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Convenção da Diversidade Biológica: Para retornar à lógica da vida, artigo de Washington Novaes

[O Estado de S.Paulo] Embora haja poucos assuntos tão importantes para o futuro da humanidade, não se esperam avanços decisivos na reunião dos representantes de 191 países que participam da Convenção da Diversidade Biológica, que termina hoje na Alemanha, após duas semanas de discussões. É preocupante, porque, como disse na abertura o ministro alemão do Meio Ambiente, Sigmar Gabriel, “clima e perdas da biodiversidade são os desafios mais assustadores da agenda global”.

Na Cúpula da Terra em 2000 se estabeleceu como meta chegar a 2010 com um processo já consolidado de reversão das perdas da biodiversidade, pelo menos 10% do planeta em áreas protegidas. Mas se está longe disso. Ahmed Djoghlaf, secretário-executivo da convenção, diz que “não é construindo cercas nos parques nacionais, para manter as pessoas do lado de fora”, que se vai reverter o processo; será preciso assegurar “a interação de todas as espécies e seus ecossistemas naturais”. Se isso não for conseguido, vai-se afetar toda a vida humana, entre outras razões, porque “dois terços das colheitas de grãos dependem de polinização por insetos ou de outros animais”. E para ficar num só exemplo, a população de abelhas, um dos polinizadores mais importantes, já decresceu 25% na Alemanha e 70% no leste dos Estados Unidos.

Os representantes da sociedade na reunião explicitaram alguns objetivos prioritários a serem perseguidos. Entre eles, produção diversificada de alimentos na agricultura em pequena escala, essencial para a manutenção da biodiversidade agrícola e para resolver a “crise de alimentos” (no Brasil, a agricultura familiar ainda responde por mais de 60% da produção de alimentos para o mercado interno); medidas para evitar a competição entre produção industrial de agrocombustíveis e essa agricultura; respeitar direitos de povos indígenas e comunidades locais e repartir com eles benefícios advindos do conhecimento da biodiversidade; respeito ao princípio da precaução; evitar incentivos e subsídios a desmatamentos e monoculturas.

Todo o cuidado parece pouco. Segundo a Sociedade de Zoologia de Londres e o WWF, em 35 anos (1970-2005) o número de espécies de animais terrestres, marinhos e de água doce diminuiu 27%, por causa da destruição de seus hábitats e do comércio de animais selvagens. Uma em cada oito aves está ameaçada de extinção (no Brasil, 141 espécies). Desaparecem três espécies por hora, diz a Planet Ark (19/5). Perdem-se a cada minuto 20 hectares de florestas tropicais (mais de 10 milhões de hectares por ano), o maior repositório da biodiversidade.

Para o Brasil, que detém de 15% a 20% da biodiversidade planetária, tem sido uma tragédia. Segundo a Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de São Paulo, em seu boletim de março, o País já perdeu – calcula o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – a vegetação em 30% de seu território, mais de 2,5 milhões de quilômetros quadrados: 575 mil km2 na Amazônia, 751 mil na Mata Atlântica, 800 mil no Cerrado, 300 mil na Caatinga, 87 mil nos Pampas, 17 mil no Pantanal. Cada hectare do Cerrado pode ter 400 espécies vegetais. Na Mata Atlântica, no mesmo espaço, já foram identificadas mais de 460. Um potencial gigantesco para a alimentação, novos materiais, novos medicamentos. Das 150 drogas mais receitadas nos Estados Unidos, diz Cristina Azevedo, do Ministério do Meio Ambiente, “57% têm pelo menos um dos componentes derivado de recursos genéticos – e sem remuneração para os países de onde provêm”. Mesmo sabendo isso tudo, temos apenas 600 mil km2 protegidos teoricamente em reservas federais, mas sem pessoal para cuidar delas: são só 1.242 servidores para as 300 áreas protegidas, boa parte deles em funções burocráticas e urbanas.

Trata-se de um tema – é preciso repetir e insistir – que precisa estar no centro das prioridades brasileiras, especialmente neste momento em que, com a troca de ministros, se discute o que fazer na Amazônia e seus milhões de quilômetros quadrados de biodiversidade. Não adianta pensar que “manejo sustentável” em florestas públicas resolverá a questão – muitos cientistas mencionados neste espaço têm mostrado isso. Quem optou por esse caminho, no mundo, ficou sem as florestas. É preciso avançar na direção proposta pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência: investimento maciço na formação de pesquisadores e de instituições voltadas para esse objetivo, avanço da agropecuária apenas na imensa área já desmatada no bioma e sem nenhuma utilização econômica.

Mais uma vez, vale a pena recorrer ao “papa da biodiversidade”, Edward O. Wilson, no livro A Criação (Companhia das Letras, 2006), que traz um diálogo imaginário entre a ciência e a religião, que, a seu ver, será o único caminho para salvar a biodiversidade (e a espécie humana). Cada espécie viva é uma “obra-prima”, diz Wilson. Nosso corpo mesmo tem mais bactérias que células. Um grama de solo pode conter mais de 10 bilhões de bactérias. Existem 1 milhão de trilhões de insetos e fungos. Só de formigas, mais de 10 mil trilhões, que, juntas, pesam mais que todos os seres humanos juntos. Mas estamos praticando uma “traição à natureza”, adotando falsas premissas como a de que só há umas poucas espécies para alimentar os seres humanos e, com isso, produzindo monoculturas devastadoras. Menos de 10% das formas de vida são conhecidas e menos de 1%, estudadas.

E, no entanto, diz ele, seria possível dar passos gigantescos levando à prática um programa que aplicasse US$ 30 bilhões anuais para proteger 70% da fauna e da flora em 34 “hotpots”, os lugares onde elas estão mais ameaçadas. Isso significaria 0,5% do produto bruto mundial.

Caminhos há. Mas é preciso escolher alternativas corretas, não a de “sair da natureza”, diz Wilson. Uma “traição”, que custa cada vez mais caro. Muito mais que todo o produto bruto da lógica apenas financeira.

Washington Novaes é jornalista E-mail: wlrnovaes@uol.com.br

Artigo originalmente publicado pelo O Estado de S.Paulo, 30/05/2008