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África sofre com alimentos mais caros

Elevação dos preços ameaça trazer mais pobreza, mas também se apresenta como oportunidade para a agricultura. O problema é que o risco é imediato e as possibilidades são de longo prazo, mas leva tempo ensinar agricultores a usar técnicas modernas. Por Fábio Zanini, da Folha de S. Paulo, 28/04/2008.

No Soweto Market, no centro de Lusaka, capital de Zâmbia, a resposta dos vendedores sobre como está o movimento é quase sempre a mesma: “slow, slow…” (devagar, devagar…).

Há um ano, Francis, 29, dono de uma barraca no enorme e precário mercado ao ar livre, vendia três sacas de arroz de 50 kg por dia. Hoje, vende uma, às vezes nenhuma.

O motivo, diz ele, é o aumento dos preços. Na África, a inflação dos alimentos, um fenômeno mundial, chegou com força, ameaçando aumentar o já considerável contingente de pobres no continente mais pobre do planeta.

Nas últimas semanas, quando a crise alimentar mundial veio à tona, uma mesma avaliação foi feita do continente: há a perspectiva sombria de aumento da pobreza e desnutrição, que já levou a distúrbios em países como Egito, Burkina Fasso, Camarões e Costa do Marfim, mas também uma janela de oportunidade para sua agricultura.

O problema é que o risco é imediato, e a tal janela, todos concordam, é de longo prazo.

“Esta é uma oportunidade para a África elevar a produtividade de sua agricultura. Países em outras regiões estão chegando num ponto em que atingiram um platô. Se a África aproveitar este momento como uma chance e não como um impedimento, poderá ser o celeiro do planeta”, diz Purnima Kashyap, diretora do Programa Mundial de Alimentação da ONU (Organização das Nações Unidas) em Zâmbia.

No entanto em lugares como o Soweto Market, com suas ruas sujas, pedintes e pobreza generalizada, a promessa de uma “revolução verde” africana parece longínqua.

É fato que o continente tem vastas terras aráveis não utilizadas, e que as que são cultivadas apresentam baixos índices de produtividade, com um potencial enorme de produção. Estima-se que ao menos 80% da agricultura africana seja de subsistência, com o uso de técnicas rudimentares.

“Ninguém explora”
No vizinho Zimbábue, em que a questão agrícola tem, além de tudo, cores políticas, John Worswick, líder da associação de fazendeiros locais, estima que metade da área do país esteja em terras “comuns”, que são do Estado e ninguém explora. “São terras livres, cujo uso não implicaria em desmatamento, nada. Mas nunca houve interesse em plantar nada ali”, diz ele.

Nos mercados africanos, os preços têm aumentado semanalmente. Em Sunningdale, periferia de Harare, capital do Zimbábue, o tomate sempre foi vendido por quilo nas barracas de legumes. Agora, costuma-se vender por unidade. “As pessoas não têm dinheiro para levar muita coisa”, diz uma senhora, sentada em sua barraca esperando fregueses.

Em Zâmbia, os preços dos alimentos subiram 22% em média no último ano, segundo estimativa do Programa Mundial de Alimentação. Mas o milho, matéria-prima da nshima -espécie de purê que é a base da alimentação local-, subiu 33%. O nshima tradicionalmente é consumido no almoço com peixe ou frango, mas muitos em Zâmbia só têm conseguido comer puro ou no máximo com algum vegetal, segundo vendedores do produto.

Na semana passada, a crise alimentar acabou roubando a cena no encontro da Unctad, órgão da ONU que cuida do desenvolvimento, em Gana, no oeste africano. O tema inicial, os impactos da crise econômica global, acabou ficando em segundo plano.

Um dos participantes do encontro, o vice-ministro do Planejamento de Moçambique, Victor Bernardo, deu, em entrevista à Folha, um panorama típico do dilema que os países do continente enfrentam. Por um lado, um enorme potencial “adormecido”. Por outro, imensas dificuldades na hora de explorá-lo.

“Queremos transformar uma situação de certa desvantagem numa oportunidade para produzirmos mais. Temos capacidades adormecidas em nosso país, temos uma extensa área arável em Moçambique e não utilizamos”, diz Bernardo.

O desafio é ensinar os agricultores a tirarem melhor proveito de suas terras, o que deve levar muito tempo.

“A primeira assistência é ensinar as pessoas a utilizar técnicas mais adequadas de produção. Mas isso tem de estar associado a um sistema de educação. Nós, por muito tempo, deixamos de dar a devida assistência técnica e profissional aos agricultores, de ensinar as pessoas a tirar partido dos recursos que têm”, declara.

