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Estados começam a cobrar pelo que é usado dos rios. Indústria e consumidor pagam. No Rio, cobrança vai ser repassada e terá impacto de 2% na conta de água

Água escassa e cara – O senso comum de que o Brasil é um país no qual a água é abundante e nunca vai faltar está caindo por terra. Certos de que o insumo está cada vez mais escasso, a União e os estados estão ampliando a cobrança pelo uso dos rios brasileiros, principalmente no caso da indústria e do agronegócio, para racionalizar os recursos naturais. Hoje, cerca de 20% do PIB brasileiro, distribuídos pelo interior de Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, já incluíram a água em sua planilha de custos. Para o consumidor, a tendência será arcar com parte dessa conta, ainda que de forma indireta. Por Gustavo Paul, de Brasília, para O Globo, 18/05/2008.

Os governos de Rio, Ceará, São Paulo, Paraná, Paraíba e Minas Gerais já começaram a implantar a cobrança em seus rios estaduais. A ofensiva não visa apenas ao reforço do caixa, ela é orientada pela visão estratégica e de desenvolvimento sustentável. Nas regiões Centro-Sul e Nordeste, já há escassez desse recurso.

A maior quantidade do insumo está no Norte, onde se encontram 68% da água do país, mas apenas 7% da população.
No Sul e no Sudeste, onde se concentram a maior produção econômica e 58% dos brasileiros, estão apenas 13% dos recursos hídricos.

Para responder a esse fenômeno, à medida que a cobrança se espalha, as empresas estão buscando formas de reduzir seu consumo. Levantamento feito pela Agência Nacional de Águas (ANA) estima que se reduziu em 20% o uso das águas das duas bacias nacionais onde já há cobrança.

O mais novo passo da cobrança foi dado na quinta-feira passada, quando cerca de 150 pessoas, entre empresários, agricultores, autoridades federais, estaduais e municipais se reuniram em Paracatu (MG), para discutir detalhes da cobrança do uso das águas da Bacia do São Francisco, maior rio brasileiro, que deve começar em 2009.

Estima-se que serão arrecadados R$ 40 milhões por ano quando ela estiver plenamente implantada.

Recursos podem melhorar qualidade

Das empresas de Belo Horizonte aos produtores de frutas de Juazeiro e Petrolina, passando pelos responsáveis pela transposição das águas para o sertão nordestino, todos terão de pagar pela água que usarem e devolverem ao rio.

Será a terceira bacia brasileira a cobrar pelo uso deste recurso natural, ao lado das bacias do Paraíba do Sul (nas divisas de Minas, Rio e São Paulo) e do Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ), na rica região que forma o entorno de Campinas.

Até 2003 não se pagava um centavo para retirar a água dos rios brasileiros, tampouco para devolvê-la — em pior estado — à natureza. A partir daquele ano, as empresas públicas e privadas que se abastecem do Paraíba do Sul começaram a abrir a carteira. O diagnóstico era que o Paraíba estava tão poluído que a cobrança poderia garantir recursos para melhorar sua qualidade e coibir o uso indiscriminado.

Em 2006 foi a vez da bacia do PCJ. O problema da região é outro: as concentrações industrial e populacional das últimas três décadas aumentaram de tal forma o consumo que começou a faltar água para todos. Eduardo Paschoalotti, gerente ambiental da Ripasa Celulose e Papel e vice-presidente do Comitê das Bacias PCJ, lembra que o sistema de desenvolvimento da região, que concentra cerca de 10% do PIB brasileiro, depende dos rios.

Atualmente a escassez limita a instalação de novas empresas na região.

A Ripasa, que paga R$ 350 mil por ano pela água do rio Piracicaba, está na região desde 1959 e usa o rio não só para resfriar sua planta industrial, mas também como insumo para produção de papel e celulose. Nos últimos anos, investiu em tecnologia para reduzir a quantidade de material orgânico que devolve ao rio. De 1,7 mil quilos/dia, hoje devolve apenas 400 quilos, o que permitiu economia de R$ 50 mil. Já a AmBev, maior fabricante de bebidas do país, diz que reduziu em 22% o consumo de água em cinco anos.

Maior pagador do setor industrial no PCJ — recolherá este ano R$ 827 mil para ter acesso ao rio Atibaia —, a fabricante de insumos e produtos químicos Rhodia também desenvolveu projetos para reduzir seu consumo.

