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Ferrovia Leste-Oeste: Caminhos de Ferro, artigo de Rogério Grassetto Teixeira da Cunha

[Correio da Cidadania] Dentre as inúmeras canções brasileiras que aprecio está “Ponta de Areia”, de Milton Nascimento e Fernando Brant, entre outras razões por seu tom evidentemente nostálgico sobre uma faceta da cultura brasileira que não vivi, mas que também me causa nostalgia: os tempos áureos do trem no Brasil. Parafraseando Renato Russo, é a saudade que sinto daquilo que não vi. A canção versa sobre a desativação da estrada de ferro Bahia-Minas, que unia a cidade de Araçuaí, no norte mineiro, com Caravelas, no litoral sul da Bahia.

Pois bem, a cerca de 400 km ao norte dali está sendo urdida a construção de outra ferrovia, nada bucólica e poética como a cantada por Milton. Refiro-me ao projeto que ligará o oeste da Amazônia brasileira ao oceano Atlântico. Mais precisamente, Vilhena, em Rondônia, a um ponto entre Ilhéus e Itacaré, na Bahia, região famosa pelas belas praias e natureza, que recentemente foi notícia com o desaparecimento, nas suas proximidades, de um avião monomotor onde viajavam empresários ingleses. Os desaparecidos estavam justamente interessados em um projeto turístico em Itacaré, não muito longe dali. Além do acidente, as recentes notícias de planos do governo para a região não são nada boas para as suas empresas e é bom começarem a recolher o projeto, pois em breve as praias locais podem ficar bem menos atraentes.

Sempre fui um árduo defensor das ferrovias, não apenas por razões emocionais, mas também pelas ambientais. Para cargas, os trens carregam muito mais peso por unidade de combustível consumido que caminhões. Num mundo às voltas com aquecimento global, estoques limitados e preços galopantes de petróleo, isto não é pouca coisa. O mesmo se dá com o transporte de passageiros em relação aos ônibus, aliado ainda à maior velocidade e conforto. Por isso tudo, nunca pensei que fosse ser ferrenhamente contrário a um projeto de ferrovia.

O traçado da Ferrovia Leste-Oeste, como é chamada a obra (incluída no PAC), começa perto da fronteira com a Bolívia, em um dos estados que mais têm colaborado com os índices recordes de devastação da floresta amazônica, com vistas à pecuária e à sojicultura. A ferrovia segue rasgando todo o estado de Mato Grosso, de oeste a leste, na sua porção central, estado este, é bom lembrar, que é campeão do desmatamento, não só da Amazônia, mas também do Cerrado, novamente devido ao gado e à soja, além do milho. Em seguida, a ferrovia entra pelo norte de Goiás, onde encontra a Norte-Sul. Ali, ela sofre uma descontinuidade e segue para o leste a partir de um ponto mais acima, no sul de Tocantins, entrando pelo oeste da Bahia e cortando todo o estado até chegar ao litoral. Em todas essas regiões também se verifica uma forte expansão do agronegócio, onde quem sofre é predominantemente o Cerrado. Em sua ponta no litoral planeja-se a construção de um mega-complexo portuário, o Porto Sul, outra das pérolas ambientais do PAC.

Pois bem, não é necessário ser vidente para saber qual será o resultado da ferrovia: forte expansão do desmatamento para conversão em pastagens e plantações de grãos numa enorme faixa de cada lado da linha, com a grande facilitação do escoamento promovida pela mesma. Fosse apenas para escoar as plantações já existentes, e se não avançasse tanto para o norte do país, a construção da ferrovia até poderia ser considerada uma boa idéia.

Mas, dado o pífio interesse de fiscalização ambiental e de planejamento do uso do solo demonstrados em todos os níveis de governo nos últimos anos (ou mesmo a omissão, complacência ou conivência com o desmatamento), só podemos temer o pior. Ainda mais se somarmos a isto a voracidade do agronegócio nacional, os louvores feitos a eles pela mídia e pelos economistas (e pelo governo), e a visão que trata o Brasil como mero fornecedor de commodities ao mundo.

