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Vingança de Gaia, artigo de Newton Carlos

[Correio Braziliense] Por volta dos anos 40 deste século, boa parte da Europa estará com uma paisagem saariana, como se fora uma extensão do deserto do Saara. Porções consideráveis de Londres sofrerão um mergulho compulsório, ficarão debaixo d’água, como monumentos sombrios e inermes, em processo de corrosão, à incapacidade humana de preservar sua moradia, o planeta Terra. Não se trata de antevisões esotéricas, mas de conclusões de respeitável físico inglês, James Lovelock, embora os seus trabalhos sejam populares entre pessoas e comunidades alternativas que encaram o mundo através de bolas de cristal e carteados.

Lovelock tornou-se mais conhecido, sobretudo fora do ambiente científico, com o lançamento em 1969, em parceria com uma americana, do que ele chamou de Hipótese de Gaia ou Teoria de Gaia. A Terra (Gaia na mitologia grega) seria um ser vivo. A biosfera do nosso planeta, segundo Lovelock, teria como gerar, manter e regular as próprias condições de meio-ambiente. A nossa morada, portanto, na visão da Teoria de Gaia, é um ser que se auto-regula. Como isso incidiria nas vidas dos seres humanos? Já foi dito, não em academias, que o horror das guerras tem o seu lado corretivo, o de reduzir a quantidades mais suportáveis as massas humanas, cujas necessidades de sobrevivência a Terra tem de atender.

A capacidade de auto-regulação da biosfera não teria relação com acontecimentos naturais exercendo a função de ajustes, muitos deles com sacrifícios humanos? A Terra como um organismo vivo que se defende, quando necessário, com seus mecanismos de regulação automática? O mundo está com 6,5 bilhões de habitantes, carga que se torna insuportável. Alcançam o ponto de estourarem as condições da Terra de atender a toda essa gente e não há registro de inversões significativas. O que farão seus mecanismos de auto-regulação? E as emissões de gases que envenenam a atmosfera?

No começo, os trabalhos de Lovelock não foram levados a sério pela comunidade científica. Mas já começam a sê-lo, segundo Decca Aitekenhead, que escreveu sobre o último livro do físico inglês, The Revenge of Gaia, e entrevistou-o. Decca conta uma história que ilustra essa passagem. Em 1965, executivos de uma grande multinacional, curiosos a respeito do futuro, dispostos a buscar suposições mais sérias do que palpites de quiromantes, encaminharam perguntas a cientistas, entre os quais Lovelock. Queriam saber ou pelo menos ter uma idéia de quais seriam os problemas mais sérios do mundo no ano 2000. Montagem de cenários com 35 anos de antecedência, portanto.

Não faltaram previsões, tampouco tiradas sem qualquer dose de mérito científico, segundo Decca. A resposta de Lovelock foi simples e concisa. O problema maior estará relacionado com o meio ambiente. Terá índices de gravidade capazes de prejudicar os grandes negócios. “E é o que está acontecendo”, diz o próprio físico. Os sucessivos painéis da ONU são provas disso. As grandes expectativas se voltaram para a reunião em Bali, quando começou-se a discutir o que virá em substituição ao Protocolo de Kyoto, primeiro instrumento criado pela comunidade internacional, em sua tentativa de controlar as emissões de gases que envenenam a atmosfera. Falou-se em “acordo histórico” e por aí ficou-se.

Há muito tempo, Lovelock defende o emprego de energia nuclear, não poluente e à margem dos grandes estragos produzidos pelas barragens. E o lixo nuclear, onde jogá-lo? Os ambientalistas que discordavam já não fazem tanto essa pergunta e cresce o contingente, segundo Decca, dos que acreditam que talvez acabe passando por aí a solução do problema da energia. Os ventos nunca dariam o necessário. O grande desafio se deslocaria para a produção de alimentos. O planeta terá condições de atender os atuais modelos de sociedades e de consumo? Na visão de Lovelock, a humanidade vive um período igual ao de 1938 — 1939, “quando sabíamos que algo terrível iria acontecer, mas não sabíamos o que fazer a respeito”. Sobrevieram os 50 milhões de mortos da Segunda Guerra.

Por volta de 2020, as temperaturas extremas se tornariam rotina, causando enormes devastações. De pouco ou nada adiantam campanhas como a do Daily Mail, de Londres, pregando o não uso pela população de material plástico. Equivaleria a rearrumar as cadeiras do deck do Titanic. Lovelock avisa que a Inglaterra deve preparar-se para ser o salva-vidas de refugiados do continente europeu com problemas ambientais. Partidário de emprego de mais tecnologia, e não menos, manifesta o receio de que não se invente o necessário com a urgência requerida. Por volta de 2100 a humanidade estaria “enxugada” em 80%. Vingança de Gaia? Nome de uma deusa grega.

Artigo originalmente publicado pelo Correio Braziliense, 23/04/2008