Para manter os equipamentos resfriados, a empresa deixou de captar do rio o tempo todo e passou a reutilizar água por meio de um circuito fechado.

Com isso, economizou o suficiente para abastecer uma cidade de cerca de 500 mil habitantes.

O gerente de Meio Ambiente da Rhodia, Jorge Galgaro, lembra que o consumo inteligente está relacionado sobretudo à necessidade de ter água suficiente para garantir a produção: — A cobrança implica em custo para a empresa, mas não é predatória nem inviabiliza a produção.

Atualmente, cobra-se relativamente pouco: R$ 0,01 por metro cúbico de água bruta captada, R$ 0,02 por metro cúbico de consumo e R$ 0,10 por quilo de dejetos orgânicos devolvidos no PCJ e R$ 0,07 no Paraíba do Sul.

A ANA espera arrecadar R$ 27,4 milhões este ano de 347 usuários nas duas bacias. O valor estimado supera o de 2007, que ficou em torno de R$ 22 milhões. O dinheiro arrecadado será transferido para as agências de água das bacias de origem (como a Serla, do Rio) para investimentos em ações de recuperação dos rios, conforme decisão dos respectivos comitês. — Os valores são baixos para estimular o pagamento e ao mesmo tempo incentivar a redução do consumo — diz Patrick Thomas, gerente de cobrança da ANA.

Nem todo o processo foi tranqüilo.

Nos primeiros meses da cobrança no Paraíba do Sul, havia desconfiança sobre o destino dos recursos. A Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) impetrou duas ações contra a ANA, alegando incertezas quanto à aplicação do dinheiro devolvido e a falta de pagamento por alguns setores, como o de mineração. Passou a pagar boletos em juízo. Em 2004, uma lei garantiu a vinculação dos recursos, dando credibilidade ao sistema de cobrança.

No Rio, cobrança vai ser repassada e terá impacto de 2% na conta de água
Cliente de baixa renda ficará isento. Recursos serão usados em melhorias

No Estado do Rio, a cobrança pelo uso das águas dos rios já existe desde 2004, mas vai deslanchar mesmo a partir do segundo semestre deste ano. A conta, porém, deverá ser dividida entre todos os consumidores industriais, comerciais e residenciais, que vão sentir um aumento de até 2% no que pagam mensalmente à Cedae. No início de maio, a Assembléia Legislativa aprovou uma lei que modifica a anterior, de 2003, e permite que a companhia de saneamento possa repassar aos consumidores o que pagará ao governo.Até então, a Cedae tinha de absorver a despesa e, por isso, não pagava nada ao governo. Por Gustavo Paul, de Brasília, para O Globo, 18/05/2008.

Deixaram de entrar nos cofres cerca de R$ 160 milhões, que são arrecadados pela Fundação Superintendência Estadual de Rios e Lagos (Serla). No segundo semestre, a Cedae começará a contribuir com R$ 23 milhões ao sistema, que hoje arrecada só R$ 3,2 milhões ao ano.

Serla: número de pagantes no Rio crescerá 927% Segundo a presidente da Serla, Marilene Ramos, o pagamento não é retroativo, mas a Cedae compensará o estado com investimentos em obras. O repasse aos consumidores será transparente, ou seja, a fatura da Cedae deixará claro o quanto se paga pelo uso das águas dos rios estaduais. Os usuários de baixa renda, que pagam a tarifa social, ficam isentos.

— A cobrança vai trazer mais retorno que antes. O projeto de lei aprovado determina que 70% dos recursos obtidos sobre o setor de saneamento devem ser destinados a obras de coleta e tratamento de esgotos — afirma Marilene.

Primeiro estado a institucionalizar a cobrança sistemática pelo uso das águas dos seus cursos fluviais, o Rio tem 224 pagantes, entre firmas de serviços, fazendas, empresas de saneamento e de abastecimento público. A Serla estima que o universo potencial de pagantes chegará a 2.300 ao longo dos anos, dos quais mil seriam grandes consumidores.

Em quatro anos, a arrecadação cresceu de R$ 1,5 milhão, em 2004, para R$ 3,2 milhões em 2007. Ao todo, ela soma R$ 10,2 milhões. Em dez anos, Marilene estima que a cobrança poderá chegar a R$ 60 milhões anuais.

