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Notícia

Desmatamento cresceu em torno da BR-364

Numa tarde quente de 6 de julho de 1960, o então presidente da República Juscelino Kubitschek escalou as pequenas escadas que levam à cabine do trator Caterpillar D8 para delírio da pequena multidão que se aglomerava em volta do veículo mais utilizado na derrubada das árvores da Amazônia brasileira. JK acenou para a população de Vilhena, a última cidade do então território de Rondônia antes da divisa com Mato Grosso, deu a partida no motor de mais de 300 cavalos, acelerou e pôs abaixo a última árvore que, teoricamente naquele momento, impedia o trânsito de veículos entre Cuiabá e Porto Velho. Oficialmente estava aberta a BR-029, sinônimo de um futuro próspero para os cerca de 50 mil moradores de uma das áreas mais isoladas do Brasil. Por Yan Boechat, do Valor Econômico, 20/05/2008.

Durante 11 meses, mais de 6 mil homens participaram das obras, que basicamente consistiam em derrubar a mata e abrir um caminho na floresta. Os engenheiros precisaram contar com a ajuda dos índios para definir o traçado da estrada, que tinha como base a linha telegráfica instalada pelo Marechal Rondon 46 anos antes.

Passadas quase cinco décadas desde que a última árvore foi derrubada por JK, é difícil acreditar que a estrada de 700 km que separa Vilhena de Porto Velho um dia foi completamente cercada por densa floresta. Na verdade, quem dirige pela rodovia – que hoje tem o nome de BR-364 – precisa de uma dose amazônica de imaginação para crer que foi preciso usar índios como guias, porque tudo ali era um grande oceano de árvores.

De um lado e de outro da estrada há muito pouca coisa que lembre a floresta amazônica. Uma ou outra árvore de grande porte aqui e ali, alguns pedaços de troncos ainda não retirados e, bem ao longe, raras e pequenas áreas preservadas. A floresta que parecia quase intransponível há 50 anos se tornou uma imensidão de pastagens.

É fácil confundir a região com o Centro-Oeste brasileiro. Principalmente pela quantidade de fazendas que se dedicam à pecuária de corte. Ao longo da viagem entre Porto Velho e Vilhena o que mais se vê são bois. Estão em todo o canto e já somam mais de 12 milhões de cabeças no Estado. Hoje a pecuária é tão importante quanto a indústria madeireira em Rondônia. Cada atividade representa 25% do PIB estadual, de R$ 12,9 bilhões.

A espinhal dorsal do desenvolvimento econômico de Rondônia é a BR-364. Por ela passa a maior parte dos produtos que saem do Estado, como a madeira, a carne, os laticínios e, agora, a soja. Sem ela Rondônia não conseguiria ter o terceiro maior PIB da Região Norte nem a população de cerca de 1,5 milhão de pessoas, a maior parte migrantes do Sul e do Sudeste. Rondônia é o único Estado do Norte do Brasil em que a fisionomia tão característica dos índios amazônicos não é predominante entre a população.

Da mesma maneira que é o alicerce de sustentação da economia, a BR-364 é também o eixo do processo de desmatamento iniciado em 1960 e que explodiu nos anos 80, tornando Rondônia o Estado com a menor cobertura vegetal em relação à área total de toda a região amazônica. É em volta dela que estão os municípios com as maiores taxas de devastação do Estado, como o campeão Presidente Médici, que derrubou 87,5% de suas florestas, ou Jaru, que transformou em pastagens 231 mil hectares de uma área de 290 mil hectares.

As fotos de satélite de Rondônia explicitam o papel da BR-364 no rápido e agressivo processo de devastação que a floresta amazônica sofreu. Por elas é possível ver que ao longo da rodovia não há praticamente nenhuma área representativa de floresta primária. Tudo foi ao chão para dar lugar primeiro à lavoura e depois às pastagens.

Até a década de 70, quando a então BR-029 ainda era quase uma trilha, intransponível no período de chuvas, pouco foi destruído ao longo da estrada. A coisa começou a mudar com o Plano de Integração Nacional, instituído por decreto-lei pelo então presidente Emílio Garrastazu Médici, em julho de 1970. Com o lema “Integrar para não Entregar”, o governo militar iniciou uma ampla campanha de colonização para, enfim, habitar a vastidão amazônica brasileira. Como diziam as campanhas oficiais, “Uma terra sem homens para homens sem terra”.

