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Artigo

Restos da Terra Avá-Canoeiro, artigo de Walter Sanches

[O Popular] A Terra Indígena Avá-Caneiro, usada em grande parte, a partir da década de 1980, pelas empresas Furnas Centrais Elétricas, CPFL, Tractebel Energia e Novatrans do Brasil, todas do ramo energético, carece, hoje, de todo tipo de assistência ao que restou dela – resto mesmo assim de suma importância à existência dos índios que lá permanecem, até porque foi esse o lugar reconhecido pela União como a Terra Indígena Avá-Canoeiro. E também porque é lá que estão suas raízes imemoriais e é lá que estavam quando as empresas chegaram, negociando, em Brasília, à revelia deles, o direito de fazer o que fizeram.

Com referência a Furnas, houve o Decreto Legislativo nº 103/1996, condicionando a instalação da usina a uma série de compromissos com os índios e a terra indígena – e que não foram cumpridos. Cumpriu-se, por conta de um convênio vigorado entre 1992 e 2002, com algumas ações que coincidentemente atendiam aos interesses da terra indígena e da hidrelétrica – no que se relaciona à segurança. E também porque a usina estava em construção e havia prazo para inaugurá-la, e qualquer impasse criado poderia paralisar os trabalhos.

Uma vez consumado o intento, os índios e a terra foram abandonados à própria sorte. Depois que o convênio expirou, em 2002, restaram ainda, por intermédio de Termos Aditivos, alguns recursos que garantiram até o ano de 2007 o funcionamento de duas Barreiras de Vigilância e Proteção em pontos estratégicos tanto para a terra indígena como para a hidrelétrica.

Hoje, no entanto, essas barreiras não mais existem (foram desativadas), Furnas conta com seu esquema próprio de segurança e não há mais qualquer tipo de atendimento e proteção com que os índios e a terra indígena possam também contar.

Enquanto isso, outros avá-canoeiros e seus remanescentes, na Ilha do Bananal, em Tocantins (cerca de 25 pessoas), sem terra própria e totalmente desprovidos de posses, vivem dispersos em comunidades alheias, perambulando por fazendas da região e sonhando com um lugar onde pudessem reconstruir-se. E esse lugar, evidentemente, seria a Terra Indígena Avá-Canoeiro… mas uma terra indígena de fato – tratada e respeitada como tal, pelo menos o que escapou dos empreendimentos – e não a terra degradada pelas obras consentidas, pelos incêndios que todos os anos não deixam um palmo de chão sem queimar, onde os fazendeiros do entorno criam seus rebanhos e acontecem, freqüentemente, mortandades de peixes e outros animais contaminados pelas águas poluídas dos lagos artificiais.

Como buscar futuro em um ambiente desses, sem quaisquer garantias de proteção e segurança?

Claro que tudo poderia ser minimizado. Mas a Funai – e já não é de hoje – tem-se mostrado muito mais sensível ao “drama” dos empreendedores do que às necessidades dos avá e do território em questão. E assim esse território tem sido disponibilizado aos grupos de fora que dele precisam, sem qualquer ressarcimento visando abrandar os impactos sofridos.

A Tractebel Energia, responsável pela submersão das principais matas ciliares da terra indígena, e, conseqüentemente, de seus terrenos mais agricultáveis – além de uma série de outros impactos danosos – diante de nossas denúncias, há cinco anos, como medida compensatória doou duas pequenas lanchas e a quantia de R$ 62 mil para compra de combustível a serem usados em policiamento ambiental nos anos que se seguiram – e eximiu-se do problema.

A Novatrans do Brasil, atravessando a terra indígena com seus 15 quilômetros de torres e Linhas de Transmissão (LTs), com todo o transtorno, perigo e devastação que isso representou e representa para os índios, sequer dignou-se a qualquer pagamento ou compensação ao ambiente atingido – mesmo tendo sido cobrada e advertida por inúmeras vezes. Isenta-se de qualquer compromisso ou ressarcimento – isenção que não haveria se fizesse o mesmo em terras particulares.

De nossa parte, fizemos todo o possível para minimizar e administrar os prejuízos ocorridos, até porque como denunciantes e responsáveis pela área junto aos índios, nos foram cobradas as soluções. E para todos os casos elaboramos projetos, programas, planilhas e etc., em trabalhos de anos a fio, lançando mão de todas as tabelas de preços mínimos encontradas, em consultas aos especialistas de cada área, buscando, em vivência constante com os avá-canoeiros, viabilizar o futuro da terra e da etnia atingidas.

E tudo foi submetido à apreciação dos órgãos competentes, e aprovado ipsis litteris, sempre.

Entretanto, quando os processos chegam às mãos dos devedores, são tratados como um golpe de extorsão – e devolvidos à Funai. E, sem que sejamos comunicados, representantes das empresas envolvidas e servidores da Funai designados para isso, reduzem as planilhas, as despesas e os recursos estipulados originalmente ao que bem entendem, numa desfiguração total dos programas e seus objetivos.

E mesmo assim essas empresas continuam sem pagar a conta, dando a última palavra, sempre, e acabam por transformar a Fundação Nacional do Índio numa Fundação Nacional do Empreendimento (Funae).

O mais grave dessa situação é que as empresas em pauta (Furnas, CPFL, Tractebel e Novatrans) vêm assistindo ao tempo resolver tudo a favor delas, numa política, pode-se dizer, genocida, levando-se em conta a fragilidade, em todos os aspectos, dos poucos avá-canoeiros que ainda restam, resistindo.

Hoje, também os avá-canoeiros de Serra da Mesa, no município de Minaçu, diante da realidade enfrentada, partem para soluções que não queriam. Dois deles já criam vínculos numa aldeia tapirapé, em Mato Grosso, onde vislumbram saída para suas vidas – para tristeza e desolação de seus familiares, os quatro que jamais conseguirão sair, devido à idade e ao apego à terra de origem.

E assim essas empresas, à sombra da Funai, vão tirando os “obstáculos” do caminho.

E em breve não haverá mais qualquer justificativa para continuar lutando por uma etnia extinta… e uma terra despovoada – morta também por todas as agressões ambientais sofridas ao longo de tantos anos de uma batalha inglória. Mas, dos culpados, vocês já têm os nomes e os endereços.

Walter Sanches é técnicoi Indigenista, chefe PIN Avá-Canoeiro.

Artigo originalmente publicado pelo O Popular / 19 de abril de 2008 e enviada pelo Fórum Carajás