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Artigo

A notícia que não vai além do bagaço, artigo de Gabriel de Salles

As comunidades rurais são as maiores vítimas da monocultura com fins energéticos

[Gazeta Mercantil] Não é por que não existiam veículos automotores que não aconteciam acidentes. Nas estradas de terra ligando o campo às cidades e vilas, havia contínuo movimento de carroças, charretes, cavalos e carros de boi, transportando cargas e pessoas. Os acidentes eram poucos, mas causavam mortes. Mandava o costume que se colocasse uma cruz no local em memória da vítima, onde seus familiares e devotos depositavam flores e rezavam. Em muitos desses lugares foram construídas pequenas capelas, com afluência regular de fiéis.

O respeito aos mortos exigia que os locais de tragédias ficassem protegidos, sendo reverenciados, mesmo pelos menos crentes. Em épocas como maio, “o mês de Maria”, aconteciam procissões acompanhando imagens sacras, geralmente passando por onde se erguiam cruzes.

O esvaziamento do campo motivado pela mudança do perfil dos cultivos rurais, especialmente no interior paulista, relegou ao abandono as “cruzinhas” ou “capelinhas” como eram chamadas na linguagem popular. Antes bem cuidadas, e muito respeitadas, hoje estão, em sua maioria, encobertas por canaviais. Apenas os mais idosos sabem onde se localizam, e os jovens as ignoram.

O desrespeito a esses espaços, de alguma forma importantes e representativos para a modesta população que restou no campo, simboliza bem as mudanças provocadas pela chegada dos cultivos intensivos destinados a produzir etanol. Mudanças para pior, com o aniquilamento da pequena propriedade, o fim do abastecimento local com gêneros de primeira necessidade consumidos onde eram produzidos, graves agressões ambientais, o fim das reservas florestais nativas e assoreamento de rios, e a transformação de trabalhadores rurais em mão-de-obra disponível para patrão único, na forma de monopólios ou oligopólios de usinas. Esvaziou-se, em todos os sentidos, a vida das pequenas comunidades, as vítimas mais evidentes da catarse criada em torno das lavouras com finalidades energéticas, cujos defensores sonegam dados importantes, quando tentam defender sua importância.

Esse tipo de euforia parece ter envolvido também a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), do Ministério de Minas e Energia, que no dia 8 último divulgou dados preliminares do Balanço Energético Nacional, referente ao ano passado, em que destaca o fato de a cana-de-açúcar ter se tornado a segunda fonte primária de energia no Brasil com participação de 16% na matriz energética, perdendo apenas para o petróleo e derivados (38,7%), mas acima da energia de fonte hidráulica, que representou 14,7%.

Colocados dessa maneira, os dados deixam a impressão que a cana, além de ser a salvação como combustível automotor, está se tornando também potencial geradora de eletricidade e que, sem ela, nossos lares correm o risco de voltar ao tempo das lamparinas. É preciso explicar que, se como fonte primária a cana está pouco mais de um ponto percentual acima da fonte hídrica, esta continua sendo maciçamente responsável pelo fornecimento de eletricidade ao País todo.

A participação do bagaço é muito pequena, além do que parcela da energia co-gerada é usada na própria usina sucroalcooleira. Dados da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) sobre a capacidade instalada de geração elétrica, atualizados na sexta-feira passada, mostram o bagaço da cana com 2,84% da matriz de energia elétrica nacional, equivalentes a 3,096 mil MW, enquanto as fontes hídricas contribuem com 70,66% (77,131 mil MW). O bagaço fica abaixo do próprio gás natural (9,35%) e do óleo diesel (2,96%), com respectivamente, 10,20 mil MW e 3,22 mil MW.

Além de destruir costumes rurais e encobrir seus símbolos, os fanáticos por etanol, agora, também ocultam estatísticas e amputam a informação.

GABRIEL DE SALLES* – EditorE-mail: gsalles@gazetamercantil.com.br)

Artigo originalmente publicado pela Gazeta Mercantil/Caderno A – Pág. 2, 19 de Maio de 2008

Enviado pelo Fórum Carajás