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Com os brinquedos chineses se compra sangue de presos

O ex-preso político chinês Harry Wu, cujo nome de batismo é Wu Hongda, fala do tempo em que passou no laogai e da violação dos direitos humanos na China. Harry Wu, que passou 20 anos no laogai, com a acusação de ter criticado a invasão da Hungria por parte dos soviéticos. Todos os seus parentes e amigos foram obrigados a denunciá-lo como contra-revolucionário; sua mãe se negou e se suicidou. Em 1979 foi solto e em 1985 mudou-se para os Estados Unidos onde criou a Fundação de Pesquisa Laogai. Segue a íntegra da entrevista que Harry Wu concedeu a Yolanda Monge e que está publicada no El País, 27-04-2008. A tradução é do Cepat.

Após ler as páginas escritas de maneira simples por Harry Wu passará um tempo antes que você possa voltar a desfrutar de um crocante rolinho primavera num restaurante chinês. “Depois de comer, vieram dois presos de guarda para retirar o cadáver. Estenderam uma esteira de junco de um metro e oitenta no costado do kang, colocaram o corpo em cima, o enrolaram como se fosse um rolinho primavera e o levaram. Eu sabia que no dia seguinte o colocariam no carro de bois, e que mais tarde seria transportado, junto com os outros rolinhos, até um lugar que chamavam de 586”. Essa era a última estação dos cadáveres.

Nada se sabia sobre os campos de detenção criados na China depois da guerra da libertação, em 1949. Era um tema proibido. Um segredo dolorido de lembranças humilhantes guardado zelosamente pelos sobreviventes. Até que Harry Wu decidiu romper esse silêncio com o livro Vientos amargos. Memorias de mis años en el gulag chino (Ventos amargos. Memórias de meus anos no gulag chinês), que logo estará nas livrarias da Espanha, editado pela Libros del Asteroide. Ele disse que é o testemunho de um homem livre.

“São conhecidos os campos de concentração nazistas e o Gulag soviético, mas praticamente não se sabe nada sobre a articulada complexidade do sistema de campos de trabalhos forçados que mantiveram, e mantêm, presos milhões de cidadãos chineses em condições brutais e desumanizadoras, e na maioria dos casos, sem sentença nem julgamento prévio”.

Quem fala é Harry Wu, cujo nome em 1957 era Wu Hongda, e que acreditou no desafio lançado pelo presidente Mao do “deixem que cem flores floresçam e que cem escolas de pensamento discutam”. Criticou com dureza a campanha política de 1955 contra os contra-revolucionários e foi acusado de “direitista”, crime pelo qual pagou com 20 anos de sua vida no laogai, os obscuros campos de trabalho chineses. “À primavera prematura se seguiu um repentino frio”, disse Wu. Não há dados, mas cerca de 37 milhões de chineses, sustenta Wu, podem ter morrido dentro dos altos muros dos laogai.

Emagreceu até ficar com 36 quilos. Comeu ratos – um luxo, porque no final das contas era carne. Defendeu-se de ataques. Nunca teve a oportunidade de conhecer o sexo, de fazer amor com sua noiva. Felizmente, perdeu o medo porque infelizmente perdeu a esperança. Não teve forças para escapar porque nem sequer sentia medo! Chegou à conclusão, quando estava com pouco mais de 20 anos, de que seus valores de humanidade e respeito careciam de sentido num marco como aquele que habitava. “A vida humana carecia de valor”, reflete. “Naqueles dias de repressão me lembrei da prática tradicional de vender os pés. Havíamos mudado esse costume pela venda das idéias”. A reclusão solitária o livrou do temor de sofrer. Numa cela de cimento chegou ao limite de sua capacidade. Disse que depois de conhecer o abismo negro do desespero “não havia mais nada” que o assustasse.

Libertado em 1979, conseguiu sair da China em 1985. Foi preso com 23 anos e libertado com 42. “Cheguei a San Francisco com 40 dólares no bolso”. Tinha conseguido uma vaga como professor de geologia na Universidade de Berkeley. Mas trabalhava no quiosque de donuts do campus para poder sobreviver. “Às vezes chegava a dormir ali”. Ou num banco. “Mas podia comer todos os donuts que quisesse!”, disse agora, ensaiando um sorriso. “Mesmo que depois daquilo já não fui capaz de comer mais nenhum”. Ninguém sabia de suas penúrias. Ainda que para ele não tinham nada a ver com seu isolamento anterior do mundo. “Era livre”, confessa hoje na sede da Fundação de Pesquisa Laogai, em Washington, fundada por ele em 1992.

Entre andaimes, telas de pintores jogadas pelo chão e provas de cores nas paredes, Wu recebe o El País num meio-dia de primavera. E lança uma pergunta antes mesmo de apertar a mão: onde fica a Espanha?, não pensa em fazer nada para parar este regime sangrento? Aparenta os 71 anos que tem. Está ágil ainda que mostre uma pequena barriga, talvez como vingança por tantos e tantos anos de fome. Mas quando anda parece que arrasta séculos de dor que lhe dificultam o passo. Sorri e seu rosto se ilumina. Mas o olhar continua apagado. Morto.