Pelo decreto, um raio de 100 quilômetros nas margens das rodovias federais que cortavam a Amazônia seria destinado à colonização. A cada migrante, um lote de 100 hectares. Por lei, cada um deles deveria desmatar 50% de suas terras para ter a posse oficial da área, concedida pelo Incra. Quem não colocasse a floresta abaixo era considerado um agricultor não-produtivo e perdia as terras doadas pelo governo.

O agricultor José Roberto Vrena seguiu à risca a cartilha quando chegou a Rondônia vindo de Cascavel (PR), em 1975. “Coloquei fogo em tudo, não ficou nada lá”, lembra. Vrena foi além do que pedia o governo na época, desmatou todos os 100 hectares à margem da BR-364 que havia recebido do Incra. “Éramos obrigados a fazer isso, senão perdíamos a terra”, diz ele. Na década de 80, com a chegada dos pecuaristas, Vrena vendeu seu lote e foi morar em Porto Velho. Arrumou emprego no setor público e lá ficou até se aposentar, há seis anos. Com as economias comprou um pequeno sítio, também na margem da rodovia. “Dessa vez não derrubei nada, quando cheguei aqui só tinham três pés de manga em toda a propriedade”, diz. Apesar da fartura de pasto e escassez de árvores, Vrena batizou seu sítio de Éden Amazônico.

No início dos anos 80, quando um financiamento de US$ 20 milhões do Banco Mundial permitiu que a BR-364 enfim fosse asfaltada, milhares de agricultores como Vrena arrependeram-se de ter queimado a floresta de suas propriedades. O arrependimento não estava ligado a uma súbita onda de consciência ambiental. Tinha, na verdade, razões econômicas.

Foi mais ou menos nessa época que a indústria madeireira passou a florescer no Estado. Serrarias começaram a pipocar por todas as cidades na beira da BR-364. Com a rodovia asfaltada ficou mais barato transportar a madeira, mesmo que em toras, para o mercado consumidor do Sul e do Sudeste. Sem nenhum tipo de fiscalização e com matéria-prima abundante, em pouco tempo a indústria madeireira se tornou a força motriz da economia de Rondônia.

Três anos após a conclusão do asfaltamento da BR-364, em 1986, João Daniel Kalsing chegou a Rondônia em um caminhão com os maquinários de sua serraria. Gaúcho de Arroio do Meio, João é a terceira geração de madeireiros em sua família. O avô trabalhava com madeira na Alemanha e ensinou o ofício para o pai de Daniel, que, por sua vez, repassou ao filho. Os Kalsing vieram subindo do Rio Grande do Sul até Rondônia atrás da madeira. Quando ela escasseou no Rio Grande, foram para Santa Catarina e depois ao Mato Grosso.

“Meu irmão veio aqui em 86 ver a região e na mesma semana me ligou e disse: “Embarca tudo e vem pra cá, aqui tem madeira que não acaba mais””, relembra. Nos anos seguintes os Kalsing fizeram e ainda fazem – “dinheiro pra porra”, como gosta de dizer. Tiraram madeira de toda a região de Ariquemes. “Nunca houve fiscalização, ela só começou depois que os ongueiros se instalaram em Brasília a mando dos EUA e da Europa, que querem impedir o crescimento do Brasil”. Daniel, como a maior parte dos madeireiros, garante que agora só extrai madeira de áreas legalizadas. Ele responde a dois processos por crime ambiental.

A explosão da indústria madeireira levou a um consequente esgotamento da matéria-prima ao longo dos anos 80 e 90. Sem as árvores, as serrarias passaram a migrar para as novas fronteiras da floresta. Foram com elas as milhares de pessoas que viviam da indústria de extração e beneficiamento da madeira e não conseguiram se manter em áreas que passaram a ser dominadas pela pecuária e pela agricultura mecanizada.

Cerejeiras, pequena cidade ao sul da BR-364, perto da divisa com o Mato Grosso, é um bom exemplo dessa migração interna. Em 1987, quando a indústria da madeira era a única na região, a cidade contava com mais de 35 mil habitantes. Agora que é uma forte produtora de soja, apenas 16 mil pessoas vivem lá, de acordo com o IBGE.

Hoje, a principal fronteira florestal de Rondônia está na região de Machadinho do Oeste, no Norte de Rondônia, há menos de 100 quilômetros da divisa com o Amazonas. É de lá que sai quase metade da madeira extraída em Rondônia todos os anos. E é lá também que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), identificou o maior crescimento do desmatamento no Estado em 2007.