Produção gera desigualdade no continente

O boom das commodities agrícolas poderá ser mais um elemento concentrador de renda na África, em vez de se tornar uma oportunidade para pequenos agricultores. O temor se repete nas declarações de ONGs, associações de trabalhadores rurais e mesmo autoridades de organismos internacionais.

Presidente da Roppa, uma associação internacional de camponeses do oeste africano, o senegalês Mamadou Cissokho diz que o aumento nos preços dos alimentos não se traduziu, até agora, em aumento da renda para os pequenos produtores, maioria esmagadora entre os agricultores na África.
“A renda extra fica na cadeia de distribuição dos alimentos que vão para os grandes supermercados. São as grandes cooperativas e os distribuidores que estão lucrando”, diz ele, que participou da reunião da Unctad, órgão da ONU para o desenvolvimento, em Gana, na semana passada.

Nas cidades, o forte aumento dos preços é mais dramático para os trabalhadores informais, que não possuem conta em banco, não têm sindicatos que os protejam da inflação alimentar e dependem dos mercados a céu aberto, onipresentes no continente, para sobreviver.
No Soweto Market, em Lusaka, Zâmbia, um saco de 5 quilos de arroz produzido no interior do país sai hoje por 18 mil kwachas, ou o equivalente a R$ 9. Há um ano, valia 15 mil kwachas, ou pouco mais do que R$ 7.

O resultado, segundo explica o vendedor Davis Chate, 35, é que as pessoas pararam de comprar o arroz de Zâmbia, que tem um perfume característico e é de melhor qualidade, para comprar arroz importado do Paquistão, mais barato, mas menos saboroso. Os prejudicados, evidentemente, são os produtores locais.

Em Zâmbia, o pior ainda pode estar por vir, segundo Purnima Kashyap, diretora do Programa Mundial de Alimentação no país.

“Nós estamos iniciando a época da colheita aqui. O impacto virá lá para agosto, quando ela acabar e ficar claro quanto teremos de alimentos disponíveis e a que preço. Esse será o parâmetro para o próximo ano”, afirma Kashyap.

Em Zâmbia, cerca de 1 milhão de pessoas, ou 10% da população, dependem de auxílio permanente do governo ou da ONU para se alimentar.

Debate sobre biocombustíveis e alimentos avança na região

É na África, rotineiramente chamada de “a última fronteira agrícola do planeta”, que um subproduto da inflação alimentar -a disputa entre os defensores do plantio para biocombustíveis e os que temem seus efeitos- promete ser mais dura. Governos estão divididos, e mesmo uma organização como a ONU tem seus “rachas”.

Um dos entusiastas do plantio de fontes alternativas de energia é o mineiro Lucas Assunção, que tem a cada vez mais espinhosa tarefa de afastar dos biocombustíveis a imagem de ser um dos vilões do aumento nos preços dos alimentos, que começou a se formar nos últimos meses.

Coordenador do programa de biocombustíveis da Unctad, o órgão das Nações Unidas que lida com o desenvolvimento, ele vê uma “disputa de mercado” mascarada como preocupação ambiental ou social.

“Esse debate quente é ligado a preocupações ambientais por um lado e por interesse protecionista por outro. É disputa de mercado. Quem tem vende biocombustível e quem não tem fica desesperado”, afirma.

Na África, a idéia de produzir biocombustíveis é vendida insistentemente, inclusive pela diplomacia brasileira, como uma alternativa de desenvolvimento mundial.

Do outro lado do debate está outro órgão da ONU, o Programa Mundial de Alimentação, que tende a temer, em maior escala, que os biocombustíveis roubem terras que deveriam ser reservadas à produção de alimentos. “Nós alertamos que, o que quer que um país decida sobre biocombustíveis, tenha em mente que mais importante é alimentar sua população”, diz Purnima Kashyap, diretora do programa em Zâmbia.

Os governos não estão menos divididos. Na semana passada, o governo de Gana aplaudiu de maneira eufórica a iniciativa do Brasil de abrir no país um escritório da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) para explorar, entre outras, as possibilidades locais para produzir biocombustíveis.

Mas um governo como o de Moçambique, por exemplo, é mais cético. “Nossa prioridade, que deixamos bem clara, é combater a fome da população”, afirma Victor Bernardo, vice-ministro do Planejamento moçambicano.