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Artigo

Encruzilhada amazônica, artigo de César Benjamin

Num governo cheio de ambigüidades, Marina Silva foi até o limite. Deixou um legado de sinceridade

[Folha de S.Paulo] A destruição da Amazônia e, eventualmente, a perda de soberania sobre parte da região serão os acontecimentos menos perdoados pelos nossos descendentes. A primeira, um processo em curso, e a segunda, uma possibilidade futura, reforçam-se. Desenvolvimento sustentável e consolidação da soberania são indissociáveis.

Há cerca de cem anos, pela obstinação e pelo talento de Rio Branco, concluímos a delimitação de fronteiras e obtivemos direitos sobre o conjunto da Amazônia brasileira atual.

Mas nunca desenvolvemos, em escala significativa, um modo de ocupação adaptado às condições e às potencialidades da floresta tropical úmida que predomina ali. Enormes extensões permaneceram frouxamente ligadas ao resto do país.

Nas últimas décadas, elas vêm sendo cercadas e espremidas por atividades que falam em nome do desenvolvimento, mas são, tão-somente, desdobramentos de técnicas do período neolítico: extrair madeira e criar gado. O uso indiscriminado do fogo torna tudo mais rápido.

Isso é a morte da Amazônia, tal como a conhecemos. Florestas, chuvas, solos e seres vivos formam um sistema integrado. A cobertura vegetal comanda a reciclagem da água, para a atmosfera e os rios, e alimenta de nutrientes os solos pobres.

Retirá-la para plantar pastagens ou monoculturas é condenar essas áreas à degradação e à pobreza, que geram mais degradação e pobreza conforme o processo avança, em inexorável fuga para a frente. O deslocamento descontrolado das fronteiras de expansão é a marcha da insensatez.

A riqueza biológica da Amazônia, associada a outras riquezas, todas ainda mal conhecidas, pode ser o nosso passaporte para o século 21. O Brasil demonstrou grande capacidade de aprender as técnicas da Segunda Revolução Industrial, mas não se habilitou, com a mesma eficácia, a criar novas técnicas.

Isso perpetua nossa posição periférica no mundo, pois as sociedades que comandam os processos de inovação ocupam o centro do sistema internacional. As biotecnologias, como se sabe, são uma importante fronteira atual.

A floresta em pé nos oferece os estoques genéticos necessários para desenvolvê-las. Preferimos, porém, reduzi-los a cinzas, antes mesmo de conhecê-los, para abrir espaços a bois. No outro extremo, há os que recusam qualquer atividade econômica.

Paradoxalmente, as duas posições -a intocabilidade da floresta ou a sua devastação- preparam o mesmo resultado: a perda de soberania. Equivocam-se os que descartam essa hipótese. A história do Oriente Médio, no século 20, mostra como é explosiva a combinação de recursos estratégicos e sociedades fracas. A mesma combinação está se formando na Amazônia, no século 21. Em vez de petróleo, estão em jogo biodiversidade, água doce, minerais preciosos, potencial energético.

O Estado nacional é o único agente capaz de articular um projeto regional abrangente, em suas múltiplas dimensões. As populações locais precisam ser integradas nele, com ampla participação, pois delas dependerá o futuro que construiremos. A Amazônia não será preservada apenas com medidas repressivas.

Se a ação do Estado for basicamente negativa, reafirmando o que não pode ser feito, sem que saibamos propor aquilo que deve ser feito, as boas intenções serão derrotadas. De uma forma ou de outra, as pessoas precisam sobreviver.

Num governo cheio de ambigüidades, para dizer o menos, a ex-ministra Marina Silva foi até o limite. Deixou um legado de sinceridade.

Torço para que ele não seja substituído por propostas improvisadas, tão a gosto de Mangabeira Unger, nem por operações pirotécnicas, concebidas para alimentar o noticiário do dia, marcas registradas da trajetória de Carlos Minc. Recolham-se, por favor, vaidades e oportunismos. É com o futuro do Brasil que estamos lidando.

Cesar Benjamin, editor da Editora Contraponto e doutor honoris causa da Universidade Bicentenária de Aragua (Venezuela), é autor de “Bom Combate” (Contraponto, 2006).

Artigo originalmente publicado pela Folha de S.Paulo, 17/05/2008.