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Notícia

Tensão em terras tradicionais reflete pressões contra indígenas

A polarização em torno do caso Raposa Serra do Sol é o ponto mais visível de uma conjuntura marcada pelo recrudescimento da violência contra os povos indígenas. Relatório do Cimi registra 92 assassinatos de índios em 2007. Por Maurício Reimberg, da Agência de Notícias Repórter Brasil.

A suspensão do processo de retirada dos fazendeiros na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, ocorrida após uma decisão liminar do Supremo Tribunal Federal (STF), acirrou ainda mais, na última semana, o debate sobre a política indigenista. A polarização das opiniões em torno do caso de Roraima coloca em evidência apenas o ponto mais visível de uma conjuntura marcada pelo recrudescimento da violência contra os povos indígenas no país.

Segundo o relatório “Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil (2006-2007)”  , do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), entidade ligada à Igreja Católica, o número de índios assassinados cresceu 64% de 2006 para 2007.As mortes registradsas saltaram de 56 para 92 casos. Na apresentação do documento, Dom Erwin Kräutler – presidente do Cimi, bispo da Prelazia de Xingu e ele mesmo ameaçado de morte – afirma que as “comunidades indígenas voltaram a sofrer, como nos anos 1970, no auge da ditadura militar, agressões de pistoleiros encapuzados, organizados por fazendeiros e madeireiros, que assassinam, em plena luz do dia e diante de todos, vários membros da comunidade”. Cerca de 734 mil índios vivem hoje no país.

Um dos principais focos de tensão na atualidade é o Mato Grosso do Sul. As 53 vítimas de assassinato em 2007 ocorridas no Estado representam mais da metade dos assassinatos de indígenas ocorridos em todo o Brasil. A violência atinge, sobretudo, o Povo Guarani Kaiowá. “Está ocorrendo um aumento dos conflitos na retomada das terras”, observa a antropóloga Lúcia Rangel, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e coordenadora do levantamento sobre episódios de violência do Cimi. “Os fazendeiros mandam a segurança privada para retirá-los das terras. A situação é delicada. As terras são pequenas e superpovoadas”.

Dourados (MS) é o exemplo acabado da descrição da antropóloga. No território total de 3.475 hectares regularizados como Terras Indígenas (TIs) vivem aproximadamente 12 mil pessoas. O estudo do Cimi faz uma constatação surpreendente: no Mato Grosso do Sul, há em média sete hectares de terra para cada cabeça de gado, enquanto nas terras indígenas de Dourados há apenas e tão-somente cerca de 0,3 hectare por pessoa.

Representante dos Guarani Kaiowá de Dourados, Anastácio Peralta afirma que há um clima de “insegurança” permanente na comunidade. “É muita gente. As lideranças não dão conta. Existe a violência interna, com brigas, drogas e alcoolismo, e a externa, com a ação dos pistoleiros”, afirma.

Anastácio não pestaneja em apontar a questão territorial como a principal motivação para esse contexto marcado pela violência. O espaço reduzido é um entrave para que os indígenas se organizem de forma plena conforme a sua lógica, em unidades autônomas (conhecidas como “tekohá”) baseadas nas relações familiares e com chefias políticas e religiosas independentes.

Além disso, as TIs da região têm ao seu redor criação de gado em regime extensivo, produção de soja, milho, algodão e cana-de-açúcar para a exportação e a indústria. Tudo isso agrava a violência interna. Grande parte das mortes se dá em decorrência de desentendimentos entre os próprios índios. Os índios reivindicam da Fundação Nacional do Índio (Funai) a demarcação de mais 100 territórios destinado aos povos indígenas da região.

“Não fomos preparados para viver no confinamento”, critica o líder Guarani Kaiowá. Ele argumenta que falta madeira para construir as casas, há escassez de matéria-prima e a caça e a pesca estão comprometidas. Muitos sobrevivem com a produção de artesanato. E cada vez mais índios buscam trabalho como assalariados nas usinas de álcool, em franco processo de expansão.

A Funai implantou uma nova administração em Dourados no ano passado. De acordo com a entidade, a unidade local ainda está em “momento de estruturação”. O objetivo, alega a entidade federal, é dar suporte para o trabalho que vem sendo realizado pelo Comitê Gestor de Ações Indigenistas Integradas para o Cone Sul do Mato Grosso do Sul.

