EcoDebate

Plataforma de informação, artigos e notícias sobre temas socioambientais

Notícia

Um estado em pé de guerra

Reportagem do Correio mostra como o conflito de terras envolvendo fazendeiros e índios tornou-se parte do cenário de Roraima

Boa Vista – Roraima é um estado em pé de guerra. De um lado, os quase 19 mil indígenas que exigem a total desocupação da reserva Raposa Serra do Sol por não índios. Do outro, seis grandes produtores de arroz, pecuaristas, pequenos e médios fazendeiros, comerciantes e moradores de dois municípios. Ontem, a Polícia Federal prendeu o produtor de arroz, Paulo Cezar Quartiero, que também é prefeito de Pacaraima. Ele foi acusado de formação de quadrilha, ocultação de armas e bloqueio de vias públicas. Segundo a PF, o fazendeiro teria mandado seguranças de sua fazenda, localizada dentro da reserva Raposa Serra do Sol, atirar em 10 índios que tinham invadido a propriedade para instalar malocas. Esta é a segunda prisão de Quartiero nesse episódio. A primeira, há pouco mais de um mês, foi porque interditou estradas da região. Por Leonel Rocha, Enviado Especial do Correio Braziliense, 07/05/2008.

Imagens feitas por um índio no embate da última segunda-feira mostraram seguranças encapuzados disparando com armas pesadas e arremessando bombas de fabricação caseira. O ministro da Justiça, Tarso Genro, e o diretor geral da Polícia Federal, Luiz Fernando Corrêa, sobrevoaram ontem a área da Raposa Serra do Sol e pediram rigor na manutenção da ordem. Liderados por Quartiero, presidente da associação dos rizicultores, os fazendeiros contrataram um exército de seguranças. Também construíram barricadas nas porteiras das fazendas. Os não índios instalados na região se recusam a deixar a área de 17 mil km² definida pelo governo como território das tribos Macuxi, Ingaricó, Wai-Wai, Patamona e Taurepang. Os índios Yanomami vivem em outra reserva, na região oeste do estado, já demarcada em 1992. Os líderes indígenas garantem que já mobilizaram mais de 5 mil guerreiros para a batalha pela reserva.

O governador do estado, José de Anchieta Jr, esteve ontem em Brasília e entrou com ação no Supremo Tribunal Federal solicitando alteração no perímetro da reserva indígena e a suspensão do decreto de demarcação da terra em áreas contínuas ou não. O julgamento do Supremo está previsto para junho. Na área rural, a situação é de tensão. Por orientação do Conselho Indigenista de Roraima (CIR), organização não-governamental ligada à Igreja Católica, os índios decidiram não esperar a decisão da Justiça e voltaram a ocupar as fazendas de arroz para construir novas malocas. A tática de guerra reacendeu os confrontos.

Bebida

A primeira medida tomada pelos tuxauas para a “prontidão” das 170 pessoas da comunidade do Barro foi a proibição do consumo de álcool. Segundo a índia Ana Lúcia da Silva, esse é um dos principais problemas enfrentados nas aldeias. Outra queixa dela é sobre o índice de doenças provocadas pelos trabalhadores não índios contratados para as fazendas que estão prostituindo adolescentes. “Fomos enganados com a promessa de trabalho. Os fazendeiros não dão valor aos índios e o arrozal destruiu a vegetação e acabou com os antigos remédios naturais usados por nós”, protestou Ana Lúcia.

Os índios também estão revoltados com o que chamam de grilagem das áreas mais produtivas e o impedimento do acesso aos rios e outras fontes de água com a instalação de cercas pelos fazendeiros. Sem armas ou equipamentos adequados, os indígenas apostam no conhecimento que têm da região e em ações tipicamente de guerrilha para impedir a permanência dos fazendeiros nas áreas. “Nós não vamos recuar um centímetro da nossa terra. Vamos lutar até o último índio”, avisa Ed Alves, um dos guerreiros da Raposa Serra do Sol. Segundo o professor Edinaldo Pereira André, um dos coordenadores da reserva, nos últimos anos os fazendeiros ocuparam as áreas onde eram encontradas caças e monopolizaram o acesso à água.

Os tuxauas, como são chamados os chefes indígenas, ameaçam utilizar os próprios guerreiros para fazer cumprir a lei que criou a reserva e a portaria que delimitou o perímetro da área. Alguns índios tiveram treinamento militar quando serviram o Exército como recrutas. Os da comunidade do Barro, antiga Vila Surumu, na zona rural do município de Pacaraima, assistem, irritados, à passagem das carretas que estão retirando a safra de arroz . Na negociação com fazendeiros e representantes dos governos e da Justiça há alguns anos para a demarcação das terras, os índios aceitaram deixar a cidade de Normandia, fora do perímetro da reserva. Agora, não querem abrir mão de Pacaraima e Uiramutã.

