem ser constituídas por uma ou várias casas, mantêm entre si vários níveis de comunicação, desenvolvendo-se relações econômicas, matrimoniais, rituais ou de rivalidade, percorrendo distâncias que podem atingir um raio de 150 km. O Pico da Neblina está localizado dentro da Terra Indígena Ianomâmi e do Parque Nacional do Pico da Neblina, na fronteira do Brasil com a Venezuela. Essa área tem sido invadida desde o fim dos anos 1980 por garimpeiros atraídos pelas reservas de ouro, cassiterita e tantalita

(www.ecodebate.com.br) entrevista publicada pelo IHU On-line, 08/07/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

[EcoDebate, 09/07/2008]