Suicídio
Esse quadro de instabilidade latente acaba se refletindo na alta incidência de suicídio entre os indígenas. Em 2007, 28 índios deram fim à própria vida. As mortes atingem principalmente adolescentes. Do total, foram 12 casos de suicídio na faixa dos 13 aos 17 anos, seis vítimas de 18 a 24 anos e apenas quatro tinham mais de 30 anos. O Mato Grosso do Sul domina as estatísticas com 23 registros. As vítimas foram todas do povo Guarani Kaiowá. “O enfraquecimento cultural traz o suicídio”, lamenta Peralta.

O desemprego, a falta de recursos, a impossibilidade de sustentar a família e ausência de perspectivas também são algumas das possíveis causas apontadas pelo relatório. “Parece que há um grito do jovem em dizer que a vida não está boa. Num contexto de muita tensão, ameaça e violência, qualquer coisa torna esses jovens fragilizados”, adiciona Lúcia Rangel.

Para a antropóloga, já é possível afirmar que o Povo Guarani Kaiowá sofre um processo de “genocídio”. “É um genocídio lento. O que a gente identifica é um alto índice de mortalidades, seja por assassinatos, desnutrição, falta de assistência ou suicídio. Há uma impossibilidade de reproduzir a vida em seu modelo de subsistência. A vida em comunidade está sendo impedida”.

Raposa Serra do Sol
Em seminário realizado na semana passada no Clube Militar, no Rio de Janeiro, o comandante Militar da Amazônia, general Augusto Heleno, afirmou que a política indigenista do governo federal é “lamentável, para não dizer caótica”. Os militares resolveram tornar público dois temores em relação à demarcação de terras indígenas: uma possível ameaça à “soberania brasileira” e um suposto processo de “internacionalização da Amazônia”, ambos teoricamente influenciados pelas organizações não-governamentais (ONGs) e entidades religiosas que atuam na área. Na Amazônia Legal, existem aproximadamente 100 terras indígenas situadas na faixa de fronteira. As críticas serviram para direcionar o holofote para a contenda na TI Raposa Serra do Sol.

A demarcação começou a ser pleiteada há 33 anos. A área foi homologada em 2005. Ao todo, são 18 mil índios em 17.475 km² de reserva, ocupando 7,8% de Roraima. As 194 aldeias da Raposa abrigam povos indígenas Macuxis, Ingaricós, Taurepangues, Patamonas e Wapixanas. O Estado reúne um total de 35 mil índios. No momento, cerca de 120 deles se revezam numa vigília na Vila Surumu, ponto nevrálgico de conflitos, localizado a 150 km da capital Boa Vista. Os índios prometem continuar a mobilização na área até que o mérito das ações sobre a ocupação da terra seja julgado pelo STF. Cerca de 150 agentes da Polícia Federal (PF) e alguns membros da Força Nacional de Segurança (FNS) também permanecem na área, seguindo ordens de Brasília.

O dirigente do Conselho Indígena de Roraima (CIR) Walter de Oliveira, do predominante Povo Macuxi, afirma que a presença de agentes federais “inibiu a pistolagem”. “Eram 15 motoqueiros. Eles andavam com a arma exposta, rondavam as aldeias à noite. Hoje ninguém vê isso”, diz. No entanto, ele relata que permanece o comércio de bebidas alcoólicas entre os não-índios.

Walter de Oliveira está preocupado com a demora na retirada dos não-indígenas da área. “Se não tirar os invasores, que já destruíram malocas, pontes, queimaram uma escola e balearam parentes indígenas, isso pode gerar uma grande revolta. Os povos já esperam a desintrusão há três anos”, lembra. Os índios também pedem a reforma das estradas e das pontes queimadas, que prejudicam os atendimentos de saúde e atrapalha na educação. Ele rechaça a hipótese de ameaça à soberania, levantada principalmente por parte dos militares. “A terra é da União. Não cabe na nossa cabeça dizer que isso é um risco à soberania”.

A decisão do STF pode de fato “acirrar os conflitos”, analisa Aloysio Guapindaia, diretor de assistência da Funai. “Nós temos conversado com os índios para que eles aguardem, mas eles também têm as suas próprias iniciativas. A preocupação é se demorar demais e as lideranças não esperarem. Se o STF resolver que a demarcação precisa ser revista, isso abre um precedente sério no país”, explica.

O funcionário da Funai garante que a posição do governo sobre o tema é “unitária”. “O governo federal vai manter a posição conforme estabelecido no decreto de homologação. Estamos fechados nesta questão”, diz. Ele classifica a ação dos arrozeiros, que se recusam de todas as formas a deixar a terra indígena, como “criminosa” e “ilegal”. “Eles entraram quando começou o estudo da Funai para a demarcação. Foram oportunistas”.