O que é o laogai?

O laogai é muito comum na China. Ninguém fala de prisão. Fala-se do laogai. É o vasto sistema de reforma pelo trabalho que existe na República Popular da China. Foi criado pelo Partido Comunista sob a direção de Mao Tsé-Tung, e servia na época e ainda hoje como instrumento da ditadura para prender tanto os dissidentes políticos como os criminosos. Lao significa trabalho; gai, reforma, lavagem cerebral.

Qual é a função política do laogai? E a econômica?

Muito simples. Usar os prisioneiros como força de trabalho barata, inclusive gratuita, nas mãos do Partido Comunista e reformar os réus através do trabalho duro e do doutrinamento político. Do ponto de vista econômico, explora-se os prisioneiros para financiar o regime comunista. Em 1991, o Congresso dos Estados Unidos aprovou uma lei que proíbe as importações de produtos cultivados em campos de trabalho forçado. Mas, os chineses dizem que não o fazem, que os produtos dos campos laogai não são para exportação. Mas na realidade, são. O que acontece é que são exportados indiretamente. As empresas de laogai são os produtores, mas não os exportam diretamente, mas a uma companhia de comércio estatal, e esta, por sua vez, os exporta. Deveríamos estar conscientes de que quando se compra um brinquedo made in China, em muitos casos se está comprando as lágrimas e o sangue de um preso.

De quantos presos estamos falando?

Impossível sabê-lo. Não há dados. Podem ser dez milhões ou talvez apenas cinco. Atualmente, beira os três ou quatro [milhões]. Também não sabemos o número de mortos, por inanição, doenças, surras ou frio, mas não serão menos que 37 milhões.

Então, os laogais ainda hoje existem?

Existem como sistema. Claro que existem! [sobe o tom de voz, indignado.] O que aconteceu é que, depois de uma ida minha ao Congresso dos Estados Unidos e algumas declarações no jornal The Washington Post em que dizia que gostaria de ver essa palavra incluída no Dicionário Oxford, pois… na China armou-se grande alvoroço e decidiram seguir o mesmo método, mas lavando a cara. De laogai passaram a se chamar prisões…, mas é a mesma tragédia esquecida.

Quem hoje ocupa esse tipo de prisão?

Isso mudou um pouco. Na China, nos primeiros 30 anos da Revolução, entre 1949 e 1979, a maior parte destes presos eram prisioneiros políticos. Na China, dividiram as pessoas em diferentes classes. As classes burguesa, proprietária, trabalhadora e camponesa. Classificaram os camponeses e os trabalhadores de classes revolucionárias. A burguesa e a proprietária, independentemente do que fizeram, eram as inimigas de classe. O que aconteceu é que muitas, muitíssimas pessoas, só por pertencerem a uma dessas duas classes, foram enviadas aos campos. Nos primeiros 30 anos, talvez 80% dos prisioneiros estavam ali simplesmente por sua classificação social. Agora, nos campos de prisioneiros as cifras se inverteram: 80% são presos comuns, e os 20% restantes, políticos. Mas quero deixar algo bem claro. Quer sejas um violador, um narcotraficante ou um ladrão de banco, mesmo que não tenhas nada a ver com política, continuam a te mandar ao laogai e, antes disso, tens que renunciar às tuas crenças políticas e religiosas. Tens que reconhecer que vives por e para o comunismo, esse é o objetivo.

Como é possível que existam 13.000 transplantes de órgãos por ano na China se não há doações?

Novamente a mesma resposta: laogai. O primeiro país do mundo em transplantes de órgãos são os Estados Unidos (50.000, todos registrados); o segundo, a China. Desses 13.000 transplantes, 95% procedem de prisioneiros executados. Nossa fundação estima que cada ano existam entre 8.000 e 10.000 aniquilados nos campos de trabalho. A farsa chega tão longe que a exposição conhecida como Bodies, que exibe as entranhas dos corpos humanos, é compunha de cadáveres de cidadãos chineses. A companhia americana que financiou se chama Premier… Uma das exibições foi em Rosslyn [arredores de Washington]. Eu a vi. E comprovei que eram todos chineses jovens e homens. Quisemos perguntar ao Governo chinês: quem são?, queres ver ali o teu irmão? Claro que não. Mas não obtivemos resposta.

Não salva nada dos quase 60 anos de República Popular da China?

Sem direitos humanos não há nada que salvar. A China tem uma lei de controle de natalidade. Isso é um tema de direitos humanos. Cada mulher, na China, 22% da população total mundial, e o dado não é nenhuma brincadeira, independentemente de se está casada ou solteira, tem a obrigação de pedir permissão ao Governo para ter filhos. Dar à luz é um direito humano, mas o Governo o proíbe. Além disso, só se permite ter um filho ou uma filha. Esse filho aprenderá o que são irmãos e irmãs no dicionário porque jamais os terá. Também não terá tios ou tias… Essa é a realidade. Na China não há liberdade. Nem de pensamento, nem de reunião, nem de religião.

