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Sombras da ditadura militar pairam sobre Raposa Serra do Sol, artigo de Paulo Maldos

O problema grave de nosso tempo, com relação aos direitos do homem, não é mais o de fundamentá-los, e sim o de protegê-los. Com efeito, o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.” Norberto Bobbio em “A Era dos Direitos”.

Na história recente da América Latina, a maioria dos governos militares não institucionalizados só aceitam retirar-se do poder em troca de certas garantias. Tratam de fixar as regras do jogo. Mais ainda, quando a situação o permite, não vacilam em exigir um lugar para as instituições militares na ordem constitucional democrática e o direito permanente de supervisionar as decisões políticas.” Alain Rouquié em “O Estado militar na América Latina”.

Os militares brasileiros, de maneira geral, passaram da ditadura para a democracia formal sem admitir a investigação nem a avaliação de suas práticas ao longo dos 25 anos em que exerceram o poder absoluto no país e sem admitir rever qualquer uma dessas mesmas práticas, nem as concepções que as embasam. Prova disso é a permanente ausência de iniciativas concretas, devido a resistências castrenses, de se abrir os arquivos militares do período ou mesmo de se realizar uma definitiva busca dos corpos dos desaparecidos políticos.
Sempre que se toca no tema, por exemplo, quando do lançamento da publicação “Direito à Memória e à Verdade”, pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, em 2007, os integrantes das Forças Armadas manifestam seu desagrado e reagem de forma pública, destilando o mesmo antigo ódio contra os mortos e desaparecidos e defendendo, no limite, a própria legitimidade da tortura e dos desaparecimentos. Para estes dirigentes militares, diversos ministros e integrantes do atual governo não passam de “ex-terroristas e subversivos”, indignos de confiança, quanto mais de respeito ou obediência. Com relação ao próprio presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, sua relação é de discreto desprezo, como alguém que se deve aturar, até que deixe o cargo, mas não acatar integralmente suas decisões políticas, e, sim, resistir àquelas consideradas “inaceitáveis”.

Políticas e direitos “inaceitáveis”

Entre as “políticas inaceitáveis” estão as tentativas de abrir os arquivos militares, de busca dos desaparecidos políticos, de esclarecimento das condições em que desapareceram, por um lado, e, por outro, as questões da Amazônia, da política ambiental e da faixa de fronteira; a política indigenista e a demarcação das terras indígenas.

Com relação a estas últimas, as Forças Armadas, de maneira especial o Exército, acreditam que só elas têm as concepções corretas a respeito das políticas necessárias para a região amazônica e para nossas fronteiras, assim como acreditam que só elas têm a visão correta a respeito de como se relacionar com os povos indígenas. Nesta visão, são repudiados os Artigos 231 e 232, da Constituição Federal de 1988, assim como a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Declaração dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas, da Organização das Nações Unidas (ONU), instrumentos legais internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Durante o período da ditadura militar, tentativas foram feitas, como o tristemente famoso “decreto de emancipação”, de 1977, no sentido de liberar as terras indígenas para as grandes empresas. A partir de uma conceituação de indígenas “aculturados” e “não-aculturados”, o governo militar pretendia manter algumas “reservas” e liberar o restante das terras indígenas para madeireiras, fazendeiros, mineradoras, garimpeiros etc. Claro está que as “reservas” seriam temporárias, com o tempo suficiente para se “aculturar” os indígenas ainda “não-aculturados” e, igualmente, expropriar suas terras e entregá-las aos empresários. Durante o Congresso Constituinte, nova tentativa foi feita, com o lobby militar e empresarial junto ao Centrão, maioria de parlamentares coordenada pelo então senador Bernardo Cabral, que tentou viabilizar uma proposta de legislação indigenista que também contemplava as figuras de indígenas “aculturados” e “não-aculturados”, novamente com o objetivo de expropriar seus territórios e entregá-los à exploração dos fazendeiros e das grandes empresas.

A Constituição de 1988, no entanto, reconheceu “aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” (Capítulo VIII – Dos índios – Artigo 231 da CF). O Artigo 231 afirma ainda, em seu segundo parágrafo: “As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes”. E no quarto parágrafo: “As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”. Ou seja, a Constituição de 1988 rompeu com a perspectiva integracionista vigente desde o período colonial no Brasil e abriu uma nova perspectiva, de reconhecimento dos direitos territoriais e culturais dos povos indígenas.

