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Notícia

Menina de engenho

No dia em que se comemoram os 120 anos da Abolição da Escravatura no Brasil, parece triste, mas é verdade: o trabalho análogo ao escravo ainda existe no país. E não se limita a adultos. Crianças e adolescentes também são vítimas. Por Letícia Lins, de ÁGUA PRETA, Pernambuco, para O Globo, 13/05/2008.

Cristina*, de 15 anos, é a prova viva dessa tragédia brasileira. A menina foi localizada pelo Ministério Público do Trabalho (MT) no engenho Vida Nova, município de Água Preta, a 130 quilômetros de Recife. Com a palavra, o auto de infração número 016866070 do ministério: a menina foi encontrada “submetida a precárias condições sanitárias, de higiene, conforto, saúde e segurança na frente de serviço.” O trabalho de Cristina era amarrar cana, numa jornada diária de 13 horas, tarefa para qual ela não tem compleição física, informa o coordenador da equipe de auditores do MT no estado, Paulo Mendes. Quando foi feita uma das fotos desta página, a menina estava sentada sobre a palha do plantio para descansar. O sol era forte, e Cristina se protegia sob uma sombrinha velha, em meio à fuligem e aos pêlos cortantes da cana. Do que se espera da vida de uma adolescente, só um resto de vaidade: havia um batom em sua mão.

– As autoridades receberam informação de que naquele mesmo engenho havia crianças com pouco mais de 11 anos trabalhando. Mas, no dia da fiscalização (o menino, irmão de Cristina), não estava no serviço – disse Mendes.

A situação dos trabalhadores no local era tão degradante, segundo a Procuradoria do Trabalho, que o engenho chegou a ser interditado, em fevereiro. Foi o primeiro caso de propriedade canavieira a passar por esse tipo de sanção no Brasil.

Foi após um acidente de ônibus, no qual morreram dois trabalhadores e 31 ficaram feridos, que o trabalho análogo ao escravo foi detectado.

Os passageiros iam do município de Joaquim Nabuco para o engenho Vida Nova. No acidente, foram constatadas muitas irregularidades. Por exemplo: os cortadores de cana viajavam no interior do transporte segurando seus instrumentos de trabalho, todos cortantes, como foices, enxadas e facões. Pela lei, esses objetos devem viajar em compartimento separado, longe dos trabalhadores. Segundo a Procuradoria do Trabalho, a irregularidade acabou provocando ferimentos e mutilações que poderiam ter sido evitados, amenizando as conseqüências do acidente de ônibus. Cristina só se livrou do acidente porque ia para o canavial de bicicleta.

Depois disso, o MT descobriu que, no Vida Nova, o que havia mesmo era uma realidade velha, que remonta ao tempo dos feitores.

O caso se transformou em processo na Justiça trabalhista: o deputado estadual Marco Barreto (PMN) é acusado, junto com o “gato” (agenciador de mão-de-obra que procura lavradores para o corte de cana) Antônio Wilson da Silva, de contratar 101 trabalhadores rurais sem cumprir as leis trabalhistas e obrigá-los a cortar cana em condições extremamente precárias.

O deputado alegou que a propriedade era do seu pai e que ele não era o responsável pela contratação. Mas, para a Procuradora do Trabalho, Auxiliadora de Souza e Sá, o parlamentar é responsável, sim.

E esse também foi o entendimento da Justiça. A procuradora estuda entrar com ações individuais para que os trabalhadores recebam as indenizações.

Ela também encaminhará o caso do deputado à Comissão de Ética da Assembléia Legislativa, para que os outros parlamentares analisem o procedimento ilegal do colega, que, coincidentemente, preside a Comissão de Agricultura e Política Rural da Assembléia Legislativa.

Barreto foi condenado pelo Juiz da Vara do Trabalho em Palmares (município próximo de Água Preta, com os mesmos dramas sociais), Rogério Freyre Costa, a pagar R$100 mil ao Fundo de Amparo ao Trabalhador.

A sentença do juiz saiu em 28 de abril: “Não se pode admitir que, no século XXI, o trabalhador rural da Zona da Mata continue coisificado.

É necessário que sejam assegurados a esses trabalhadores de cana pelo menos os direitos básicos, previstos na Constituição Federal de 1988, de modo a transformálos em cidadãos.” Libertada de suas pesadas tarefas no engenho, Cristina, aos 15 anos, ainda pode, ao menos, sonhar com essa nova vida de cidadã.

* O nome foi trocado para preservar a identidade da menina

Quando acordava, as costas ainda doíam muito

Filha de cortadores de cana, Cristina, de 15 anos, tem cinco irmãos e mora com os avós em uma casa precária em Água Preta, na mata sul de Pernambuco. A menina, que é tímida e fala pouco, ganhava R$ 10 por semana para amarrar cana de açúcar, serviço que lhe rendia dores imensas nas costas.

Atualmente, está na 6asérie (7oano) da Escola Municipal Artur Neto e tem um sonho: ser professora, para ficar longe do trabalho pesado na palha da cana. Um trabalho que – a exemplo do que ocorreu com seus pais, avós e bisavós – começou cedo, aos 7 anos.

A vida de Cristina não tem sido fácil. Depois que o pai foi assassinado há 11 anos, a mãe teve que trabalhar duro para sustentar os filhos. Cortou e amarrou cana e passou um tempo como empregada doméstica, tendo que pedir ajuda aos filhos. No momento, está sem emprego e recebe ajuda do Bolsa Família.

A menina é evangélica e tem apenas três diversões na vida: ver televisão, freqüentar a igreja e desenhar. Nos desenhos aparecem templos, flores, animais, natureza morta, utensílios domésticos e dragões. Tudo muito colorido, bem diferente do ambiente sombrio em que vive. Até Bebel, a personagem de Camila Pitanga na novela “Paraíso Tropical”, figura em seus trabalhos. E com charme de sobra.

O trabalho no engenho começava às 4h e só terminava às 15h. Isso sem contar as duas horas que a menina gastava pedalando na ida e na volta. No final do dia, Cristina ainda tinha o colégio, das 18h40m às 22h. A extenuante jornada diária, no entanto, não era o único problema.

Ela enfrentava tantas dores nas costas que tinha sempre por perto um remédio que seus parentes chamam de “doutorzinho”, utilizado para aliviar o estresse muscular: – Eu ia dormir pensando que ia melhorar, mas, quando acordava, as costas ainda doíam muito.

Cristina agora está sem trabalho e divide os afazeres domésticos com a avó. Gosta de fazer bolo de chocolate ou de leite e preparar feijão e arroz para a família. O dinheiro que ganhava com a cana era para ajudar o avô, mas ela conta que ainda conseguia comprar umas “coisinhas” com o que sobrava, como sandálias, sabonete e roupas íntimas.

Forçada pela necessidade, não quer ficar sem trabalhar.

Já pediu à mãe para montar uma banquinha onde possa vender frutas, verduras, biscoitos e bombons perto de casa. Mas trabalho na palha de cana, nem pensar. A mãe acha que Cristina tem razão.

Ainda mais agora, que a entressafra da cana começou e o desemprego dobra na região canavieira.

– No engenho, ela ainda tirava R$ 10 por semana, mas tem lugar que é ainda pior e que só paga R$ 7 – afirma a mãe da menina, que levanta suspeita de que haja mais trabalho análogo ao escravo na zona da mata, onde se concentra a agroindústria açucareira de Pernambuco.