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Artigo

alimentos: A crônica de uma alta anunciada, artigo de José Graziano da Silva

[Valor Econômico] É evidente que a receita que os médicos prescrevem tem a ver com o diagnóstico prévio e com a expectativa de reação futura do paciente. Deveria valer o mesmo para o atual diagnóstico “alta dos preços dos alimentos”. Um choque de oferta é fundamental quando há pelo menos três anos a demanda mundial por cereais cresce acima da oferta. Ainda assim, temo que essa receita responda a um diagnóstico apenas parcial. Sem o intuito de reabrir a polêmica em torno das causas da alta dos preços dos alimentos, acho possível chegar a alguns denominadores comuns.

Primeiro, os preços da maioria das commodities agrícolas começaram a subir a partir de 2002/03. A alta reverte uma tendência de queda que começou em meados dos anos 70, quando a União Européia conquistou a auto-suficiência e, como já faziam os EUA, passou a subsidiar suas exportações agrícolas. Note-se que, apesar da alta, em termos reais a maioria dos preços agrícolas continua inferior àqueles daquela época.

O segundo denominador comum se refere aos detonadores da atual alta. São basicamente três: aumento dos preços do petróleo, mudanças no padrão de consumo em países emergentes e produção de etanol a partir do milho. O petróleo encarece o transporte e o preço de insumos agrícolas. Já as mudanças no padrão de consumo de países emergentes significam que mais pessoas estão comendo mais e melhor – comida com maior valor protéico. O impacto também é duplo: maior demanda de cereais para consumo humano e para uso na cadeia produtiva da carne. O último detonador é o aumento no uso do milho para produzir álcool nos Estados Unidos. Isso é relevante porque o país é o maior exportador mundial de milho amarelo, oferecendo um produto subsidiado tão barato que desorganizou a produção doméstica em vários países.

Um terceiro denominador comum: quebras de safra em 2005/2006, em funções de intempéries várias que afetaram importantes países produtores de cereais, como China e Austrália, agravaram a situação. Num momento em que a demanda crescia, a produção caia.

Esses fatores diminuíram a disponibilidade de cereais no mundo. Segundo a FAO, embora a produção mundial de cereais subiu 4,7% entre 2007 e 2008 (atingindo um recorde de 2,1 bilhões de toneladas), seu comércio internacional deve subir apenas 0,2% na atual temporada. Portanto, ainda é preciso usar os estoques que, em 2008, devem cair para 405 milhões de toneladas, cerca de 19% da produção esperada. Não é pouco, embora seja o menor estoque desde 1981, quando o quadro recessivo decorrente da “crise da dívida” significava um nível de consumo baixo nos países na época ainda chamados de terceiro mundo.

Quando na metade de 2007 se confirmaram as quebras de safra do trigo e do seu substituto, o arroz, fatores exógenos, como a queda do dólar e da taxa de juros norte-americana, contribuíram para criar um ambiente propício à especulação. Grandes aplicações de fundos em commodities, fugindo da “crise do subprime”, ajudam a sustentar as fortes altas observadas a partir do final do ano passado, além de criarem uma volatilidade e incerteza poucas vezes vistas no comércio de commodities fora de períodos de guerras mundiais.

Embora o senso econômico comum indique que os preços agrícolas são formados pelo equilíbrio entre oferta e demanda correntes, na realidade são os estoques e o consumo projetado que os determinam. E estoque baixo é condição suficiente para especulação dos preços no seu sentido econômico mais exato. Ainda mais em um quadro cheio de incertezas em relação ao que pode passar nos próximos anos, embora se espere um aumento da produção.

O comércio internacional de produtos agrícolas é apresentado como a grande panacéia para todos os males do momento, mas é difícil que ele cresça o bastante dada a conjuntura atual: queda do dólar e de taxas de juros em países desenvolvidos e políticas de subsídios incentivando a produção ineficiente combinada com barreiras alfandegárias. Também nada autoriza a pensar que, apesar do clamor quase geral, até com editorial no “New York Times”, os EUA irão reduzir o subsídio ao etanol de milho num ano eleitoral. Tampouco devemos esperar – ou desejar – uma freada brusca do crescimento das economias emergentes que, possivelmente, significaria uma piora na alimentação da população mais pobre do mundo.

Assim, deparamos-nos com uma forte alta dos preços, que hoje afeta mais o milho e o arroz porque a perspectiva de boas safras de trigo já se traduziu numa queda da sua cotação. Mas esta é uma crise de preços, não de desabastecimento. Ele só existe em alguns países muito pobres, como o Haiti, que não tem capacidade para importar os alimentos necessários aos preços atuais.

Isso reforça que o diagnóstico correto, na verdade, é o acesso insuficiente a alimentos e não incapacidade produtiva. O problema não é novo. Entre 1990-1992 havia mais de 820 milhões de subnutridos em países em desenvolvimento, embora a oferta de energia alimentar per capita superasse em 20% o mínimo necessário para satisfazer as necessidades nutricionais de toda a população do planeta. Entre 2002-2004, o número de subnutridos subiu para 830 milhões, embora o excedente alimentar também tivesse subido para 28%. A oferta pode ter caído desde então, mas não a ponto de tornar-se negativa.

Portanto, a atual alta pode dificultar mais o acesso a alimentos dos mais pobres e requer um tratamento de emergência: apoio aos mais vulneráveis, além de políticas que estimulem a produção. Estamos num momento crítico, mas as projeções indicam que os preços já atingiram seu pico e devem parar de subir. Isso é um alívio para os países e famílias compradoras de alimentos, mas também uma lembrança de que pode se estar fechando a janela de oportunidade para melhorar a renda das milhões de famílias pobres que dependem ou dependiam da agricultura para sua sobrevivência. Apoiá-las a produzir para consumo próprio e para venda é uma das chaves para evitar a repetição de essa crise.

No contexto mais amplo, a solução é a implantação de uma política de segurança alimentar, como estão fazendo países como Brasil, Argentina, Equador e Peru. Mas a segurança alimentar também depende da criação de mais empregos de qualidade e uma melhor distribuição da renda. Isso requer mudanças mais estruturais que, em geral, a maioria não quer discutir.

José Graziano da Silva é Representante Regional da FAO para América Latina e Caribe.

Artigo originalmente publicado pelo Valor Econômico, 21/05/2008