Prisão

Os arrozeiros também estão irredutíveis. Eles não aceitaram o valor da desapropriação oferecido pelo governo federal porque consideraram muito baixo. Em Pacaraima, por exemplo, cidade implantada nas reservas Raposa Serra do Sol e São Marcos, o prefeito Quartiero, entrevistado pelo Correio cinco dias antes de ser preso pela Polícia Federal, não vê solução pacífica para o impasse. “Para resolver o problema, só se o governo federal instalar um crematório coletivo para acabar com a população não indígena nas cidades que estão dentro das reservas”, exagera ele. O arroz responde por 6% do Produto Interno Bruto do estado (PIB). O produto é o principal item da pauta de exportação de Roraima.

Com um patrimônio de R$ 53 milhões e duas fazendas com 9,2 mil hectares, Quartiero contratou segurança privada equipada com motos e caminhonetes que vigiam as plantações e as sedes das propriedades. Para resistir aos índios, os produtores rurais também utilizam um bem articulado sistema de comunicação, com telefonia celular instalada em postos das prefeituras nas zonas rurais. No portão da fazenda Depósito, Quartiero construiu uma barricada digna de uma guerra de verdade. “Os líderes indígenas são ventríloquos de ONGs internacionais e manipulam o resto da tribo. Também existem muitas autoridades envolvidas no entreguismo do território”, acusa o fazendeiro. A Funai e a Advocacia-Geral da União entraram com ações no Supremo pedindo o desarmamento dos fazendeiros.

Os produtores de arroz alegam que chegaram à região no início da década de 1970 e compraram as terras de antigos fazendeiros. Eles produzem hoje cerca de 160 mil toneladas do produto por ano em uma área pretendida de 100 mil hectares, na borda sul da reserva Raposa Serra do Sol, às margens do Rio Surumu. A região é considerada a melhor em terras e com maior facilidade para a utilização da água na irrigação do arroz. A disputa por terras em Roraima é apenas um dos motivos do conflito armado entre fazendeiros e índios. A batalha principal, real e ainda surda, envolve os mesmos personagens, as ONGs ambientalistas internacionais e brasileiras, além das Forças Armadas, e tem como foco de interesse a exploração dos minérios estratégicos, as imensas fontes de água, o aproveitamento das terras raras e a biodiversidade do monumental cerrado roraimense.

Atentados recentes e recorrentes

O conflito entre índios da Raposa Serra do Sol e fazendeiros é recorrente. Em setembro de 2005 um grupo mascarado atacou e queimou o Centro Indígena de Formação e Cultura, que funciona há pelo menos três décadas na comunidade do Barro. Na ocasião do atentado, segundo o coordenador do curso José Sabino André, a sede de uma antiga missão onde funciona a escola – no caso a biblioteca, os dormitórios e o depósito de mantimentos – foi incendiada e três missionários seqüestrados.

Em meio às ruínas do antigo ataque, hoje o centro forma 60 estudantes por ano no curso médio e como técnicos agrícolas com a ajuda de biólogos contratados fora das aldeias. O lema dos indígenas da Raposa Serra do Sol é “terra, identidade e autonomia”. As lideranças querem transformar as aldeias em comunidades produtoras rurais e com organização coletivista. “Nós também temos experiência com gado e poderemos produzir grãos até para exportação”, argumenta o tuxaua Martinho Macixu Souza. Eles contestam o argumento dos fazendeiros e do governo do estado de que a reserva é muita terra para pouco índio. “Historicamente, a terra sempre foi dos nossos pais e avós. Nós fomos expulsos há muitos anos e agora queremos de volta o que é nosso”, argumenta o professor Edinaldo Pereira André, um dos coordenadores da comunidade Barro.

Os índios também rejeitam a acusação, feita por setores das Forças Armadas e dos fazendeiros, de que a reserva colocaria em risco a soberania nacional com a demarcação em terras contínuas e na fronteira com dois países. Eles lembram que na mesma região existem pelotões de fronteira nas cidades de Normandia, Pacaraima e Uiramutã, além de unidades que vigiam as linhas demarcatórias do país. O índio Cristovam Galvão Barbosa lembra que foram as tribos do norte do país que ajudaram o marechal Rondon a instalar os marcos das fronteiras brasileiras. Ele acusa as autoridades e os fazendeiros de preconceito e racismo contra os índios. Também se queixam de jornalistas que, na opinião deles, visitam as malocas, mas não relatam com o precisão suas queixas. (LR)