Como se nada houvesse passado nos últimos 20 anos, para os militares os povos indígenas devem “ser plenamente integrados à sociedade nacional”, suas terras e riquezas devem ser colocadas à disposição do mercado e do “desenvolvimento do país”. Para os militares, os povos indígenas não podem ser reconhecidos como tais, pois o seu mero reconhecimento significaria “uma ameaça à soberania nacional”.

A Terra Indígena Raposa Serra do Sol é, no momento, a principal vítima da reação militar às políticas de governo e às conquistas constitucionais dos povos indígenas. Na verdade, para os militares, Raposa Serra do Sol deverá ser, numa concepção de guerra, a “cabeça de ponte” de um ataque generalizado às demarcações e homologações de terras indígenas já feitas, sendo feitas ou a serem feitas no Brasil. Trata-se de voltar ao período pré-constitucional, anular demarcações, evitar novas e disponibilizar os territórios indígenas para as grandes corporações nacionais e internacionais, principalmente mineradoras, e para o agronegócio. Só assim, a “Segurança Nacional” estaria garantida.

O processo no STF

Os militares nunca aceitaram a demarcação e homologação das terras indígenas na região amazônica, particularmente dos territórios Yanomami e Raposa Serra do Sol. Com relação à homologação do território Yanomami, em maio de 1992, durante o governo Fernando Collor de Mello, os militares reagiram, protestaram, buscaram impedir de todas as maneiras, inclusive junto ao ministro da Justiça da época, coronel Jarbas Passarinho, mas a terra indígena acabou sendo demarcada e homologada.

Com relação à Terra Indígena Raposa Serra do Sol, os militares, assumindo como inadmissível o que consideram uma nova “derrota” de suas posições, buscaram intervir de forma intensa, em todas as áreas possíveis e de maneira planejada, com estratégia e táticas claramente definidas, para que a homologação fosse desconstituída antes que a retirada dos invasores fosse consumada. Para tanto, tornaram-se aliados dos seis grandes arrozeiros e com eles vêm atuando há anos de maneira articulada, na própria terra indígena, junto à sociedade nacional, aos meios de comunicação, a órgãos governamentais, ao Congresso Nacional e ao Poder Judiciário, particularmente junto ao Supremo Tribunal Federal.

Em meados de 2006, um membro da Abin (Agência Brasileira de Informações) instalou-se numa sala da prefeitura de Pacaraima (RR), cujo prefeito é o líder arrozeiro Paulo César Quartiero. O objetivo do militar ali era o de assessorar o conjunto dos grandes invasores a resistir de forma armada à homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e à desintrusão que deveria ser realizada pela Polícia Federal, ensinando táticas de guerrilha, técnicas de fabricação de bombas incendiárias e de instalação de minas aos pistoleiros dos fazendeiros.

De 2005 a 2007, o Exército boicotou como pôde as operações de desintrusão planejadas pelo governo federal, repassando sistematicamente informações sobre os planos de retirada dos invasores para estes e seus aliados na mídia e no Congresso Nacional, conseguindo que tais operações fossem seguidamente abortadas.

A desintrusão foi definitivamente deflagrada em abril de 2008, com a Operação Upatakon 3, com a participação apenas da Polícia Federal, devido a impossibilidade de se contar com a contribuição do Exército. Neste momento, os militares realizaram um movimento duplo: por um lado, atuaram no terreno, dando apoio logístico à resistência armada dos invasores contra os policiais federais; por outro, atuaram no Supremo Tribunal Federal (STF), dando falsas informações a respeito de um iminente confronto armado e sangrento, envolvendo a população civil e a Polícia Federal em Roraima. Conseguiram, assim, disseminando mentiras entre os ministros, a suspensão da Operação Upatakon 3 pelo Plenário do STF, o que foi feito em poucos minutos, sem debate e de forma unânime. Continuam, até os dias de hoje, de maneira sistemática e diária, desinformando ministros e assessores sobre a realidade dos povos indígenas daquela região.

A “guerra de posições” se expande

Durante os primeiros dias da “resistência”dos arrozeiros, o general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, comandante do Exército na Amazônia, veio a público destilar todas as críticas dos militares ao governo federal e sua política indigenista. O general fez sua aparição pública no mesmo estilo agressivo em que os militares costumam atacar a política governamental de Direitos Humanos, no que toca à questão dos desaparecidos políticos.