Custo da água baseia decisões empresariais Entre os principais cursos fluviais sob jurisdição do estado (além da água subterrânea, que também é cobrada) estão os rios Grande, Negro, Macaé, Piabanha e Guandu — o mais importante — e o Canal de São Francisco. Um levantamento da Serla revela que parte dos recursos arrecadados está sendo aplicada em projetos como a construção de uma estação de tratamento de esgotos em Nova Friburgo, a construção de biodigestores em Petrópolis e a dragagem do córrego Buraco do Pau, na Região dos Lagos.

— O dinheiro está sendo usado nas próprias bacias, o que é um avanço — afirma Marilene Ramos.

A situação dos rios fluminenses e a cobrança já influenciaram decisões empresariais.

A ThyssenKrupp CSA — Companhia Siderúrgica do Atlântico desistiu de usar as águas do esgotado Guandu, que lhe custariam R$ 4 milhões por ano, e decidiu apenas usar água do mar da foz do Canal de São Francisco — que corre paralelo à fábrica e tem mais vazão que o Rio Guandu. Mais barata e abundante, servirá para resfriar os equipamentos da usina termelétrica da empresa, que começará a funcionar até o fim do ano.

— Vamos usar água doce e salgada ao mesmo tempo.

Além de mais barato, é ecologicamente mais apropriado.

Apesar do custo mais elevado, a empresa entende que vale a pena — afirma Aljan Machado, gerente de Meio Ambiente da CSA.

Há uma diferença da cobrança feita no Rio para a federal. Na União, a cobrança é fruto de um acordo do comitê de bacias, formado pelos usuários, governos estaduais, municipais e federal, depois de uma discussão, boa parte das vezes, exaustiva. Não é um tributo imposto de cima para baixo. No Rio, porém, a cobrança é compulsória, fruto de uma canetada da então governadora Rosinha Garotinho.

Para os analistas do setor, isso prejudica a credibilidade da cobrança, que é imposta e não fruto do consenso entre os usuários.

Alemanha foi precursora

Nos EUA, potencial de vazão do rio é dividido em cotas de cobrança

A cobrança pelo uso da água é uma prática que existe em vários países e não vem de agora: o primeiro exemplo data de 1915, no Vale do Rhur, na Alemanha. Nos anos 60, a França aderiu ao modelo, que existe também na Holanda. Mas um novo formato ganhou força nos últimos anos nos Estados Unidos, na Austrália e no Chile. São os chamados “mercados de água”, nos quais a vazão potencial do rio é dividida por cotas entre os usuários, para garantir seu uso racional e controlado. Cada um tem o direito a consumir uma quantidade específica da água, de acordo com a característica da produção.

A posse desses “direitos” pode ser negociada com outros usuários, que precisam de mais água do que dispõem (como se fossem créditos de carbono). Segundo o representante do Banco Mundial no Brasil, John Briscoe, especialista no tema, este modelo funciona muito bem e evita o uso exagerado dos recursos hídricos: — Nas situações de escassez, o incentivo econômico para o usuário não é a cobrança da água, mas o mercado e o custo de oportunidade. O valor do mercado da água pode ser muito maior e ele ganhará mais cedendo sua cota do que produzindo.

Briscoe afirma que esse sistema é um incentivo à plantação de grãos de alto valor no mercado, que conseguem a água que seria destinada a outras culturas menos rentáveis. A prática é um sucesso na Austrália e no Chile, por exemplo. Segundo Briscoe, esta é uma tendência que vai ganhar cada vez mais espaço no mundo, particularmente no Brasil: — Nesse sistema é tudo voluntário. É tudo negociado. É um processo de acerto mútuo. São Paulo, por exemplo, vai precisar fazer isso no futuro. O mercado vem surgindo onde tem escassez.

Durante a discussão da lei de águas no Brasil, chegou-se a pensar em adotar o modelo de mercado, mas prevaleceu o modelo francês. Lá, em 1964, foram criadas sete bacias nacionais, que implantaram “parlamentos da água”, formados por representantes de municípios, indústria, agricultura e sociedade civil.

Um grupo técnico diz ao colegiado qual é a qualidade da água ideal para a bacia. O custo para chegar lá é depois discutido pelo parlamento. Se o valor ficar muito alto, pode-se propor um valor mais baixo a ser cobrado dos usuários, mas a qualidade será inferior. (Gustavo Paul)