A China está se preparando para um grande acontecimento neste verão: os Jogos Olímpicos. Pequim acredita que esta é uma boa oportunidade para projetar uma imagem diferente do país…

Os Jogos Olímpicos duram exatamente 18 dias. Os direitos humanos são permanentes. Falaremos das olimpíadas na China até agosto. Depois disso não se voltará a falar neles. É verdade que os Jogos são uma oportunidade para que se enfatize o tema dos direitos humanos. Mas se os países não intervierem, não agirem, não empregarem nenhum tipo de bloqueio com a China…, continuaremos contando mortos. Quer sejam dos laogais ou do Tiananmen.

Na sua opinião, como a comunidade internacional deveria agir em relação à China?

Os Estados Unidos não têm relações diplomáticas com Cuba. Nem com a Coréia do Norte. E, no entanto, Bill Clinton negociou acordos milionários com o regime chinês, uma ditadura comunista corrupta. George W. Bush recebe sem rubor o presidente da China… Poderia continuar… O que o seu país faz? Nada, como o resto do mundo. Ninguém faz nada. E por quê? Pelo dinheiro. Essa é a única razão. Há muito dinheiro em jogo.

Está cansado? Enfadado?

Não estou irritado. Já terminou. Terminou [se emociona e tenta conter as lágrimas.]. Ainda que às vezes sinto que ainda estou ali. E então vejo o Bush dando a mão e as boas-vindas ao líder da China… Isso é terrível. Depois da Segunda Guerra Mundial houve os julgamentos de Nuremberg… O que acontece com a China? [Não fazia falta perguntar se estava cansado. Seu cansaço o arrasta desde que abandonou seu país há mais de duas décadas. Desde então voltou várias vezes. Numa delas, para filmar secretamente um documentário da CBS da série 60 minutes sobre os laogais. Nessa ocasião fez um testamento antes de abandonar a Califórnia…].

Que lembrança daqueles dias mais o atormenta?

Tenho muitas, todas elas terríveis, mas uma das quais me obceca é aquele dia em que ajudava outro preso e se recuperar e… finalmente o mataram. Morreu. De fome. Era o silêncio. Ali estavam todos prostrados, era de noite, uns ao lado dos outros, apertados pela falta de espaço. Todos calados. Ninguém ria. Ninguém gritava. Ninguém chorava. Todos os dias chegava gente. Todos os dias levavam os mortos. A língua que se falava era a da morte. “Onde está o senhor Lee?”. “Levaram-no como um rolinho primavera”. Terrível.

Você sobreviveu para contar essa experiência…

Sim, mas não sou um herói. Se fores um herói, morres. Quando és um herói recusas os interrogatórios. Se lutares, morrerás. Queriam que reconhecesse um crime? Reconheci um crime. O que quer que seja. Abandonei a minha condição de ser humano. De ser humano me reduzi a um fantoche.

Você chora?

Durante muitos anos não sabia o que eram as lágrimas. Nunca chorei. Ouvia pessoas morrendo e não sentia nada. Cada manhã me levantava e ia trabalhar. Assim era todos os dias, durante 20 anos. Pela tarde, quando voltava era para buscar alimento. Roubava a comida de outros. Ia dormir. Isso era tudo.

Continua sendo católico?

Não. Era católico. Era católico quando tinha 20 anos. Depois, durante 20 anos no laogai.. Deus não me serviu.

Quando deixou de ser Wu Hongda para se converter no Harry Wu?

Desde que cheguei aos Estados Unidos fecho a porta da minha casa com o trinco para não deixar entrar o passado. Não quero saber nada de política, não quero ler jornais. Só quero usufruir o resto da minha vida. Ainda que isso seja muito difícil. Mas sou um homem livre. Me lembro de tantas e tantas pessoas que não são livres… Tantas e tantas. Tu não entendes, ninguém entende. Tenho 71 anos e o final do meu caminho está próximo. Não me importa. Quase cruzei essa linha duas vezes. Agora sou Harry Wu. Um homem livre. Com uma esposa e um filho de 10 anos, o Harrison. Já não importa mais quanto tenho me resta.

(www.ecodebate.com.br) entrevista publicada pelo IHU On-line, 13/05/2008 [IHU On-line é publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.]

One thought on “Com os brinquedos chineses se compra sangue de presos

  • Olá, senhor Harry Wu!
    É difícil colocar em palavras tudo o que eu senti com o seu depoimento. Quisera eu poder lhe enviar rosas todos os dias para fazê-lo esquecer nem que fosse ao menos por alguns minutos todas as barbaridades que viveu e que presenciou em 20 anos de existência. Gostaria que soubesse que lamento profundamente todo o seu sofrimento e de tantas milhares ou milhões de pessoas que ainda são torturadas física e mentamente por esse mundo a fora. Um beijo em seu coração.

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