O general Heleno chegou a afirmar que “não sirvo a este governo, sirvo ao Estado brasileiro”. Brandamente admoestado, continuou no cargo, a dar declarações à imprensa contra a política indigenista e a dar palestras, com uniforme de campanha, para audiências de militares da reserva e da ativa. Associações de militares da reserva e de militares da ativa passaram a solidarizar-se imediatamente com o general Heleno, tratado como porta-voz do conjunto da caserna.

Em Roraima, os militares também manifestaram publicamente seu apoio político incondicional aos invasores da terra indígena. O Comandante da 7ª Brigada de Infantaria de Selva (BIS), general Eliezer Girão Monteiro Filho, recebeu, no dia 9 de maio, em pleno quartel, uma manifestação política de arrozeiros e familiares para elogiá-los e incentivá-los a “defenderem suas propriedades” frente a homologação da terra indígena. “Cobrem respeito à propriedade de vocês. A terra que está lá, ainda que dentro da Raposa, ainda está sob o nome de suas famílias. São dos senhores”, disse o general aos manifestantes, repetindo a acusação de que a demarcação de terras indígenas em faixa de fronteira significaria uma “ameaça à soberania nacional”.

No dia 18 de abril, o general Gilberto de Figueiredo, presidente do Clube Militar, manifestou solidariedade ao general Heleno, seguido do presidente do Clube da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Ivan Frota. Este, segundo noticiou a imprensa (Folha de São Paulo, 19/04/08), “ameaçou com o maior movimento de solidariedade militar” caso o presidente Lula “continuasse com a coação ao general Heleno”. O presidente do Clube da Aeronáutica declarou ainda que a declaração do general Heleno “representa a síntese do pensamento castrense atual”.

No mês de junho, em entrevista ao jornalista Luiz Carlos Azenha, o general Figueiredo voltou a externar seus pontos de vista. Eis parte do depoimento de Azenha, publicado em seu blog, em 26 de junho: “Quando entrevistei o general Figueiredo, em Brasília, ele fez duras críticas à Constituição de 1988. Segundo ele, dois interesses se conjugaram na Constituinte para escrever o capítulo referente aos direitos indígenas: os esquerdistas e o grande capital. De acordo com o raciocínio do general, ambos são internacionalistas. O interesse do grande capital, no caso, seria o de reservar grandes áreas do Brasil para futuro uso, através da instrumentalização dos indígenas. Ou seja, os minérios e outros recursos naturais existentes hoje em terras indígenas ficariam à espera do momento em que os países desenvolvidos – França, Reino Unido, Estados Unidos, Alemanha – precisassem deles. Quando isso acontecer, os indígenas promoveriam um movimento separatista, entregando o ouro aos bandidos. De acordo com o general, os esquerdistas não têm apego à idéia de nação. Fazem parte de um movimento internacional ao qual subordinam o Brasil. Por isso essa esquerda teria apoiado o capítulo que trata dos indígenas na Constituição de 1988.”

Azenha adianta sua avaliação a respeito dessa posição do militar: “Na minha modesta opinião a teoria dos índios imperialistas serve a interesses inconfessáveis: ajudar o agronegócio a tomar terra dos índios”.

A posição do general Figueiredo fecha o raciocínio militar, segundo o qual é necessário continuar, nos dias de hoje, a dar combate contra os dois grandes inimigos internos: os esquerdistas e os povos indígenas.

Decorrem daí os ataques permanentes contra a política do governo federal com relação aos Direitos Humanos, no que se refere aos desaparecidos políticos, por um lado e, por outro, contra a política indigenista oficial. Esquerdistas, mesmo mortos e desaparecidos, e povos indígenas continuam todos alvos militares.

Esta guerra de décadas foi transferida, devido às manobras dos militares, invasores das terras indígenas e seus aliados políticos, para um novo campo de batalha: o Supremo Tribunal Federal.

A violência se espalha, impunemente

No dia cinco de maio, um grupo de dez indígenas, que se encontrava trabalhando em sua terra, foi atacado com bombas e tiros pelos pistoleiros encapuzados do invasor Paulo César Quartiero, deixando vários feridos. Identificada a autoria do crime, o arrozeiro teve prisão decretada e as instalações de sua invasão investigadas pela Polícia Federal. Lá foram encontradas mais de 140 bombas incendiárias e material explosivo, de posse exclusiva das Forças Armadas. Dias antes, indígenas que trabalhavam na área viram duas caminhonetes do Exército entrarem na fazenda e ali permanecer até o dia do atentado criminoso.