Interesse nacional
Para Paulo César Quartiero, presidente da Associação dos Arrozeiros de Roraima, a discussão sobre a Raposa Serra do Sol está “mal colocada”. “Aqui é o interesse nacional, representado pelos habitantes de Roraima, contra o internacional, que usa as ONGs e instrumentaliza o CIR”, afirma. Nem as indenizações fizeram os fazendeiros arredarem pé. Segundo Paulo César, a área de arroz plantada para a safra 2008/2009 é de 24 mil hectares.

Alvo de diversas acusações (que incluem ocupação de terra e a contratação de pistoleiros), o líder dos arrozeiros e prefeito afastado de Pacaraima (RR) – município criado dentro da Raposa Serra do Sol – enumera aqueles que ele próprio considera como “aliados do CIR”. Fazem parte da lista: Funai, Ministério da Justiça, Incra, Ibama, Ministério Público Federal e a Polícia Federal. Ele se refere à PF como “polícia particular do CIR”. “Aqui em Roraima nós enxergamos a PF como adversária. E eles nos vêem como oponentes”, diz.

O arrozeiro chegou a ser detido pela PF no final de março, quando organizava uma “resistência” contra a Operação Upatakon 3, na qual agentes da PF retirariam os não-índios do interior da reserva. Policiais federais sustentam que houve desacato e tentativa de obstrução dos trabalhos por parte de Paulo César. Ele foi libertado no mesmo dia mediante pagamento de fiança.

Reações
A Associação Brasileira de Antropologia (ABA) divulgou nota na qual repudia a “morosidade na retirada dos ocupantes não índios e as concessões políticas feitas a um número de seis indivíduos”, em referência aos rizicultores de Roraima. Já um documento divulgado pela Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), intitulado “Policiais vivem inferno em Roraima”, afirma que “enquanto índios e arrozeiros se estranham, e governo e STF não se entendem, os policiais sofrem com a falta de planejamento da operação e infra-estrutura básica para suportar o trabalho na região”.

Na última sexta-feira (18), Lula recebeu integrantes da Comissão Nacional de Política Indigenista no Planalto. Segundo as lideranças indígenas, o presidente reafirmou sua posição favorável à manutenção da homologação em terras contínuas da Raposa Serra do Sol, contrariando a proposta de demarcação “em ilhas”, excluindo as áreas de ocupação não-indígena. O encontro ocorreu após o V Acampamento Terra Livre 2008, mobilização que reuniu 800 lideranças em Brasília, que representaram mais de 230 povos indígenas. Entre outras reivindicações, o documento final do encontro cobrou “empenho” do governo na criação do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI). “[A mobilização] foi muito significante. O problema que existe na Raposa não é diferente do que existe em outras terras do Brasil. Estamos fortalecidos, nos organizando e tomando conhecimento da lei”, diz o macuxi Walter de Oliveira.

Mão-de-obra
O relatório do Cimi aponta também que “a Funai não tem fiscalizado adequadamente a utilização da mão-de-obra indígena no corte de cana”. No ano passado, o grupo móvel de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) descobriu 1.011 indígenas, a maioria deles Guarani Kaiowá, vivendo em condições degradantes na Usina Debrasa, em Brasilândia (MS). Além disso, 150 indígenas que trabalhavam no corte de cana-de-açúcar na Destilaria Centro Oeste Iguatemi Ltda (Dcoil), no município de Iguatemi (MS), foram resgatados pelos fiscais da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Mato Grosso do Sul (SRTE-MS).

“Os trabalhadores são recrutados na região deles. A Funai não vai atrás. Ela não tem pessoal para isso. Quem vai é o MTE”, conta Lúcia Rangel. “A Funai funcionou, durante uma certa época, como agenciadora de mão-de-obra. Em muitos postos indígenas, os índios passaram a ser funcionários da Funai. Acho que isso escapou ao controle”, afirma a professora.

Aloysio Guapindaia, da Funai, responde às críticas e lamenta a falta de estrutura da entidade. “Não temos como evitar que as usinas de cana aliciem a mão-de-obra indígena. A Funai, no passado, não se antecipou a essa problemática”, diz. “Há uma estrutura deficitária. Nos últimos 20 anos passamos por um processo de esvaziamento. Agora no governo Lula começa um processo de reestruturação”. Ele afirma que o Comitê Gestor deve começar a atuar na fiscalização de uma “relação de trabalho justa entre usina e índio”, que reconheça “as diferenciações culturais”. O objetivo é dar uma cobertura especializada às ações do MTE.