De mais a mais, só reforça um modelo produtivo que não traz desenvolvimento real ao país, baseado na exportação de produtos agrícolas de baixo valor agregado, que geram uma quantidade muito menor de empregos ao longo da cadeia produtiva em comparação com o verificado nos setores industriais.

Para quem duvida das intenções das forças por trás da ferrovia, adivinhe só qual é o foco esperado para o Porto Sul? Bingo: soja, minério de ferro e biocombustíveis. Quanto ao segundo item, o porto seria o destino final de um mineroduto que sairá de Caetité, na Bahia, que conta com um enorme reservatório de minério de ferro. As informações sobre a propriedade da empresa que detém os direitos de exploração na região, a Bahia Mineração Ltda., são bastante controversas. De certo, temos que ela não é nacional e que o alvo inicial é a exportação para a Ásia (e por lá quem mais tem fome de ferro são a China e a Índia).

Novamente, é o Brasil exportando produtos baratos, ajudando o desenvolvimento alheio, perdendo ainda parte do lucro com isto e ficando com um ônus ambiental. Tudo em troca de meia dúzia de empregos e alguns dólares a mais para fazer propaganda de uma balança comercial positiva. Ah, um detalhe extra: na região de Caitité há também urânio. Dada a importância estratégia deste mineral, é para se colocar as barbas de molho. No mínimo.

O que impressiona é a voracidade e a pressa do governo da Bahia e dos que desejam o projeto, o mesmo rolo compressor visto em várias obras ambientalmente duvidosas do PAC. Tudo está sendo feito com uma celeridade “nunca antes vista na história deste país”.

Querem tudo para ontem, licenciamento ambiental inclusive (óbvio, quanto menor o tempo e maior a pressão, menos chance de a coisa ser bem feita, o que poderia melar os planos dourados). Alguns dos argumentos usados são os mesmos de sempre: “vai gerar não sei quantos empregos”, “vamos fazer tudo com o máximo cuidado ambiental”, “os impactos serão mínimos”, “vai trazer desenvolvimento e revitalização para a região”. A mesma ladainha, desta vez com algumas adições, como a de que o porto será de uma modalidade que causará menos impacto, que várias ações mitigadoras já foram planejadas etc. Só não sei como um mega-complexo portuário prevendo terminal de ferrovia, mais locais de estocagem, mais cinco novas rodovias, mais aeroporto, mais mineroduto, conseguirá ser ambientalmente amigável. Talvez seja uma limitação mental deste articulista.

Há ainda alguns detalhes incômodos. Primeiro, parte do projeto está dentro de uma APA (Área de Proteção Ambiental), o que por si só demanda maiores cuidados. Segundo, está numa região ainda com razoável preservação de Mata Atlântica, pela forma de cultivo do cacau (na sombra), preservando parte do dossel de floresta nativa. Terceiro, ela possui um excelente potencial para o desenvolvimento do eco-turismo e de atividades menos impactantes, inclusive a continuação da cultura cacaueira. Quanto aos tais empregos gerados, lá e em outros locais, pode-se notar que toda a multiplicidade de referências na internet parte de uma fonte única, que cita de oito a dez mil empregos na fase de implantação. Mas nada se fala sobre quando as obras acabarem.

Lembrando novamente a poesia de Brant e Nascimento, a Maria-Fumaça que fazia em Ponta de Areia o seu ponto final e “cantava” para “moças, flores, janelas e quintais”, enchia de alegria a vidas das pessoas, ligando Minas Gerais ao mar. Já a ferrovia que ligará Rondônia à Ponta da Tulha, em Ilhéus, deixará um rastro de desmatamentos e destruição e, na paisagem vazia, um grito, um ai, matas esquecidas, fumaça nos ramais.

Rogério Grassetto Teixeira da Cunha, biólogo, é doutor em Comportamento Animal pela Universidade de Saint Andrews.

Artigo originalmente publicado pelo Correio da Cidadania, 09/05/2008