As investigações da Polícia Federal levaram à convicção da participação do coronel Gélio Fregapani, ex-chefe da Abin em Roraima, como orientador dos pistoleiros de Quartiero, tanto para a fabricação das bombas incendiárias, como em táticas de guerrilha e na orientação da logística do ataque ao grupo de dez indígenas. Quartiero se refere a Fregapani como seu “amigo pessoal”. Além do ensino em fabricação de bombas, teria partido também de militares a orientação para a colocação de um carro-bomba em frente à sede da Polícia Federal e as orientações para a colocação de minas explosivas na estrada que vai de Boa Vista a Surumu, onde se encastelaram com barricadas Quartiero e seus pistoleiros, contra a Polícia Federal que pretendia realizar a Operação Upatakon 3.

Desnecessário lembrar que, se detonados, o carro-bomba, assim como as minas explosivas, teriam causado inúmeras mortes, tanto de policiais federais como de pessoas comuns, transeuntes inocentes, índios e não índios, crianças, mulheres, idosos.

Seria o caso de nos perguntar se aqui reside a auto-propalada valentia e coragem dos “líderes da resistência”, invasores da terra indígena e seus especializados assessores?

Apesar de tantas evidências do envolvimento militar em todas as ações dos invasores de Raposa Serra do Sol, nenhuma advertência foi feita, nenhuma investigação concluída, muito menos nenhuma prisão efetuada. Pelo contrário, militares e invasores continuam fazendo declarações ofensivas aos povos indígenas nos meios de comunicação, continuam também atacando a política indigenista oficial e a homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Ou seja, militares se sentem com a autoridade e liberdade suficientes para continuar se insubordinando e atacando o próprio governo ao qual deveriam servir. Mas, como já declarou o general Heleno, eles não reconhecem o governo Lula como autoridade, pois servem somente ao “Estado”.

Conclusão

Agora, transcorre o tempo até o momento, provavelmente no próximo mês de agosto, em que o STF deverá se reunir para decidir sobre a constitucionalidade da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Não pensemos que militares e arrozeiros estão, de forma serena, esperando o resultado deste debate. Pelo contrário, estão extremamente ativos, tratando de influir decisivamente em tal resultado. Para tanto, além do lobby permanente instalado no STF, veiculam inverdades e preconceitos com relação aos povos indígenas de Raposa Serra do Sol, em quantidades industriais, nos sites da internet, em blogs de ultra-direita e nos meios de comunicação onde possuem aliados e simpatizantes. Em seus recados à imprensa, os arrozeiros já declararam que não irão admitir serem “roubados pelo STF” e que não irão aceitar uma decisão contrária a seus interesses.

Os únicos que estão, de maneira pacífica, embora firme e aberta ao diálogo com a sociedade nacional, esperando a decisão da Suprema Corte, são os povos indígenas de Raposa Serra do Sol que, de resto, assim agiram nos últimos 34 anos, sempre à espera da Justiça, sempre respeitando a legalidade e as instituições do Estado brasileiro.

Diante de tudo isso, não resta dúvida: uma eventual vitória da anulação da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol será uma vitória da força bruta, da violência, da ação clandestina, da disseminação de mentiras e preconceitos contra os povos indígenas e do medo em meio à população. Será, igualmente, uma vitória do retrocesso do Estado brasileiro, numa retomada da perspectiva de “integração dos indígenas à sociedade nacional”, da inviabilização de sua existência como povos culturalmente diferenciados no interior do Estado nacional e da expropriação de suas terras e recursos nela existentes para a exploração pelas grandes empresas nacionais e estrangeiras.

Pelo contrário, a manutenção da homologação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol irá sinalizar, para toda a sociedade brasileira, que neste país existem leis a serem obedecidas e instituições que devem ser respeitadas – existe, principalmente, uma Constituição que deve ser zelada por todos.

Fundamentalmente, irá mostrar que o Supremo Tribunal Federal exerce, de fato, o papel de instituição do Estado democrático responsável por assegurar que esta Constituição seja realmente cumprida, em benefício da Verdade, da Justiça e da construção de uma sociedade onde o Direito seja um patrimônio realmente de todos, sem distinção de raça, cultura, etnia ou classe social.

Brasília, junho de 2008.

Paulo Maldos é Assessor político do Cimi

Artigo enviado pelo Frei Gilvander Moreira, colaborador e articulista do EcoDebate