Apesar desses dados, os madeireiros fazem coro de que não são os culpados pela devastação. “Quem destrói a floresta é o agricultor, que queima tudo para fazer pastagem, nós só tiramos uma árvore aqui e outra ali”, diz Jonas Perutti, capixaba de Colatina que chegou a Rondônia em 1991 para montar a Madeireira Litorânea. Eles não aceitam o papel de vilões. “Viramos bandidos porque não temos representação em Brasília, porque não somos organizados como os pecuaristas”, diz Kalsing. “Como as ONGs precisavam achar um culpado, nos escolheram”, diz.

A Secretaria de Desenvolvimento Ambiental (Sedam) de Rondônia concorda com os madeireiros. Para o secretário Cleto Muniz, desde que a fiscalização saiu do controle do Ibama e foi para o Estado, há dois anos, as coisas entraram nos eixos. “Implantamos um sistema de controle quase impossível de ser burlado porque é totalmente online, se tiver alguém querendo nos enganar, nós pegamos”, diz. Tanto o governador de Rondônia, Ivo Cassol (sem partido) quanto o presidente da Assembléia Legislativa, Neodi Oliveira (PSDC), têm ligações históricas com a indústria madeireira.

O superintendente do Ibama em Rondônia, Osvaldo Pittaluga, concorda com a política ambiental do Estado. “Tivemos problemas com o antigo secretário, mas com o Cleto as coisas estão funcionando, há diálogo e o sistema de controle é muito bem estruturado”, diz ele, funcionário de carreira da Sedam que está na chefia do Ibama no Estado por conta da ligação política com os partidos que apóiam o mandato do presidente Lula.

O paranaense Odir Silva, que vive de derrubar árvores e vender a madeira para as serrarias da cidade de Cujubim, acha que a coisa não é bem assim. “Se retira madeira de todo lado aqui, de reserva, de terra de agricultores, reserva indígena e até de área legalizada”, diz ele, ao lado do pequeno trator que usa para derrubar as árvores. “Mas quem ganha dinheiro mesmo não sou eu ou o dono da terra onde a madeira está, quem ganha dinheiro são os madeireiros e quem vende as notas para eles.”

As notas, no caso, são as guias florestais (GFs), que dão a legalidade à madeira. Para consegui-las é preciso que o madeireiro tenha área com plano de manejo aprovado pela Sedam. O plano de manejo é um mapeamento detalhado da área com todas as árvores que o madeireiro pretende extrair. Ele envia esse mapa, que é feito por engenheiros florestais contratados por ele e sem ligação com o Estado. Se aprovado, recebe um crédito em metros cúbicos da secretaria.

As guias são emitidas pelo próprio madeireiro, de acordo com o crédito que ele tem no sistema. Ou seja, se sua área de manejo aprovada tem 100 m3 de ipê que podem ser extraídos, ele pode emitir guias florestais de 100 m3 dessa espécie. Em momento algum os 20 engenheiros florestais que a Sedam tem para fiscalizar os já aprovados 5 milhões de m3 que podem ser extraídos em Rondônia verificam “in loco” se tudo está de acordo com o plano de manejo. Quando 50% do crédito foi utilizado, o sistema bloqueia a emissão de novas guias. A liberação só ocorre depois que um fiscal vai até o local do plano de manejo e verifica se tudo foi feito de acordo com o que estava previsto no projeto aprovado.

O sistema considerado infalível pelo secretário de Desenvolvimento Ambiental de Rondônia é uma piada aos olhos do procurador do Ministério Público Federal no Estado, Heitor Alves Soares. “Estão brincando de proteger o meio ambiente aqui”, diz ele. Rondoniense, com 29 anos de idade, Soares é uma das poucas vozes dissonantes em Rondônia sobre a política ambiental do Estado. “A corrupção nos órgãos de fiscalização ambiental é altíssima, é ingênuo crer que esse sistema evite a retirada de madeira ilegal” diz. “Já encontramos coordenadas de áreas de manejo que ficam na Bolívia ou placas de veículos para o transporte de madeira que eram de motocicletas.”

Soares sabe que a simples fiscalização não é o suficiente para barrar o desmatamento. “A madeira é um componente fortíssimo na matriz econômica daqui, enquanto não se encontrarem alternativas a essa indústria ela vai continuar entrando Amazônia a dentro, não tem jeito”, afirma ele, filho de pai baiano e mãe goiana que também vieram tentar a sorte em Rondônia há mais de 30 anos em uma pequena cidade à beira BR-364.